Palavras-chave: Tribunal do Júri. Decisão de Pronúncia. In Dubio Pro Societate.

 

INTRODUÇÃO:

A previsão do Tribunal do Júri como competente para julgar crimes dolosos contra a vida está presente não só na legislação infraconstitucional, como na própria Constituição Federal de 1988. Muito embora visto como uma garantia fundamental, gera inúmeras polêmicas em relação ao desvirtuamento das suas finalidades.

O objetivo básico do presente artigo é, a partir de uma breve constatação histórica do instituto, apresentar as premissas básicas do motivo pelo qual não é possível a aplicação do “princípio do in dubio pro societate” na primeira fase do Tribunal do Júri.

Equivocadamente, a jurisprudência majoritária defende a aplicação de tal princípio. Todavia, alguns doutrinadores contemporâneos, como Paulo Rangel (2018) e Aury Lopes Junior (2009) criticam, intensamente, essa utilização.

Assim, visa-se demonstrar – de forma sucinta – o porquê é incompatível a aplicação do “in dubio pro societate” em consonância com o Estado Democrático de Direito.

 

1. CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE O PROCEDIMENTO DO TRIBUNAL DO JÚRI NO BRASIL:

Não há consenso entre os historiadores a respeito da origem do Tribunal do Júri no direito comparado. Muitos afirmam que o chamado julgamento penal pelos “pares” nasceu no século XVII, com o objetivo de quebra do autoritarismo do período absolutista e inquisitório (RANGEL, 2018).

No ordenamento jurídico brasileiro, entretanto, o instituto teve sua origem na legislação infraconstitucional, em 18 de junho de 1822, sendo sua competência restrita aos crimes de imprensa.

Nesse período, a elite que conduzia administração da colônia brasileira sofria grande influência do liberalismo político inglês (RANGEL, 2018). A nomeação dos juízes “vinte e quatro homens bons, honrados, inteligentes e patriotas – competia ao Corregedor e aos Ouvidores do crime. Da sentença dos ‘Juízes de Fato’ cabia somente o recurso de apelação direta ao Príncipe” (ALVES, MASTRODI NETO, 2015).

Nesse sentido, não há dúvida do caráter democrático da instituição do Tribunal do Júri que nasce, exatamente, das decisões emanadas do povo, retirando das mãos dos magistrados comprometidos com o déspota o poder de decisão. Fato que, posteriormente, com a formação do Tribunal Júri, no Brasil, feita por pessoas que gozassem de conceito público por serem inteligentes, íntegras e de bons costumes (cf. art. 27 do Código de Processo Criminal do Império – Lei de 29 de novembro de 1832), faz estabelecer um preconceito social e, embora disfarçada, uma luta entre classes. (RANGEL, 2018).

Com a Constituição de 1824 e com Código de Processo Criminal de 1832, a competência do Tribunal do Júri foi ampliada, passando a integrar o Poder Judiciário como um de seus órgãos.

A Constituição Política alocou o Júri na parte relativa ao Poder Judiciário, tendo os jurados competência para decidirem sobre o fato e o juiz, para aplicar a lei. Em 1832, entrou em vigor o Código de Processo Criminal do Império, alargando ainda mais a competência criminal do Júri, que passou a ser responsável pelo julgamento da maioria dos crimes (ALVES, MASTRODI NETO, 2015).

Importante verberar que mencionado Código de Processo Criminal determinava que os jurados deveriam ser apenas os cidadãos eleitores, fato que restringia consideravelmente essa condição. Conforme critica Rangel (2018):

Consequentemente, somente seriam jurados os que tivessem uma boa situação econômica, já que estes é que podiam votar. Se a pessoa podia ser jurada, ela podia ser eleitora; se ela era eleitora, ela podia ser jurada. Nasce aí a distância entre os jurados e os réus.

Em 1842 competência do Tribunal do Júri foi novamente restringida, mas logo sobrevinha na Constituição de 1891 com status de garantia individual. Na Constituição de 1934, o artigo 72 referente ao Poder Judiciário dispunha: “É mantida a instituição do Júri, com a organização e as atribuições que lhe der a lei”.

A Constituição de 1937 não fez referência ao Tribunal do Júri, mas com a promulgação do Decreto-Lei 167, em 1938, o instituto foi regulamentado, sendo abolida, todavia, a soberania dos veredictos ao “prever recurso de apelação com capacidade para alterar o mérito da decisão divergente às provas existentes nos autos, sendo lícito aos juízes ad quem, ao julgarem a apelação, aplicar outra pena ou absolver o réu” (ALVES, MASTRODI NETO, 2015).

