Resumo: O escopo do presente consiste na discussão do direito fundamental à identidade de gênero do transexual. Nesse enfoque, o estudo tem por onjetivo geral de demonstrar que, nos moldes do Estado Democrático de Direito, grafado na Carta Magna de 1988, a diversidade de gênero deve ser objeto de respeito e compreensão e que o direito à tal identidade e reconhecimento de gênero é inerente à personalidade do indivíduo e igualmente fundamental, devendo ser defendido e resguardado.

Palavras-chave: Transgênero. Mudança de nome. Reconhecimento pela Suprema Corte.

Abstract

: The scope of the present is the discussion of the fundamental right to the gender identity of the transsexual. In this approach, the study has the general aim of demonstrating that, according to the Democratic Rule of Law, as outlined in the 1988 Charter, gender diversity must be respected and understood and that the right to such identity and gender recognition is inherent in the personality of the individual and equally fundamental, and must be defended and protected.

Keywords:

 Transgender. Name change. Recognition by the Supreme Court.

Sumário: 1 Introdução; 2 Direitos sexuais, reprodutivos e de autodeterminação sexual em pauta; 3 A dignidade da pessoa humana e o direito à identidade; 4 O direito de ser quem é: o reconhecimento da possibilidade de modificação do nome pelo transgênero à luz do STF; 5 Conclusão

 

1 INTRODUÇÃO

Ao ultrapassar os limites previamente estabelecidos e determinados ao gênero ou sexualidade, na medida em que põe em xeque e altera códigos preestabelecidos pela sociedade como padrão de conduta, é assumir uma identidade rotulada como “desviante” e “anormal”, suscetível a retaliações e julgamentos, porquanto minoria. Impende assim, considerar que o tema da diversidade sexual é uma das feições mais complexas e de difícil tratamento da sexualidade por parte da sociedade humana.

Ressai disto que, como questão básica é que as pessoas sejam reconhecidas e nomeadas pelo modo como elas se identificam para o outro, e sejam respeitadas como tal. Sendo assim, toda pessoa tem o direito a ser igual quando a sua diferença o inferioriza, e todos têm o direito a ser diferentes quando a sua igualdade os descaracteriza (HOGEMANN, 2014, p. 217).

Nesse contexto, busca-se dar crédito, respeito e valor à diversidade, dentro de uma sociedade permeada por elementos morais contraditórios, por vezes laicizada, o que, no mínimo, é desafiador, por permitir enveredar em um universo múltiplo, que não deve ser objeto de estigmas.

Certamente, pessoas que nunca tenham se defrontado com o tema, ainda estão envoltas em uma nuvem de preconceito, simplificada na classificação estereotipada de que transexuais, em verdade, seriam gays e lésbicas, ou, mais precisamente, pessoas com interesse estritamente sexual no mesmo sexo biológico que possuem.

Conquanto, em verdade, ao se debruçar sobre o universo de gênero, possível o vislumbrar de uma variedade que transborda o elemento sexual, classificada por: homossexuais masculinos e femininos; bissexuais; intersexuais; travestis e transexuais, cada um com suas particularidades, com seus anseios, com sua realidade física, emocional, psíquica e contextualizados em espaços sociais diferenciados.

Nessa acepção, torna-se imprescindível estudar o tema referido, em virtude da escassez de doutrina brasileira atualizada sobre o assunto, principalmente na área do Direito. Busca-se, assim, no presente trabalho, discorrer sobre o direito à identidade, analisando o direito ao nome, trazendo noções de “nome social”, a fim de avaliar a relevância da alteração do assentamento registral para garantia do direito à personalidade dos transexuais (ROCHA; SÁ, 2013).

