A todo o momento realiza-se em nosso cotidiano uma infinidade de eventos sobre os quais temos pouco — ou nenhum — controle, em decorrência da complexa e movimentada vida em sociedade que levamos. Por alguns deles somos gratos; já outros, lamentamos.

            De um lado, um sorriso que recebemos, uma nova proposta de emprego que nos oferecem; doutro, uma simples mentira que nos contam, uma leve batida de carro que nos atinge ou um furto que nos prejudica. Todos eles são acontecimentos aos quais, cada qual com sua probabilidade, estamos sujeitos.

            Na mesma medida em que uma sociedade complexa nos proporciona esses inúmeros eventos, ela exige um conjunto de regras coercitivamente aplicadas que determine os comportamentos humanos, a fim de preservar uma existência pacífica. A grosso modo, é o que denominamos Direito.

            Para os comportamentos indesejados cuidamos de estabelecer um grau de reprovabilidade proporcional e uma sanção correspondente, tudo com o intuito de evitá-los, ou, ao menos, de reparar os danos causados.

            A depender do grau de reprovabilidade, tomando como exemplo as situações colocadas acima, alguns comportamentos ruins não despertam o interesse da tutela do Direito (como a mentira), alguns despertam interesse de um grau intermediário de proteção (batida de carro), como a prestada pelo Direito Civil, e outros de um grau máximo (furto), como a prestada pelo Direito Penal.

            A semelhança entre esses dois últimos casos é que em ambos houve um direito violado. Contudo, no furto, consideramos a violação mais grave ao ponto de julgarmos que o interesse na repressão desta conduta não é somente do ofendido, mas de toda a sociedade, além de estabelecermos a sanção mais austera de privação de liberdade. É assunto pertinente, portanto, ao Direito Penal, que é a proteção máxima dos bens jurídicos mais importantes.

            Por isso, diferentemente da batida de carro, a repressão do furto é obrigatória (não depende da vontade daquele que teve seu direito violado) e mais severa, atingindo a liberdade física do autor do fato.

            Por esses motivos, confiamos a tarefa de processar o furtador ao Ministério Público, excluindo a vítima como parte do processo penal. No Estado de Direito esta prática é perfeitamente adequada aos seus princípios, pois o desejo de vingança da vítima comprometeria sua justa atuação como acusação, que seria sempre excessiva, em prejuízo dos direitos e garantias individuais do acusado, que devem ser sempre preservados.

            Contudo, o fato de a vítima não ser parte do processo penal não retira seu interesse no deslinde da causa. E isso vai muito além da mera vingança.

            Os dois universos, penal e civil, têm um ponto de contato: todo crime que causa danos é também um ilícito civil, e gera a obrigação de indenizar.

            Significa dizer que o mesmo fato pode ensejar dois processos com objetos e partes diferentes: no criminal, há o Ministério Público no polo ativo, exercendo sua pretensão acusatória e buscando a aplicação da pena em face do réu. No cível, há a vítima no polo ativo buscando a indenização pelos danos causados, também em face do réu.

            Como os processos se relacionam?

            A lei penal (artigo 91, inciso I, do Código Penal) e a lei processual penal (artigo 63 do Código de Processo Penal) são claras ao prever que a sentença penal condenatória é título executivo judicial.

            Ou seja, tendo em mãos a decisão condenatória do juízo criminal, a vítima pode postular perante o juízo cível sua devida indenização, executando o réu diretamente. Em outras palavras, não se discute mais, no juízo cível, se é ou não devida a indenização (an debeatur), mas somente o montante (quantum debeatur).

            Para a vítima, que merecidamente deseja ser reparada, tais previsões legais são extremamente benéficas, pois o reconhecimento de seu direito à indenização ocorre no juízo criminal, poupando o juízo cível desta discussão, perante o qual apenas se promove a execução, muito mais célere.

            Sendo a condenação do agente criminoso tão relevante para a vítima, mas, por outro lado, não sendo ela parte do processo penal, estaria ela de mãos atadas, cabendo-lhe apenas aguardar inerte um resultado favorável do processo penal? E se ao longo do processo penal o réu desfazer-se de seus bens para evitar perdê-los, como ficaria a reparação do dano?