O júri, então, passa a sofrer a influência do novo regime e da nova classe que assume o poder, logo, sua independência e soberania foram cerceadas. O déspota tem de ter o júri sob controle, e a melhor forma é retirando sua soberania (...) Até porque a escolha dos jurados era feita por conhecimento pessoal do magistrado, o que, por si só, faz com que recaia sobre aqueles que pertencem à classe detentora do poder. (RANGEL, 2018).

Somente em 1946, com o término da Ditadura Vargas, foi restabelecida a soberania do Júri como direito constitucional. Em 1967, a Constituição em seu artigo 150, §18 dispôs: “São mantidas a instituição e a soberania do Júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida”, sendo tal mandamento mantido na Emenda Constitucional de 1969, que omitiu, todavia, a expressão “soberania”.

Atualmente, a instituição do Júri tem previsão legal, no Código de Processo Penal, e constitucional, sendo considerada uma garantia individual.

 

2. PREVISÃO CONSTITUCIONAL E LEGAL DO TRIBUNAL DO JÚRI:

A Constituição Federal de 1988 reconhece a instituição Tribunal do Júri, especificamente no artigo 5º, inciso XXXVIII, assegurando os seguintes princípios: “a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida”.

O artigo 74, parágrafo 1º, do Código de Processo Penal afirma que: “Compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos arts. 121, §§1º e 2º, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumados ou tentados”. E, ainda, o artigo 394, parágrafo 3º, do mesmo diploma legal expressa: “Nos processos de competência do Tribunal do Júri, o procedimento observará as disposições estabelecidas nos arts. 406 a 497 deste Código”.

 

3. DO PROCEDIMENTO E DO ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL:

O procedimento dos crimes dolosos contra a vida divide-se em duas fases: juízo da acusação (judicium accusationes) e juízo da causa (judicium causae). Na primeira fase do Tribunal do Júri, o juiz realiza uma análise técnica da admissão da acusação, averiguando se existem “provas serias e coerentes, produzidas em juízo, de ter o réu praticado um fato típico, ilícito, culpável e punível, para autorizar seu julgamento pelo Tribunal Popular” (CAMPOS, 2015). Já na segunda fase, há o julgamento da causa pelos jurados, realizado em audiência una.

Na primeira fase, o juiz togado poderá proferir quatro decisões, quais sejam: absolvição sumária, desclassificação, impronúncia e pronúncia.

Para que ocorra a absolvição sumária deve haver prova acerca da inexistência do fato, ausência de autoria, atipicidade da conduta ou causa de isenção de pena ou exclusão do crime. Nesses casos, o Juiz aprecia o mérito e coloca fim ao processo.

Para que ocorra a desclassificação, por sua vez, o juiz deverá dar ao fato definição jurídica diversa da constante da acusação, podendo excluir ou não a competência do Tribunal do Júri. Trata-se de uma decisão interlocutória.

A impronúncia ocorrerá quando o juiz não se convencer da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou participação. Trata-se de uma decisão que coloca fim ao processo, embora exista o entendimento de que, enquanto não operada a prescrição, poderá ser oferecida nova denúncia, caso surjam provas materialmente novas.

Por fim, a pronúncia é a decisão interlocutória mista que coloca fim a uma fase do procedimento, mas leva a acusação ao Plenário do Júri, afirmando sua viabilidade.

Todavia, é nesse ponto em que a questão reside: havendo dúvida quanto à autoria do crime ou às causas de isenção de pena, deverá decidir em favor do acusado (in dubio pro reo) ou em favor da sociedade (in dubio pro societate)?

Equivocadamente, os Tribunais Superiores possuem o entendimento consolidado no sentido de que deverá prevalecer o “princípio do in dubio pro societate”, ou seja, na dúvida deve-se pronunciar o réu.

Vejamos o Informativo 503 do Superior Tribunal de Justiça:

QUINTA TURMA. LIMITE COGNITIVO DA DECISÃO DE PRONÚNCIA. Na primeira fase do procedimento do tribunal do júri prevalece o princípio in dubio pro societate, devendo o magistrado, na decisão de pronúncia, apenas verificar a materialidade e a existência de indícios suficientes de autoria ou participação (art. 413 do CPP). Assim, a verificação do dolo eventual ou da culpa consciente deve ser realizada apenas pelo Conselho de Sentença. Precedentes citados: EDcl no REsp 192.049-DF, DJ 29/3/1999; AgRg no REsp 1.008.903-RS, DJe 24/11/2008; HC 118.071-MT, DJe 1º/2/2011; REsp 912.060-DF, DJe 10/3/2008; HC 44.499-RJ, DJ 26/9/2005, e AgRg no REsp 1.192.061-MG, DJe 1º/8/2011. REsp 1.279.458-MG, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 4/9/2012.