 

2 DIREITOS SEXUAIS, REPRODUTIVOS E DE AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL EM PAUTA

Como ponto de partida, necessária o repisar que a trajetória dos Direitos Humanos parte da afirmação da liberdade individual, com primazia pela definição de direitos universais soberanos em relação às circunstâncias estatais, e avança na direção da responsabilização dos estados na garantia de direitos que passam a ser depurados e especificados segundo a particularidade dos indivíduos e grupos sociais. Portanto, a discussão sobre os direitos humanos apresenta um movimento pendular que explicita o antagonismo que o caracteriza, ao afirmar sincronicamente o direito à igualdade e à diferença, à universalidade e à especificidade.

Para tanto, um fator importante no desencadeamento da consideração de direitos sexuais foi a resposta à epidemia de HIV/Aids que, ainda que se início tenha associado travestis e homossexuais a grupos de risco, incitando a estigmatização a esses grupos sociais, avançou em suas estratégias de enfrentamento para a consciência dos efeitos discriminatórios bem como a da relação necessária entre a questão da sexualidade e a do Direito.

Em tal perspectiva, o desenvolvimento dos direitos LGBT avançou e se consolidou na consideração de questões relativas ao acesso aos serviços de saúde. Trata-se de uma peculiaridade no processo de construção de direitos sexuais eu contemplem a população GLBT, e que diferencia a lógica jurídica em relação aos processos análogos. Conquanto no Brasil e em outros países da América Latina a questão dos direitos sexuais e da população GLBT avança a partir de demandas por direitos sociais, nos EUA e Europa esses direitos avançaram desde demandas que invocam o direito à privacidade e a não sofrer discriminação, ou seja, dos direitos negativos ou os da não intromissão do Estado e de terceiros nas escolhas individuais.

Nessa vertente, o discurso médico contribui em grande parte para a patologização de identidades e práticas sexuais socialmente estigmatizadas, alimentando e legitimando processos discriminatórios. Diante dessa afirmação, cabe esclarecer que a luta por um direito democrático da sexualidade requer a desmedicalização do discurso e das práticas a respeito dos direitos sexuais e reprodutivos, democratizando a discussão sobre a sexualidade para além do viés médico-biológico.

Desse contexto, ressai que a demanda para reprodução assistida vigora não apenas entre casais homossexuais, mas também entre travestis e transexuais, indicando um complexo campo de reflexão para o Direito. O reconhecimento de que a reprodução da espécie deixa de ser o motivo e o fundamento da relação sexual, concebida finalmente como prática humana imersa na lógica do prazer e da cultura, é fundamental para que se possam democratizar os direitos sexuais e reprodutivos. Ainda, implica em reconhecer a possibilidade de constituições humanas que não atestam a linearidade da determinação do sexo biológico sobre os destinos da subjetivação, tais como evidenciam mulheres e homens transexuais, pela incongruência entre a identidade de gênero e o sexo anatômico, e as travestis, pela ostentação da marca da duplicidade dos sexos em suas constituições identitárias (LIONÇO, 2008).

Dessa feita, a necessidade da consolidação de uma cultura democrática pelo direito à saúde integral, envolvendo a complexificação e o alargamento da compreensão dos direitos sexuais e reprodutivos, requer que a discussão sobre saúde para esses segmentos populacionais se construa em estreita interface com o campo jurídico. Como exemplo dos desafios concretos que se colocam para além da superação do estigma e da homofobia, vale mencionar a consideração da orientação sexual e identidade de gênero em normas e políticas para as práticas assistidas de reprodução. Destaca-se, também, a necessidade da regulamentação da atenção a travestis na perspectiva da redução de danos pelo uso indiscriminado de hormônios e da aplicação do silicone liquido industrial, demandando a proposição de normas que permitam ao profissional não ter suas práticas interventivas significadas legalmente como crimes de lesão corporal. Cabe ainda notar a necessidade do questionamento crítico do desejo pela cirurgia transgenital ser tomado como critério diagnóstico para a transexualidade.

