RESUMO

A aplicabilidade da Lei de improbidade administrativa (LIA) aos agentes políticos não é assunto pacífico na doutrina e jurisprudência. Este trabalho pretende demonstrar que, conjuntamente com as leis que disciplinam os crimes de responsabilidade, a Lei de improbidade administrativa também é aplicável aos agentes políticos. Estes indivíduos indubitavelmente respondem por atos de improbidade, logo, a divergência está em definir se a responsabilização deve se dar com base na Lei dos crimes de reponsabilidade (Lei nº 1.079/50 e Decreto-Lei nº 201/67), com base na Lei de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92) ou em ambas (dualidade de sanções). Através do método hipotético dedutivo e pesquisa bibliográfica, com enfoque jurisprudencial, ficará evidente a solução que melhor realiza e fortalece o princípio constitucional da moralidade na Administração Pública, solução esta, por certo, que deve ser defendida.

Palavras-chave: Agentes políticos. Improbidade administrativa. Crimes de responsabilidade.

1 INTRODUÇÃO

Ao regulamentar os artigos 37, p. 4º, e 15, inciso V, ambos da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), a Lei nº 8.429/92 (LIA) se tornou uma espécie de “código de conduta” do agente público brasileiro, além de uma esperança para a população, pois até então inexistia no Brasil instrumento legal apto a responsabilizar adequadamente os agentes públicos ímprobos (BATISTI, 2015, p. 120).

Anteriormente à Constituição da República de 1988 foi editada a Lei nº 1.079/50, assim como o Decreto-Lei nº 201/67, diplomas normativos, ambos recepcionados, que dispõem sobre os crimes de responsabilidade (para os agentes políticos) e regulam seu respectivo processo e julgamento.

Com o surgimento da Lei de Improbidade Administrativa muito se polemizou sobre o seu alcance ou não aos agentes políticos. No momento atual, no qual se busca conferir às normas jurídicas a máxima efetividade no combate à corrupção, tal polêmica subsiste pertinente, estando ainda indefinida na doutrina e jurisprudência, como se verá no decorrer do trabalho científico.

Este artigo pretende mostrar que, conjuntamente com as leis que disciplinam os crimes de responsabilidade, a Lei de Improbidade Administrativa também é aplicável aos agentes políticos, os quais são uma categoria de agentes públicos indispensável para o funcionamento da Administração Pública.

De certo, os crimes de responsabilidade possuem natureza política e penal, portanto, não se confundem com os atos de improbidade administrativa, que possuem natureza cível, ou seja, natureza extrapenal, o que afasta qualquer hipótese de ofensa à regra do ne bis in idem. Tais normatividades, nitidamente, possuem escopos diversos, o que será demonstrado através do emprego de método hipotético dedutivo e ampla pesquisa bibliográfica.

           

2 IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: CONCEITO E BASE CONSTITUCIONAL

O termo “improbidade administrativa” pode ser conceituado como instituto integrante do gênero da imoralidade administrativa, sendo espécie que se define pela conduta desonesta perpetrada por agente público, conduta esta que pode lhe proporcionar enriquecimento ilícito, causar lesão ao erário ou atentar contra os princípios da Administração Pública (ALVARENGA, 2001, p. 86).

            Como contraponto, probidade administrativa significa abster-se do emprego irregular de recursos públicos, do excesso de poder e do desvio de finalidade, abster-se de causar dano aos negócios da Administração Pública em prol de particulares, do abuso das prerrogativas inerentes ao cargo público para obter vantagem ilícita, ou seja, probidade significa o desempenho de qualquer função pública com honestidade (FIGUEIREDO, 2004, p. 42).

Nessa toada, o dever de probidade administrativa foi previsto claramente no art. 4° da Lei nº 8.429/92:

Art. 4° Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos. (BRASIL, 1992, grifos nossos)

Em breve síntese, improbidade administrativa significa o abandono, pelo agente público, do seu dever de probidade no exercício da função pública, o que é passível de gerar a responsabilização cabível, nos termos da lei.

Ademais, acerca da improbidade administrativa, que mereceu atenção especial do poder constituinte originário, existe previsão em vários dispositivos na Constituição da República de 1988, a saber:

Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: [...]