Da mesma forma, vejamos duas decisões do Supremo Tribunal Federal a respeito do tema:

Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. CRIMINAL. ART. 5°, LVII, DA CF. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356/STF. REAPRECIAÇÃO DE NORMA INFRACONSTITUCIONAL E DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 279/STF. SENTENÇA DE PRONÚNCIA. PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I - Ausência de prequestionamento do art. 5°, LVII, da Constituição Federal – CF. Os embargos declaratórios não foram opostos. Incidência das Súmulas 282 e 356/STF. II - Para se chegar à conclusão contrária à adotada pelo acórdão recorrido, necessário seria o reexame do conjunto fático-probatório constante dos autos, bem como a interpretação de legislação infraconstitucional aplicável ao caso. Óbice da Súmula 279/STF. III - O acórdão recorrido se encontra consentâneo com o entendimento desta Corte, no sentido de que na sentença de pronúncia deve prevalecer o princípio in dubio pro societate, não existindo nesse ato qualquer ofensa ao princípio da presunção de inocência, porquanto tem por objetivo a garantia da competência constitucional do Tribunal do Júri. IV - Agravo regimental a que se nega provimento. (ARE 986566 AgR, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 21/08/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-193 DIVULG 29-08-2017 PUBLIC 30-08-2017).

Habeas corpus. 2. Pronúncia em sede de recurso em sentido estrito. Possibilidade. 3. Indícios de autoria e materialidade do crime. 4. Excesso de linguagem. Não ocorrência. 5. In dubio pro societate. Prevalência. Garantia da competência reservada ao Tribunal do Júri. 6. Tratando-se de pronúncia, exige-se apenas juízo de admissibilidade. Precedentes. 7. Ordem denegada. (HC 113156, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 14/05/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-101 DIVULG 28-05-2013 PUBLIC 29-05-2013).

Todavia, conforme será apresentado a seguir, a aplicação do referido “princípio” é totalmente infundada, não devendo prevalecer no atual Estado Democrático de Direito.

 

4. DA FALÁCIA DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO SOCIETATE NA PRIMEIRA FASE DO TRIBUNAL DO JÚRI:

O Código de Processo Penal determina que o juiz deverá pronunciar o acusado se convencido da “materialidade do fato e de indícios suficientes de autoria ou de participação” (artigo 413, caput): assim, a pronúncia trata-se de uma decisão interlocutória mista que exige dois requisitos indispensáveis para sua prolação.

Nesse sentido, destaca Rangel (2018):

A decisão de pronúncia é um freio que o Estado-juiz coloca à disposição do acusado contra a sanha persecutória do MP, que pode fazer uma acusação fora dos limites da investigação que lhe serve de suporte, ou mesmo dentro dos limites informativos do inquérito que não encontra ressonância, agora, nas provas dos autos.

Indícios de autoria são provas robustas e veementes de que o réu é o autor do fato. Como bem define o Código de Processo Penal (artigo 239), indício é a “circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”.

Walfredo Cunha Campos explica (2015):

Ao que parece, a finalidade de o legislador colocar a expressão indício de autoria foi a de deixar claro que, para a pronúncia, não seria necessária prova cabal, plena, direta (relacionada umbilicalmente com o crime), bastando-se para tal que houvesse casos em que se carrearam contra o acusado tão somente indícios.

Ocorre que a expressão “indícios suficientes de autoria” acabou por criar a falácia do princípio do in dubio pro societate, baseando-se na ideia equivocada de que, ao final da instrução da primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri, havendo dúvidas a respeito da autoria da delito, o juiz deverá pronunciar o acusado, remetendo o processo para ser decidido pelo Conselho de Sentença, preservando, assim, a competência constitucional do Júri.

Falácia pois se consubstancia em erros crassos, vejamos:

 

4.1.  Inexistência de previsão legal do “princípio”:

Em primeiro lugar, no âmbito jurídico-penal, o juiz nunca poderá decidir em desfavor do réu em caso de dúvidas. Não há sequer uma previsão legal nesse sentido. “Atribuir a pronúncia ao in dubio pro societate é desvirtuar o texto legal” (ANTUNES, CANO, DOMINGUES, 2014).