Para tais desafios, contudo, só podem ser enfrentados caso a gestão rompa com processos de discriminação institucionalizados. A orientação sexual e identidade e gênero já são fatores incluídos em variadas políticas e ações estratégicas em saúde, dentre as quais a política de atenção integral à saúde do jovem e adolescente, a política de atenção integral a mulher, a política nacional de humanização, a política de promoção da equidade na saúde da população negra, bem como nos planos de enfrentamento à epidemia de HIV/Aids entre gays e travestis e o de feminilização da epidemia, e o projeto saúde e prevenção nas escolas, para citar algumas. Isso reflete que a orientação sexual e a identidade de gênero, mais do que demandar uma política específica, devem ser pauta para diversas políticas enquanto determinantes associados a outros na saúde das pessoas (LIONÇO, 2008).

 

3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO À IDENTIDADE

Adentrando ao tópico e abordando outro princípio de relevante importância é o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como direito fundamental, uma vez que as próprias normas de direitos fundamentais trazem consigo um cunho principiológico, encontrado seu fundamento, também, na dignidade da pessoa humana. De tal, segundo Marcelo Novelino, o princípio da dignidade da pessoa humana é o núcleo do constitucionalismo contemporâneo, e, constitui o valor supremo que irá informar a criação, a interpretação e a aplicação de toda a ordem normativa constitucional, sobretudo, o sistema de direitos fundamentais (NOVELINO, 2012, p.12-13, apud. BARBOSA, 2012, s. p.).

Portanto, a dignidade apresenta-se como o alicerce de todos os valores morais, a síntese de todos os direitos do homem, como sendo tudo aquilo que não tem preço e que não pode ser abjeto de troca, fundamenta-se na valorização da pessoa como fim em si mesmo e não como objeto ou meio para se atingir outros fins (RENON, 2009, p. 36). Dessa forma, como valor intrínseco da pessoa humana, a dignidade não pode ser violada ou sacrificada. Ressaindo assim, o princípio da dignidade há que ser observado a cada aplicação da lei, a cada julgamento emitido pelo Poder Judiciário, bem como em toda ação de qualquer indivíduo da sociedade. É princípio cuja aplicação propicia o reconhecimento do homem como ser digno de proteção.

Portanto, o princípio jurídico da dignidade como fundamento da República, exige como pressuposto a intangibilidade da vida humana. Sem vida, não há pessoa, e sem pessoa, não há dignidade. Assim, de tal justificativa, pode-se extrair o impar respeito à vida, integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma subsistência digna não são asseguradas, onde a liberdade e autonomia e igualdade em direitos não obtiverem reconhecimento e o mínimo de garantia, não haverá margens para a dignidade humana, por sua vez, poderá ser adquirida como um mero objeto de arbítrio e injustiças.

Destarte, o que se registra é que a pessoa tem dignidade exatamente por ser pessoa, de modo que o princípio da dignidade é o primeiro de todos, ou seja, seu valor transcende a qualquer outro direito. O ser humano possui em si mesmo um valor moral intransferível e inalienável, cuja atribuição se deu exatamente pelo fato de ser pessoa humana, independentemente de suas qualidades individuais (RENON, 2009, p. 38).

Para tanto, de suma frisar ainda, que a Constituição Federal de 1988 trouxe dispositivo hábil à promoção do bem estar social, declarando, assim, como um de seus fundamentos a proteção à dignidade da pessoa humana, tratando da igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, sendo, então, protegidos de qualquer forma de discriminação em razão de sexo, com promoção do bem estar de todos, sem distinção.

Nessa toada, a Carta Magna veda a discriminação por motivo de sexo ou identidade de gênero, amparando, assim, não só os heterossexuais como também os homossexuais, os transexuais e os travestis em relação à sua sexualidade, tendo em mente o direito fundamental à liberdade, o qual fundamenta o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e da privacidade de cada pessoa.