V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.

 

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]

§ 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

 

Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: [...]

V - a probidade na administração;

 

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I - processar e julgar, originariamente: [...]

c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente; (BRASIL, 1988, grifos nossos)

Conforme dicção do inciso V do artigo 85 da CRFB, transcrito acima, atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição e, especialmente, contra a probidade da administração, em outras palavras, são atos de improbidade administrativa.

Com efeito, mencionado inciso configura o fundamento da Lei nº 1.079/50, que define os crimes de responsabilidade, bem como seu processo e julgamento. Ressalte-se que tal norma, datada dos anos 50, foi recepcionada pela Constituição de 1988.

Contudo, o regime jurídico sancionatório dos atos de improbidade não se resume à Lei nº 1.079/50, encontrando guarida também no Decreto-Lei nº 201/67 (dispõe sobre a reponsabilidade de prefeitos e vereadores), no regime da Lei de improbidade (Lei nº 8.429/92), e no sistema da recente Lei anticorrupção (Lei nº 12.846/13).

3 LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA VERSUS LEI DOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE

Nos termos do art. 85, inciso V, da CRFB, ato de improbidade pode ensejar crime de responsabilidade (BRASIL, 1988). Ou seja, agentes políticos respondem por atos de improbidade. A divergência, portanto, está em definir se a responsabilização do agente político deve se dar com base na Lei dos crimes de reponsabilidade (Lei nº 1.079/50 e Decreto-Lei nº 201/67), com espeque na Lei de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92) ou em ambas (dualidade de sanções).

Destarte, por sua relevância, a discussão já chegou, inclusive, ao Supremo Tribunal Federal (STF), na Reclamação Constitucional 2138/DF (BRASIL, 2008b). Além disso, atualmente se encontra em tramitação no STF o Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 683235/PA (reautuado como RE/976566), o qual teve sua repercussão geral reconhecida (BRASIL, 2013). O ponto em análise nos autos é a possibilidade de julgamento de prefeitos com fundamento tanto na Lei de Improbidade Administrativa quanto no Decreto-Lei nº 201/67.

O julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo 683235/PA (BRASIL, 2013), que firmará a posição do STF em relação à aplicação das sanções da LIA aos chefes dos Executivos municipais, bem como a Reclamação Constitucional 2138/DF (BRASIL, 2008b), já julgada pelo Supremo, estão no centro de toda a discussão sobre a possibilidade de aplicação da Lei de Improbidade Administrativa aos agentes políticos.

Na Reclamação Constitucional 2138/DF (BRASIL, 2008b) o STF entendeu que a atual Constituição distingue o regime de responsabilidade dos agentes políticos do regime conferido aos demais agentes públicos, assim como não admitiu, para os agentes políticos, a concorrência dos dois sistemas de responsabilização (Lei dos crimes de responsabilidade e Lei de improbidade administrativa). Em suma, o Supremo entendeu, neste caso específico (inter partes), que a responsabilidade dos agentes políticos, com fundamento no princípio da especialidade, deve se dar com base na Lei dos crimes de reponsabilidade (Lei nº 1.079/50 e Decreto-Lei nº 201/67), e não com fulcro na Lei de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92).

Destaque-se que a decisão da Reclamação Constitucional 2138/DF não possui efeito vinculante nem eficácia erga omnes, além de ter sido decidida pela exígua maioria de apenas um único voto. Segue parte da ementa:

EMENTA: [...] II. MÉRITO. II.1. Improbidade administrativa. Crimes de responsabilidade. Os atos de improbidade administrativa são tipificados como crime de responsabilidade na Lei n° 1.079/1950, delito de caráter político-administrativo. II.2. Distinção entre os regimes de responsabilização político-administrativa. O sistema constitucional brasileiro distingue o regime de responsabilidade dos agentes políticos dos demais agentes públicos. A Constituição não admite a concorrência entre dois regimes de responsabilidade político-administrativa para os agentes políticos: o previsto no art. 37, § 4º (regulado pela Lei n° 8.429/1992) e o regime fixado no art. 102, I, "c", (disciplinado pela Lei n° 1.079/1950). Se a competência para processar e julgar a ação de improbidade (CF, art. 37, § 4º) pudesse abranger também atos praticados pelos agentes políticos, submetidos a regime de responsabilidade especial, ter-se-ia uma interpretação ab-rogante do disposto no art. 102, I, "c", da Constituição. II.3. Regime especial. Ministros de Estado. Os Ministros de Estado, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade (CF, art. 102, I, "c"; Lei n° 1.079/1950), não se submetem ao modelo de competência previsto no regime comum da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n° 8.429/1992). II.4. Crimes de responsabilidade. Competência do Supremo Tribunal Federal. Compete exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar os delitos político-administrativos, na hipótese do art. 102, I, "c", da Constituição. Somente o STF pode processar e julgar Ministro de Estado no caso de crime de responsabilidade e, assim, eventualmente, determinar a perda do cargo ou a suspensão de direitos políticos. II.5. [...] Incompetência dos juízos de primeira instância para processar e julgar ação civil de improbidade administrativa ajuizada contra agente político que possui prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal, por crime de responsabilidade, conforme o art. 102, I, "c", da Constituição. III. Reclamação Julgada Procedente. (BRASIL, 2008b, grifos nossos)

Inobstante o entendimento firmado na Reclamação 2138/DF, exposto acima, a composição dos membros da Corte se alterou, de tal sorte que o julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo 683235/PA (BRASIL, 2013), ainda pendente, esclarecerá a atual posição do STF em relação à possibilidade de aplicação das sanções da Lei de improbidade administrativa aos agentes políticos, com destaque aos chefes dos Executivos municipais.

O tópico questionado no Recurso Extraordinário com Agravo trata da viabilidade ou não do processo e julgamento de prefeitos, com espeque na Lei nº 8.429/92, por atos de improbidade administrativa (BRASIL, 2013).

4 SUJEITO ATIVO DO ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E PRINCÍPIO DA ISONOMIA

A improbidade administrativa foi alçada a um patamar diferente dos crimes de responsabilidade na Constituição de 1988. Além disso, inexiste disposição constitucional que exima os agentes políticos, que inegavelmente respondem por crimes de responsabilidade, de quaisquer das sanções por ato de improbidade administrativa (art. 37, § 4º). Previsão normativa infraconstitucional que criasse imunidade desta estirpe, por seu turno, seria inegavelmente inconstitucional, eis que não cabe ao legislador ordinário limitar o alcance do mandamento constitucional.

Por conseguinte, enquanto o sujeito passivo do ato de improbidade administrativa é o ente público lesado (art. 1º, da Lei nº 8.429/92), o sujeito ativo, de maneira ampla, será qualquer agente público (administrativo ou político), servidor ou não, bem como eventuais beneficiários: 

Art. 2° Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior.

 

Art. 3° As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta. (BRASIL, 1992)

Com base nos dispositivos acima, o sujeito ativo do ato ímprobo pode ser caracterizado como:

[...] aquele que pratica o ato de improbidade, concorre para sua prática ou dele extrai vantagens indevidas. É o autor ímprobo da conduta. Em alguns casos, não pratica o ato em si, mas oferece sua colaboração, ciente da desonestidade do comportamento. Em outros, obtém benefícios do ato de improbidade, muito embora sabedor de sua origem escusa (CARVALHO FILHO, 2012, p. 1064).

O princípio da isonomia, verdadeira norma constitucional, consiste em uma igualdade dinâmica e justa, aplicável aos indivíduos na exata medida de suas semelhanças e dessemelhanças. Todos os agentes públicos estão vinculados ao dever de probidade, logo, diante de sua violação devem se submeter, por isonomia, ao mesmo regime de responsabilização. Entendimento diverso, além de inconstitucional, seria injusto.

Isso posto, destaque-se que a Lei de improbidade administrativa, por se dirigir indistintamente a todos os agentes públicos, gênero este que engloba os agentes políticos, revela-se em consonância com o princípio constitucional da isonomia, inclusive, fortalecendo-o no ordenamento jurídico nacional.