Ainda, tal princípio, em verdade, nada tem de “pró-sociedade”, mas se perfaz contra a sociedade, a democracia e as liberdades individuais.

 

4.2.  Previsão expressa de uma decisão para casos em que haja dúvida:

Não obstante não haver previsão legal a respeito do in dubio pro societate, quando a lei processual afirma que “não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado” (artigo 414 do Código de Processo Penal), a mesma determina de forma clara que a dúvida impede o julgamento popular.

 

4.3.  Distribuição do ônus da prova no processo penal constitucional:

No processo penal constitucional, não se pode mais falar em distribuição de cargas probatórias entre a acusação e a defesa. Cabe ao Ministério Público, representante da sociedade, formular sua hipótese acusatória e desconstruir a presunção da inocência, comprovando toda a imputação realizada sobre o acusado.

Se há dúvida, é porque o Ministério Público não logrou êxito na sua acusação, não podendo ser admitida que sua “falência funcional” – como bem expressa Rangel (2018) – prejudique o acusado. Se houve falha do Estado não é lícito, por evidente, sacrificar a dignidade do réu.

 

4.4.  Violação ao princípio da dignidade da pessoa humana:

Ocupar o lugar de um réu, sendo julgado pelos seus pares, é algo extremamente constrangedor e degradante, devendo só ocorrer em casos de indícios sérios, robustos e confiáveis. O juiz deve atuar, dessa forma, como um “filtro selecionador de julgamentos” (CAMPOS, 2015).

Nos termos de Gustavo Badaró (2016):

Do ponto de vista moral, social e mesmo psicológico, o simples fato de estar sendo processado criminalmente é um pesadíssimo fardo a ser carregado pelo acusado. Ser réu em processo criminal é, portanto, de alguma forma, já estar sendo punido.

Para ser submetido a tal gravame, necessário um juízo sério e técnico sobre a acusação apresentada ao Juiz de Direito da primeira fase do procedimento, que avalie existirem indícios suficientes da autoria do crime.

Com uma maior análise da prova pelo juiz togado nesta primeira fase, controlando de fato o envio de processos ao tribunal leigo, não se maculará a competência constitucional do colegiado, mas tão somente depurar-se-ão, na fase de pronúncia, os casos criminais que merecem ser mandados a Júri. Esse o verdadeiro sentido do judicium accusationis, cuja constitucionalidade nunca foi contestada. Está na hora, então, de o juiz técnico exercer verdadeiramente esse controle que a lei lhe dá. (CAMPOS, 2015).

A simples instauração de um processo judicial já é um ônus social para o acusado. Perpetuar uma dúvida em seu desfavor seria uma verdadeira afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana.

É preciso cessar, de uma vez por todas, ao menos em nome do Estado Democrático de Direito, a atuação jurisdicional frágil e insensível, que prefere pronunciar o acusado, sem provas firmes e livres de risco. Alguns magistrados, valendo-se do criativo brocardo in dubio pro societate (na dúvida, decide-se em favor da sociedade), remetem à apreciação do Tribunal do Júri as mais infundadas causas – aquelas que, fosse ele o julgador, certamente, terminaria por absolver (NUCCI, 2008).

 

4.5.  Princípio da soberania dos vereditos como competência e não carga probatória:

O princípio da soberania dos vereditos diz respeito à competência e aos limites ao poder de revisar as decisões do Conselho de Sentença, não tendo relação com a carga probatória (LOPES JUNIOR, 2009).

Em um Estado Democrático de Direito, de base constitucional, o processo penal deve ser entendido como instrumento de garantia e proteção dos direitos humanos. Não é possível interpretar a “soberania dos vereditos” como uma característica procedimental isolada, em prejuízo do próprio titular da garantia. O princípio, ao contrário, deve ser visto de forma sistemática com todo o contexto constitucional.

É importante ressaltar que a função da fase de pronúncia não é a de remeter o acusado a Júri, mas exatamente o contrário: evitar que aquele que não merece ser condenado não passe por toda uma persecução penal e condenação desnecessária. A pronúncia, portanto, atua como uma garantia da liberdade, evitando que alguém seja condenado e não o mereça.

 

4.6.  Livre convencimento motivado e sigilo das votações:

Finalmente, os princípios do livre convencimento motivado e do sigilo das votações permitem ao jurado decidir conforme suas convicções pessoais, visando resguardar uma decisão livre e justa, sem constrangimentos decorrentes da publicidade da votação.