Para tanto, protege, assim, a opção sexual de cada um e garante, dessa forma, o direito à saúde, não restringindo este apenas ao bem-estar físico, mas também ao bem-estar psíquico e social. Assim, a transexualidade apresenta duas abordagens: uma biomédica e outra social. Na primeira fica definido a transexualidade como um distúrbio de identidade de gênero, por entender que se trata de um transtorno de identidade que sempre envolve sofrimento pessoal, devido ao fato do indivíduo se considerar membro do sexo oposto, causando-lhe descontentamento com o seu sexo biológico, de tal, enquadra-se esse “distúrbio” na psiquiatria. A segunda abordagem, a social, funda-se no direito à autodeterminação da pessoa, de afirmar livremente e sem a coação a sua identidade como consequência dos direitos fundamentais.

De tal acepção previamente, ser transexual não é o mesmo que ser homossexual ou travesti, justifica-se pelo fato de que o homossexual é aquele que tem atração sexual por pessoas do mesmo sexo, sem que, necessariamente, isso indique uma mudança de identidade de gênero. Ou seja, pode se identificar como membro integrante do seu sexo biológico, mas, em vez de sua opção sexual ser pelo sexo oposto, opta por parceiros do mesmo sexo. Lado outro, no caso do travesti, é o homem que faz uso de roupas e modificações corporais, como o implante de silicone, para parecer uma mulher sem, no entanto, buscar por uma cirurgia de designação de sexo. Portanto, aceita o seu corpo biológico masculino, apesar de se identificar uma mulher.

Finalmente, o transexual é aquele individuo cuja consciência psíquica situa-se em um sexo diferente do seu sexo biológico, causando-lhe uma disforia de gênero, o que o leva a demandar a mudança de sexo por intermédio de uma cirurgia. Após a redesignação sexual, ingressa com o consequente pedido de mudança do nome civil e do sexo em seu registro civil.

Nesse diapasão, com intuito de tutelar a dignidade dos transexuais, para que o uso de seu nome civil, ou seja, aquele constante no seu registro de nascimento, não lhe cause constrangimento, alguns estados da federação e órgão públicos federais, em decorrência da prática de políticas públicas de inclusão social e acesso da cidadania pelos travestis e transexuais, passaram a reconhecer o uso formal do nome social pelos transexuais e travestis.

De tal importância para os transexuais a mudança de nome, eis que fortalece sua identidade como se mulher fosse. A coação sofrida por serem chamados pelo nome que não correspondem à sua autoimagem provoca-lhes um alheamento que confirma o despreparo dos espaços sociais, mesmo os ditos “educativos” para o trato desta questão: poucas são as ações desenvolvidas nesse âmbito para o combate de práticas discriminatórias.

Eventual não coincidência entre o sexo anatômico e o psicológico gera problemas de diversas ordens. Além de profundo conflito individual, há repercussões nas áreas médica e jurídica, pois o transexual tem a sensação de que a biologia se equivocou com relação a ele. Ainda que reúna em seu corpo todos os caracteres orgânicos de um dos sexos, seu psíquico prende-se, irresistivelmente, ao sexo oposto. Mesmo sendo aparentemente “normal”, nutre profundo inconformismo com o seu sexo biológico. Em tal, o intenso desejo de modifica-lo leva à busca de adequar a externalidade à sua psique. Um Estado democrático e justo deve ter como princípio básico a tolerância, atentar a multiplicidade de vontades e respeitar as diferenças. O transexual é diferente dos padrões que a sociedade elegeu como sendo “normais”, o que nem por isso permite que seja considerado um anormal (HOGEMANN, 2014).

Nessas premissas, de suma importância é, sobretudo, a busca pelo respeito para com o ser humano, visto que a maior dificuldade enfrentada pelos transexuais relaciona-se com os abusos sofridos para fazerem, ou melhor, desfazerem-se de sua situação no gênero biológico do nascimento (ROCHA; ROTONDO SÁ, 2013).

O direito à identidade é um direito da personalidade, fulcrado na dignidade humana, no reconhecimento do indivíduo como pessoa e na assunção de uma esfera intangível de direitos que não podem ser afastados. Esse direito pode ser avaliado na perspectiva pessoal, familiar e social. A identidade do transexual é reconhecida e validade quando lhe é permitido expressar, de forma ampla, seu sexo psicossocial.