            Tais questionamentos encontram resposta na lei.

            Muito embora haja discussões sobre o cabimento dessa figura no processo penal constitucional, a lei processual permite que o ofendido atue ao lado do Ministério Público como seu assistente, podendo propor meios de prova, inquirir testemunhas e interpor recursos (artigo 271). Além disso, pode o assistente requerer a imposição de medidas cautelares pessoais mais severas em caso de descumprimento de anteriores, ou até mesmo a prisão preventiva (artigo 282, §4°).

            Mais atraente ainda para a vítima, patrimonialmente falando, são as medidas assecuratórias, previstas no artigo 125 e seguintes do Código de Processo Penal. Por meio delas o patrimônio do autor do crime sofre uma constrição para que mais tarde, em caso de condenação, seja possível retirar dele os proveitos indiretos do crime ou efetivar a reparação dos danos causados à vítima.

            Em casos cujo dano seja de menor importância, como o furto de um celular, a vítima pode relevar o prejuízo e abdicar da assistência. Noutros, como uma empresa que perde uma vultosa quantia em função da prática de um crime cometido por terceiro, a atuação pode ser importante na busca da reparação.

            As medidas cautelares patrimoniais são o sequestro de bens móveis e imóveis, o registro e especialização de hipoteca legal, arresto de imóveis prévio ao registro e especialização de hipoteca legal e arresto subsidiário de bens móveis. Todas elas podem ser requeridas pela vítima, diretamente ao juiz, por meio de advogado.

            O sequestro, tanto dos bens móveis como imóveis, destina-se a assegurar a perda, em favor do Estado, dos proveitos indiretos do crime — diz-se indiretos porque o resultado direito do crime, ou seja, o bem roubado, por exemplo, deve ser objeto de apreensão —, como efeito da sentença condenatória. Contudo, o dinheiro adquirido com a venda em leilão do bem também é destinado à vítima, como forma de reparação.

            Já a especialização e registro da hipoteca legal não têm, tecnicamente, natureza de medida cautelar, mas de direito real. De toda forma, a lei processual destina a ela o mesmo espaço das medidas cautelares patrimoniais.

            Diferentemente do sequestro de bens, a finalidade primordial desta medida é garantir que a vítima seja reparada pelo dano sofrido. Por este motivo, os bens sujeitos à hipoteca não precisam ter relação com a infração penal, devendo integrar o patrimônio lícito do autor do crime. Hipotecado o bem e condenado o autor do crime, os autos da hipoteca são remetidos ao juízo cível para que proceda à alienação e reparação da vítima.

            Já o arresto prévio consiste numa preparação para a hipoteca, em razão da complexidade deste último procedimento. Isso para se evitar que o bem imóvel seja alienado antes de hipotecado. Por ser preparatório, o arresto é revogado se no prazo de 15 (quinze) dias se não for promovido o processo de inscrição da hipoteca legal.

            Por último, o arresto subsidiário também recai sobre o patrimônio lícito do autor do crime, mas tem por objeto seus bens móveis. Esta medida ocorre apenas nos casos em que os valores dos bens imóveis não forem suficientes para a reparação do dano causado à vítima.

            Como se percebe, então, se assim desejar a vítima, pode ela adotar uma postura bastante ativa no processo penal e na investigação policial.

            Todos esses mecanismos em conjunto com a possibilidade de a vítima atuar ao lado do Ministério Público dão importante destaque ao seu papel, que não é de mera espectadora.

            Muito embora a aplicação da pena seja considerada um primeiro passo para a realização da Justiça, esta não estará completa enquanto os ofendidos pelo crime seguirem prejudicados.

Data da conclusão/última revisão: 22/3/2019

 

Como citar o texto:

BARROS, Adhemar de..A proteção ao patrimônio da vítima no processo penal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 30, nº 1608. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-penal/4350/a-protecao-ao-patrimonio-vitima-processo-penal. Acesso em 25 mar. 2019.

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