5 AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: NATUREZA JURÍDICA

Conforme voto proferido pelo Ministro Ricardo Lewandowski na Petição 3.923-8/SP, é importante frisar que o art. 37, p. 4°, da CRFB, distingue nitidamente as sanções impostas aos atos de improbidade administrativa das sanções tipicamente penais. O dispositivo em comento traz um rol de sanções a serem aplicadas aos atos de improbidade, contudo, determina que isso se dará sem prejuízo da pertinente ação penal. Com efeito, majoritariamente entende-se que a ação de improbidade administrativa não possui natureza penal, mas sim inquestionável natureza cível.

No mesmo sentido do art. 37, p. 4°, da CRFB, o art. 12 da LIA:

Art. 12.  Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: [...] – grifo nosso. (BRASIL, 1992, grifo nosso)

Inobstante algumas das condutas previstas como atos de improbidade igualmente sejam previstas como crimes, os atos de improbidade não são considerados infrações penais. Seguindo lógica similar, a existência da mesma sanção em áreas diferentes (penal, improbidade, e responsabilidade política) também não torna da mesma natureza o processo que as impõe. Corroborando o exposto, segue fragmento da ementa da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.797/DF, em que o STF estabeleceu a face essencialmente civil da ação de improbidade:

EMENTA: [...] 5. De outro lado, pretende a lei questionada equiparar a ação de improbidade administrativa, de natureza civil (CF, art. 37, § 4º), à ação penal contra os mais altos dignitários da República, para o fim de estabelecer competência originária do Supremo Tribunal, em relação à qual a jurisprudência do Tribunal sempre estabeleceu nítida distinção entre as duas espécies. (BRASIL, 2006, grifos nossos)

Em complementação, o entendimento de Alexandre de Moraes:

 

A natureza civil dos atos de improbidade administrativa decorre da redação constitucional, que é bastante clara ao consagrar a independência da responsabilidade civil por ato de improbidade administrativa e a possível responsabilidade penal, derivadas da mesma conduta, ao utilizar a fórmula "sem prejuízo da ação penal cabível”. (MORAES, 2007, p. 353-354).

Outro argumento para afastar a natureza penal dos atos de improbidade administrativa, previstos no rol trazido pela Lei nº 8.429/92, está na não taxatividade deste. Por ser aberto, englobando comportamentos variados, trata-se de um conceito jurídico indeterminado, incompatível com o princípio da reserva legal, princípio balizador da tipificação penal de condutas (BATISTI, 2015, p. 126).

A definição do rito processual e do órgão jurisdicional competente para o processo e julgamento do agente público ímprobo depende diretamente da natureza jurídica da ação de improbidade administrativa, daí a relevância deste ponto. A natureza cível da ação de improbidade afasta, por exemplo, o foro por prerrogativa de função constitucionalmente previsto, nas demandas de natureza penal, para alguns agentes políticos. Portanto, em regra, cabe inicialmente ao juízo cível de primeiro grau processar e julgar as demandas propostas com fulcro na Lei nº 8.429/92 (ALVES, 2011, p. 509-510).

6 DA CONCORRÊNCIA DOS CAMPOS DE REPSONSABILIDADE DO DIREITO

De início, com o fito de fazer contraponto à natureza dos atos de improbidade, segue breve explicação sobre a natureza jurídica dos crimes de responsabilidade:

[...] são infrações político-administrativas definidas na legislação federal, cometidas no desempenho da função, que atentam contra a existência da União, o livre exercício dos Poderes do Estado, a segurança interna do País, a probidade da Administração, a lei orçamentária, o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais e o cumprimento das leis e das decisões judiciais. (MELLO, 1980, p. 98, grifo nosso)

Por conseguinte, ciente da existência de esferas distintas e independentes de responsabilidade que podem atingir os indivíduos (cível, penal e administrativa), a responsabilização do agente público por ato de improbidade, nos termos da Lei nº 8.429/92 (natureza cível), não colide com a sua responsabilização por crime de responsabilidade (natureza política e penal), eis que estamos diante de esferas diferentes do Direito, o que afasta qualquer risco de violação ao princípio do ne bis in idem. Existem precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) neste mesmo sentido: Reclamação 2790/SC, DJe 04/03/2010.