Com efeito, a identidade de gênero parte de uma análise individual, formada no íntimo de cada ser, que não pode ser considerado inato, na medida em que envolve diversos fatores, tais como: reconhecimento pessoal, vida familiar, relacionamento parental, desejos sexuais, capacidade de expressão e comunicação (ROCHA; ROTONDO SÁ, 2013).

 

4 O DIREITO DE SER QUEM É: O RECONHECIMENTO DA POSSIBILIDADE DE MODIFICAÇÃO DO NOME PELO TRANSGÊNERO À LUZ DO STF.

Ressai que o nome como elemento essencial de identificação da pessoa, sendo objeto de proteção e respeito, resguardando o indivíduo de vir a sofrer violações em sua honra. Neste sentido, o transexual, conforme já explanado, tem identidade sexual diversa de sua constituição biológica e, mesmo quando não submetido à cirurgia de redesignação sexual, em razão de seu sexo psicossocial, externaliza comportamento social incompatível com o nome constante em seus documentos pessoais, sendo uma afronta a sua personalidade obstaculizar a alteração de seu nome.

Com efeito, não há como se reconhecer em um Estado Democrático de Direito, fulcrado no respeito aos artigos 1º, III; 3º, IV e 5º da Constituição Federal, sem aceitação da diversidade; sem a prevalência do princípio da igualdade; sem o reconhecimento de um direito fundamental à identidade de gênero, e o afastamento de práticas discriminatórias e atentatórias à privacidade.

Nesta senda. As alterações registrais decorrentes da transsexualidade são indispensáveis à confirmação de uma identidade de gênero e a escusa em sua garantia afronta direitos basilares do Estado Democrático de Direito, razão porque se defende, neste trabalho que a alteração do nome do transexual deve ser facilitada, devendo, enquanto não aprovada lei específica sobre o tema, ser objeto de enfrentamento pelos juízes e tribunais.

Conclui-se que, na hipótese de intervenção judicial mostrar-se-á relevante, posto que possibilita ampla produção de provas e uma maior demonstração de interesse por parte do transexual, que somente procurará judicialmente a alteração do assento civil, se sua convicção efetivamente for grande o suficiente para o enfrentamento do processo.

Assim, no que tange à alteração do nome registral dos que se submeteram a intervenção cirúrgica, seria necessário facilitá-la, quiçá exigindo, antes mesmo de sua realização, comprovantes de que a alteração do nome não causará prejuízos a terceiros, para que, tão logo fosse dada alta ao operado, este já estivesse documentalmente conformado a sua nova realidade.

De tal, imperioso ressaltar que, no ano de 2009, o Ministério Público Federal, ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF buscando dar ao artigo 58 da Lei nº 6.015/73 interpretação conforme a Constituição, de modo a reconhecer aos transexuais, independentemente da cirurgia de transgenitalização, o direito a substituição do prenome e sexo no registro civil.

A peça exordial da referida ADI apresentou os pressupostos teóricos da discussão, conceitos essenciais tais quais os tratados neste trabalho, bem como analisa os pressupostos jurídicos que dão ensejo ao pedido, nomeadamente, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Tratando-se assim, da ADI da essencialidade da mudança de nome e sexo, de modo que não basta apenas mudar o nome e manter o sexo biológico, pois sua situação de constrangimento se manteria, conforme se observa no fracionado trecho abaixo, veja-se:

De resto, se a alteração de nome corresponde a uma mudança de gênero, a consequência lógica, em seu sentido filosófico mesmo, é a alteração do sexo no registro civil. Do contrário preserva-se a incongruência entre a identidade da pessoa e os dados do registro civil (BRASIL, 2018).