Todavia, os jurados são leigos e muitas vezes não se preocupam em preservar direitos e garantias fundamentais, sendo extremamente influenciados por fatores externos. Além disso, não possuem o conhecimento técnico nem as regras de processo penal.

Assim, se por um lado os princípios asseguram ao jurado a proteção contra ingerências externas, como ameaças e perseguições, por outro sua ignorância pode gerar decisões contraditórias e injustas, devido ao despreparo técnico.

 

CONCLUSÕES:

O instituto do Tribunal do Júri, que surgiu como uma forma de quebra do autoritarismo do período absolutista, passou por várias transformações no Brasil, constituindo-se, hoje, como um direito fundamental previsto na Constituição Federal de 1988 e na legislação infraconstitucional.

Todavia, aquilo que deveria ser uma garantia ao jus libertatis do cidadão transforma-se em uma falácia, em que o julgamento ideal pelos pares acaba por gerar decisões injustas e, muitas vezes, sem provas cabais e técnicas que fundamentem uma condenação.

A coexistência de duas fases e órgãos incumbidos da mesma tarefa não deve ser vista como mero “pleonasmo jurídico” (ALVES, MASTRODI NETO, 2015).

O papel do juiz togado deve ser impositivo, para garantir que somente aqueles casos em que houver materialidade comprovada e indícios suficientes de autoria ou participação sejam levados ao Conselho de Sentença. Por outro lado, os jurados deverão ser a ligação entre o mundo real e o mundo jurídico (TUBENCHLAK, 1990).

O contrário dessa ideia, levaria à negação do próprio sistema jurídico constitucional, tendo em vista à inexistência de previsão legal do referido “princípio”, a distribuição do ônus da prova no processo penal constituição, a violação da dignidade da pessoa humana, a soberania dos vereditos como competência e não carga probatória, e a violação do devido processo legal e da presunção de inocência.

Portanto, conclui-se que é de suma importância que os Tribunais Superiores alterem seus entendimentos, no que se refere à aplicação do suposto “princípio do in dubio pro societate” na primeira fase do Tribunal do Júri, para que a decisão esteja em consonância com ordenamento jurídico brasileiro e com o Estado Democrático de Direito.

 

REFERÊNCIAS:

ANTUNES, Rodrigo Merli, CANO, Leandro Jorge Bittencourt, DOMINGUES, Alexandre de Sá. O Tribunal do Júri na visão do juiz, do promotor e do advogado. São Paulo: Atlas, 2014.

ALVES, Danielle Peçanha, MASTRODI NETO, Josué. Tribunal do Júri e o livre convencimento dos jurados. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 116, Setembro-Outubro 2015. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RBCCrim_n.116.07.PDF. Acesso em: 14 abr. 2019.

BADARÓ, Gustavo. Do chamado "Lançamento definitivo do crédito tributário" e seus reflexos no processo penal por crime de sonegação fiscal. Revista Brasileira da Advocacia, v. 0, Janeiro-Março 2016. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RBA_n.0.13.PDF. Acesso em: 14 abr. 2019.

BISINOTTO, Edneia Freitas Gomes. Origem, história, principiologia e competência do tribunal do júri. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9185. Acesso em: 14 abr. 2019.

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BRASIL. Decreto lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm. Acesso em: 14 abr. 2019.

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 113156, Relator(a):  Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 14/05/2013, DJe-101 DIVULG 28-05-2013 PUBLIC 29-05-2013. Disponível em: http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000186098&base=baseAcordaos. Acesso em: 14 de abr. de 2019.

CAMPOS, Walfredo Cunha. Tribunal do júri: teoria e prática. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

GRECO FILHO, Vicente. Questões polemicas sobre a pronuncia, em tribunal do júri: estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional, v. 2. Rio de Janeiro, 2009.

NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. Revista dos Tribunais, 2008.

RANGEL, Paulo. Tribunal do júri: visão linguística, histórica, social e jurídica. 6. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2018.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal, v. 4, 31. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

TUBENCHLAK, James. Tribunal do Júri: contradições e soluções. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 1990.

Data da conclusão/última revisão: 23/5/2019

 

Como citar o texto:

CRESTON, Martha Tuler..Breve análise sobre o princípio do in dubio pro societatis na primeira fase do Tribunal do Júri. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1649. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-penal/4520/breve-analise-principio-in-dubio-pro-societatis-primeira-fase-tribunal-juri. Acesso em 4 set. 2019.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.