É comum que uma mesma conduta capaz de provocar dano à Administração Pública, com reflexos cíveis, seja prevista como crime e configure infração administrativa. Logo, como as searas mencionadas possuem natureza e fundamentos diversificados, é possível, sem qualquer incompatibilidade, que o indivíduo suporte responsabilização cível, penal e administrativa, sendo isso muito tranquilo e pacífico. Os campos de responsabilidade do Direito concorrem, não se excluem, consoante se infere da doutrina:

Todos os agentes públicos que praticam infrações estão sujeitos a responder nas esferas penal, civil, administrativa e político-administrativa. Nenhuma razão existe para que os agentes políticos escapem à regra, até porque, pela posição que ocupam, têm maior compromisso com a probidade administrativa, sendo razoável que respondam com maior severidade pelas infrações praticadas no exercício de seus cargos. (DI PIETRO, 2013, p. 901, grifo nosso)

Em contraste, é importante esclarecer que, quanto à natureza jurídica, existe entendimento minoritário no sentido de que tanto os atos de improbidade quanto os crimes de responsabilidade possuem natureza de infrações politico-administrativas, logo, por serem equivalentes, se confundiriam. Em síntese, devido a esta identidade, ofenderia a regra do ne bis in idem a incidência dos dois sistemas de responsabilização sobre uma mesma conduta (BIANCHINI, 2008, p. 49).

7 DA VIABILIDADE DA DUALIDADE DE SANÇÕES (PETIÇÃO 3.923-8/SP)

Outrossim, uma análise mais detida da argumentação trazida na Petição 3.923-8/SP, que brevemente será feita a seguir, pode sinalizar para o entendimento atual da Suprema Corte acerca da aplicabilidade, ou não, da Lei de improbidade administrativa aos agentes políticos, entendimento este, que certamente influenciará no futuro julgamento do já mencionado Recurso Extraordinário com Agravo 683235/PA, cuja repercussão geral foi reconhecida.

Veja a ementa da Questão de Ordem em Petição 3.923-8/SP:

EMENTA: [...] O pedido foi indeferido sob os seguintes fundamentos: 1) A lei 8.429/1992 regulamenta o art. 37, parágrafo 4º da Constituição, que traduz uma concretização do princípio da moralidade administrativa inscrito no caput do mesmo dispositivo constitucional. As condutas descritas na lei de improbidade administrativa, quando imputadas a autoridades detentoras de prerrogativa de foro, não se convertem em crimes de responsabilidade. (BRASIL, 2008a, grifo nosso)

            Em seu voto, proferido na Petição 3.923-8/SP, o Relator Senhor Ministro Joaquim Barbosa trouxe relevante argumentação no sentido da viabilidade da dualidade de sanções no que toca aos agentes políticos, possível tanto na seara da improbidade administrativa, quanto com fulcro nos crimes de responsabilidade (BRASIL, 2008a).

            Para o Ministro, em sede de improbidade, existe no Brasil uma normatividade dúplice, cada qual com finalidades constitucionais diversas: a Lei de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92) e a Lei dos crimes de responsabilidade (Lei nº 1.079/50 e Decreto-Lei nº 201/67). Destaca também que, embora com escopos diferentes, ambas as normatividades buscam proteger o princípio constitucional da moralidade na Administração Pública (BRASIL, 2008a).

            Enquanto a LIA (BRASIL, 1992), derivada do art. 37, p. 4º, da CRFB, busca prevenir e reprimir a ocorrência de atos antiéticos e desonestos por agentes públicos, a Lei dos crimes de responsabilidade (fundada no art. 85, inciso V, da CRFB) é voltada à apuração da responsabilidade política, buscando retirar do poder o agente político faltoso (BRASIL, 1950). Assim sendo, patente tratar-se de institutos díspares, porém complementares, e que não se excluem, inobstante originados dos mesmos fatos.