Em continuidade, seguia a petição inicial em defesa aos direitos das pessoas transexuais à cirurgia de transgenitalização e de modo conexo, também defendendo a possibilidade de alteração de prenome e sexo a realização da referida cirurgia. Diapasão esta que se observa no seguinte trecho:

[omissis] Não é a cirurgia que concede o indivíduo a condição transexual. Portanto, o direito fundamental à identidade de gênero justifica igualmente o direito à troca de prenome, independentemente da realização da cirurgia, sempre que o gênero reivindicado (masculino ou feminino) não esteja apoiado no sexo biológico respectivo (BRASIL, 2018).

Fica evidenciado assim a necessidade da despatologização da transxualidade e a possibilidade cada vez maior de autodeterminação dos transexuais, os critérios elencados pelo MPF desempenham papel de relevo na destinação de assistência médica e psicológica à pessoa transexual, na proteção e promoção dos direitos das pessoas transexuais, e não sirvam de arbítrio para maior sofrimento dos transexuais (FACHIN, 2014, p. 28).

De tal, ressai assim que, não cabe ao Estado ou mesmo à sociedade fazer ponderação sobre a possibilidade de mudança de nome e sexo dos transexuais. Sendo um direito deve apenas ser reconhecido e declarado. Isso não significa dizer que não se deva prestar toda a assistência necessária aos transexuais, e mesmo que se deva obstar as discussões jurídicas e sociológicas sobre o fenômeno, no entanto, em se tratando de direitos fundamentais, nada disso deve significar barreira ao seu livre exercício.

Conveniente realçar que a alteração do registro civil depende de sentença que a consome, e a jurisprudência vem se pacificando no sentido de reconhecer o direito à mudança do nome e do sexo. Nada obstante isso, veja-se:

Apelações cíveis. Procedimento de jurisdição voluntária com a finalidade de alteração do nome, bem como do gênero na certidão de nascimento da parte autora. Transsexual que não se submeteu a cirurgia de redesignação de sexo. Sentença de parcial procedência no sentido de determinar a alteração do nome. Irresignação tanto da parte requerente, quanto do membro do parquet, este na condição de fiscal de ordem jurídica. A parte requerente visa obter a procedência do seu pleito de alteração do gênero. O presentante do ministério público, por seu turno, recorre, visando a nulidade do julgado por entender que o juízo é absolutamente incompetente, pois se trata de questão de estado, cuja competência seria do juízo da vara de família. Inicialmente cumpre de logo, destacar a preliminar de incompetência absoluta do juízo arguida pelo ministério público, para rejeitá-la, haja vista que se afastando a competência comum das varas cíveis e diante da lacuna da lei de organização judiciária, parece-me que as varas de registros públicos atraem a competência para julgar as ações de alteração de identidade de gênero, especificamente em relação ao sexo e ao nome, tendo aplicação o artigo 109 da lei 6.015/73 que assim reza: "quem pretender que se restaure, supra ou retifique assentamento no registro civil, requererá, em petição fundamentada e instruída com documentos ou indicação de testemunhas, que o juiz o ordene, ouvido o órgão do ministério público e os interessados, no prazo de 5 (cinco) dias, que correrá em cartório." (entendimento que encontra escopo em moderna doutrina). Em análise do recurso autoral, forçoso reconhecer sua procedência, pois o Excelso Supremo Tribunal Federal, na apreciação da ADI nº 4275, julgou procedente o pedido para dar interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58, da Lei 6.015/73, de modo a reconhecer aos transgêneros que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil. De sorte que, desjudicializou o procedimento, além de por termo a discussão de ser ou possível a mudança de gênero independentemente de ato cirúrgico. Cumpre dizer que, antes mesmo dessa decisão da suprema corte, este egrégio tribunal assumindo posição de vanguarda e, dando efetividade ao princípio da dignidade da pessoa humana, inserto no art. 1º, III, da Carta Magna, já vinha admitindo a mudança do gênero independentemente de cirurgia. Dessa forma, impõe-se conhecer dos recursos, pois ambos preenchem os requisitos de admissibilidade, provendo o recurso da parte autora, para determinar a mudança do gênero na sua certidão de nascimento, para nela constar o feminino e desprover o recurso do Ministério Público. (Apelação – Des. Relator JAIME DIAS PINHEIRO FILHO. Data julgamento: 10/04/2018, Décima segunda câmara cível, Publicação:13/04/2018).

Observa-se que para além de uma matriz biologicista, o julgado leva em consideração para sua definição de sexo o princípio da dignidade da pessoa humana, eis que já observado por tantos outros julgados pelo país. No que se compara, veja-se:

Ementa: Apelação Cível. Ação de retificação de registro civil. Transgênero. Mudança de nome e de sexo. Possibilidade, independentemente de cirugia de transgenitalização. Constatada e provada a condição de transgênero da autora, é dispensável a cirurgia de transgenitalização paraefeitos de alteração de seu nome e designativo de gênero no seu registro civil de nascimento. A condição de transgênero, por si só, já evidencia que a pessoa não se enquadra no gênero de nascimento, sendo de rigor que a sua real condição seja descrita em seu registro civil, tal como ela se apresenta socialmente. NEGARAM PROVIMENTO. (Apelação Cível Nº 70073166886, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 11/05/2017).

Ementa: Apelação Cível. Ação de retificação de registro civil. Transgênero. Mudança de nome e de sexo. Possibilidade, independentemente de cirugia de transgenitalização. Constatada e provada a condição de transgênero da autora, é dispensável a cirurgia de transgenitalização paraefeitos de alteração de seu nome e designativo de gênero no seu registro civil de nascimento. A condição de transgênero, por si só, já evidencia que a pessoa não se enquadra no gênero de nascimento, sendo de rigor que a sua real condição seja descrita em seu registro civil, tal como ela se apresenta socialmente. NEGARAM PROVIMENTO, POR MAIORIA. (Apelação Cível Nº 70067669895, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 03/03/2016.

Disso, ressai que, muitos outros julgados poderiam constar neste trabalho, no entanto, os ambos acima já dão conta de demonstrar a mudança de tônica da jurisprudência no sentido de reconhecer o direito das pessoas transexuais de alterarem nome e sexo em seus registros (FACHIN, 2014).

Essa compreensão é tributária de uma aplicação constitucionalizada do direito, na medida em que garante afetividade a princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana. Também há de se levar em conta que cada vez mais, ainda que tardiamente, o direito tem se aberto ás contribuições das demais ciências sociais, ampliando seu rol de intérpretes. Faz-se mister abandonar noções de completude e infalibilidade do direito, para atender ao fato de que o direito positivado, por si só, merece hermenêutica atualizadora capaz de dar justas soluções aos meandros da vida. Pois, muito embora se subscreva a necessidade de despatologização e a possibilidade cada vez maior de autodeterminação dos transexuais, os critérios elencados desempenham o papal de destinação de assistência médica e psicológica à pessoa transexual, na proteção e promoção dos direitos das pessoas transexuais, e não sirvam de arbítrio para maior sofrimento dos transexuais (FACHIN, 2014).

Conquanto, em excerto extraído junto do Supremo Tribunal, tem-se o entendimento do iminente julgador:

Ementa Direito Constitucional e Civil. Registros públicos. Registro civil das pessoas naturais. Alteração do assento de nascimento. Retificação do nome e do gênero sexual. Utilização do termo transexual no registro civil. O conteúdo jurídico do direito à autodeterminação sexual. Discussão acerca dos princípios da personalidade, dignidade da pessoa humana, intimidade, saúde, entre outros, e a sua convivência com princípios da publicidade e da veracidade dos registros públicos. Presença de repercussão geral. (RE 670422 RG, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, julgado em 11/09/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-229 DIVULG 20-11-2014 PUBLIC 21-11-2014 ).