            Enfim, segundo o Ministro Joaquim Barbosa, a ordem constitucional brasileira não rejeita a possibilidade de duplicidade de sanções. Desde que o escopo das demandas punitivas seja diverso, inexiste bis in idem (BRASIL, 2008a). Como já demonstrado, as responsabilizações por ato de improbidade e por crime de responsabilidade claramente possuem objetivos não coincidentes. Neste diapasão:

Ora, com afirma Eduardo Bim, se o nosso ordenamento jurídico admite, em matéria de responsabilidade dos agentes políticos, a coexistência de um regime político com um regime puramente penal, por que razão haveria esse mesmo ordenamento jurídico de impedir a coabitação entre responsabilização política e improbidade administrativa? Noutras palavras, se a Constituição permite o mais, que é a cumulação da responsabilidade política com a responsabilidade penal, por que haveria de proibir o menos, isto é, a combinação de responsabilidade política com responsabilidade por improbidade administrativa? (BRASIL, 2008a, p. 14-15, grifo nosso)

            Ademais, em respeito ao regime democrático, afastar a possibilidade de duplicidade de sanções aos agentes políticos não seria adequado, tampouco razoável, eis que, quanto maior o status e poder do indivíduo, proporcionalmente maior também deve ser sua responsabilidade, nunca o inverso. Petição 3.923-8/SP:

[...] um dos postulados básicos do regime democrático, aquilo que no direito norte-americano se traduz na elucidativa expressão “accountability”, e que consiste no seguinte: nas verdadeiras Democracias, a regra fundamental é, quanto mais elevadas e relevantes as funções assumidas pelo agente público, maior há de ser o grau de sua responsabilidade, e não o contrário [...] (BRASIL, 2008a, p. 15-16, grifo nosso)

            Na mesma linha de raciocínio, trecho do voto do Ministro Carlos Velloso na Reclamação 2138/DF:

Isentar os agentes políticos da ação de improbidade administrativa seria um desastre para a administração pública. Infelizmente, o Brasil é um país onde há corrupção, apropriação de dinheiros públicos por administradores ímprobos. E isso vem de longe. (BRASIL, 2008b, p. 176, grifo nosso)

8 RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO (ARE) 683235/PA

Recordando, o ARE 683235/PA, cuja repercussão geral foi reconhecida pelo STF, versa sobre a possibilidade ou não do processo e julgamento de prefeitos, com supedâneo na Lei nº 8.429/92, por atos de improbidade administrativa (BRASIL, 2013).

Dentre outras finalidades, a Lei nº 8.429/92 foi introduzida no ordenamento nacional com vistas a garantir a tutela da aplicação dos recursos públicos em favor da coletividade, sobretudo em âmbito municipal, representando poderoso instrumento de combate à corrupção. Nas palavras do Ministro Carlos Velloso:

No “ranking” internacional dos países onde há corrupção, estamos muito mal colocados. Esse “ranking” é organizado, em regra, por organizações não governamentais que combatem esse mal. Precisamos, portanto, nos esforçar, cada vez mais, para eliminar a corrupção da administração pública. Ora, o meio que me parece mais eficiente é justamente o de dar a máxima eficácia à Lei de Improbidade. Refiro-me, especialmente, às administrações municipais. Temos mais de cinco mil municípios. Em cada um deles, há um promotor fiscalizando a coisa pública municipal. Abolir a ação de improbidade relativamente aos agentes políticos municipais seria, repito, um estímulo à corrupção. (BRASIL, 2008b, p. 176-177, grifos nossos).

Atualmente no país existem milhares de ações civis públicas de improbidade administrativa tramitando contra prefeitos municipais (BRASIL, 2008b). Partindo dessa premissa, a vitória no Supremo do entendimento segundo o qual os agentes políticos não respondem nos termos da LIA, em uma análise consequencialista, ocasionaria a paralização dessas inúmeras demandas, o que seria, de fato, desastroso. Veja:

E mais: administradores ímprobos que foram condenados a restituir dinheiros aos cofres públicos poderiam pedir a repetição desses valores, porque teriam sido condenados por autoridade judicial incompetente. (BRASIL, 2008b, p. 177).

            Com efeito, por todo o exposto, patente que o entendimento mais adequado e que deve prevalecer no ARE 683235/PA é aquele que concede máxima eficácia à Lei de improbidade e, consequentemente, máxima eficácia aos princípios constitucionais, com destaque aos princípios vetores da Administração Pública. Os agentes políticos, assim como qualquer agente público, devem se sujeitar à Lei de improbidade administrativa. Entender o contrário seria um retrocesso, sobretudo no combate à corrupção.