O exposto permite concluir que a dignidade das pessoas transexuais passa por sua capacidade de autodeterminação e pela possibilidade de criação de uma identidade própria, para tanto, necessário que haja reconhecimento de direitos fundamentais de personalidade, quais sejam, o direito ao nome e o direito ao próprio corpo.

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5 CONCLUSÃO

Ante o delineado no presente trabalho, fora realizado a exposição sucinta das questões dogmáticas e sensíveis na seara do Direito Civil contemporâneo. Lado outro, trabalhado ainda, a dignidade das pessoas transexuais que passa por sua capacidade de autodeterminação e pela possibilidade de criação de uma identidade própria. Para tanto, necessário que haja reconhecimento de direitos fundamentais de personalidade, quais sejam, o direito ao nome e o direito ao próprio corpo. Assim, o reconhecimento do direito a mudança de nome e sexo por parte dos transexuais é demanda que deve alcançar proteção. Não cabendo ao Estado optar pela realização da cirurgia de redesignação sexual ou não.

Noutra consideração deste trabalho, em nada obsta o conceito de identidade de gênero e sexo biológico. Assim, a relação do sujeito com seu próprio corpo é elemento de construção daquele. A relação do sujeito com seu próprio corpo é elemento fundamental da intimidade, não cabendo maiores questionamentos, mas sim o devido respeito. O transexual pode se realizar mantendo o órgão genital biológico ou retirando. Em qualquer situação, contudo, deve lhe ser assegurado o direito à felicidade e a realização própria. Para tanto, necessário se faz a atividade institucional, no sentido de garantir os direitos a essa parcela da situação, quanto uma atividade social e comunitária no sentido de integrar essa parcela e lhes tratar com o devido respeito, sem preconceitos infundados. Para tanto, o caminho ainda é longo.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível em: . Acesso em 03 jun. 2017.

_________. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: . Acesso em 30 mar. 2018.

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_________. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: .. Acesso em 22 abr. 2018.

BARBOSA, Cecília Pinheiro. Dignidade da pessoa humana no âmbito do Estatuto da criança e do adolescente. InÂmbito Jurídico, Rio Grande, a. 15, n. 106, nov. 2012. Disponível em: . Acesso em 22 abr. 2018.

FACHIN, Luiz Edson. O corpo do registro no registro do corpo: mudança de come e sexo sem cirurgia de redesignação. In: Revista Brasileira de Direito Civil, v. 1, n. 1, 2014, p. 36-60. Disponível em: . Acesso em 22 abr. 2018.

HOGEMANN, Edna Raquel. Direitos Humanos e diversidade sexual: o reconhecimento da identidade de gênero através do nome social. In: Revista SJRJ, Rio de Janeiro, v. 21, n .39, abr. 2014, p. 217-231. Disponível em: . Acesso em 18 abr. 2018.

LIONÇO, Tatiana. Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. In: Saúde e Sociedade, v. 17, n. 2, 2008, p. 11-21. Disponível em: . Acesso em 19 abr. 2018.

RENON, Maria Cristina. O princípio da Dignidade da pessoa humana e sua relação com a convivência familiar e o direito ao afeto. In: Egov: portal eletrônico, 2009. Disponível em: . Acesso em 21 abr. 2018.

ROCHA, Maria Vital da; SÁ, Itanieli Rodonto. Transsexualidade e o direito fundamental à identidade de gênero. In: RIDB, a. 2, n. 3, 2013, p. 2.337-2.364. Disponível em: Acesso em 19 abr. 2018.

Data da conclusão/última revisão: 2/5/2018

 

Como citar o texto:

OLIVEIRA, Rafael Guimarães de; RANGEL, Tauã Lima Verdan..O direito de ser quem é: o reconhecimento da possibilidade de modificação do nome pelo transgênero à luz do STF. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 29, nº 1529. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direitos-humanos/4042/o-direito-ser-quem-reconhecimento-possibilidade-modificacao-nome-pelo-transgenero-luz-stf. Acesso em 14 mai. 2018.

Importante:

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