            Os prefeitos, portanto, devem responder por atos de improbidade tanto com base na sua Lei específica que tipifica os crimes de responsabilidade (Decreto-Lei nº 201/67), quanto com fundamento na Lei de improbidade administrativa, posição esta que, claramente, fortalece o princípio da moralidade na Administração Pública (art. 37, caput, da CRFB).

9 CONCLUSÃO

Como visto, o cabimento da Lei de improbidade administrativa aos agentes políticos é objeto de muita discussão. Argumenta-se que estes estariam sujeitos a regime próprio e especial de responsabilização, portanto, suas infrações, que seriam necessariamente infrações político-administrativas, se amoldariam à Lei dos crimes de responsabilidade. Tal posicionamento foi o acolhido pelo STF na Reclamação 2138/DF. Asseverou-se que a Constituição não admite a concorrência entre dois regimes de responsabilização politico-administrativa aos agentes políticos, devendo ser afastada, consequentemente, a Lei de improbidade administrativa.

Ao longo do artigo vários argumentos foram apresentados no sentido de desconstruir a tese fixada na Reclamação 2138/DF. Inicialmente constatou-se que inexiste qualquer disposição constitucional, tampouco infraconstitucional, que exima os agentes políticos de serem responsabilizados na seara da improbidade administrativa. Ao abarcar democraticamente todos os agentes públicos a LIA realiza o princípio constitucional da isonomia, sendo este um de seus pontos fortes

Além disso, a natureza jurídica dos atos de improbidade administrativa é cível, não se devendo confundir tais atos com as infrações de natureza politico-administrativa, como é o caso dos crimes de responsabilidade. Ademais, conforme a precisa argumentação esposada na Petição 3.923-8/SP, o escopo das normatividades em testilha também é indiscutivelmente diverso, o que reforça o argumento de que estas se complementam, nunca se excluem.

Com efeito, as esferas dos atos de improbidade e dos crimes de responsabilidade são independentes e não se eliminam, podendo existir judicialmente de forma concomitante e autônoma, embora derivadas da mesma conduta, e possibilitando resultados finais completamente distintos. Este é o entendimento mais adequado e que se espera que seja acolhido no ARE 683235/PA, ainda pendente de julgamento no STF. O Ministério Público Federal, através de parecer ofertado nos autos, manifestou-se exatamente neste sentido.

Também é razoável se presumir que a reponsabilidade de um agente político, quanto mais alta a sua posição hierárquica na Administração, igualmente deva se elevar de forma proporcional. Defender que os agentes políticos mais graduados estão isentos da Lei de improbidade enquanto todos os demais agentes públicos a ela se subjugam é uma subversão da lógica do sistema.

Por fim, pode-se inferir que aplicar a Lei de improbidade em sua máxima eficácia é, por todos os indícios, um meio eficiente de combate à corrupção. Assim sendo, não assiste razão aos que defendem a impossibilidade de coexistência da responsabilidade cível e política por atos de improbidade administrativa. Ou seja, os agentes políticos, além da Lei dos crimes de responsabilidade, estão submetidos também à Lei 8.429/92. Essa é a posição que melhor realiza e fortalece o princípio constitucional da moralidade na Administração Pública.

REFERÊNCIAS

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ALVES, Rogério Pacheco; GARCIA, Emerson. Improbidade Administrativa. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

BATISTI, Nélia Edna Miranda. PIMENTA, Julia Acioli. A aplicabilidade da Lei de Improbidade Administrativa aos agentes políticos. Revista do Direito Público. Londrina, v.10, n.3, p.119-140, set/dez., 2015.

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Data da conclusão/última revisão: 2017-03-02

 

Como citar o texto:

COSTA, Ricardo Hoeveler..Agentes políticos: Lei de Improbidade Administrativa versus Lei dos Crimes de Responsabilidade. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 28, nº 1489. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-publico/3789/agentes-politicos-lei-improbidade-administrativa-versus-lei-crimes-responsabilidade. Acesso em 5 dez. 2017.

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