Resumo: Neste trabalho, almeja-se analisar algumas práticas indígenas recentes frente à Constituição Federal de 1988. De forma mais precisa, abordaremos as normas constitucionais protetivas aos índios na “Lei Maior” e promoveremos uma reflexão de suas previsões a partir de três casos polêmicos, os quais, se praticados por não indígenas, estarão suscetíveis às sanções do Poder Público. 

Palavras–chave: Constituição Federal de 1988; indígenas; casos polêmicos.

Abstract: In this work, we intend to analyze some recent indigenous practices in relation to the Federal Constitution of 1988. More precisely, we will address the constitutional norms protecting the Indians in the "Major Law" and promote a reflection of their predictions from three controversial cases , which, if practiced by non-Indians, will be susceptible to the sanctions of the Public Power.

Keywords: Federal Constitution of 1988; indigenous peoples; controversial cases. 

Introdução

Um dos principais problemas enfrentados atualmente é o reconhecimento do outro enquanto sujeito de direitos substancialmente dizendo, bem como a negação à diferença, o que têm gerado muita violência nas searas global e local.

Nesse ínterim, segundo José Luiz Quadros de Magalhães: “O ano de 1492 é de uma significação especial para o projeto moderno. [...]”. (MAGALHÃES, 2011, p. s/p). Isso porque, a partir das grandes navegações, Cristovão Colombo deu início à invasão das américas. “Chegando nestas terras começa o processo de extermínio, assassínio, torturas e o encobrimento que durou mais de quinhentos anos [...]”. (MAGALHÃES, 2011, p. s/p).

A propósito, como fomenta Ana Keila Mosca Pinezi, a “visita” europeia e seu contato com o povo indígena deixou um legado sanguíneo por toda a “[…] a América Latina. O genocídio e também o etnocídio, praticados por portugueses e espanhóis, deixaram uma marca indelével na vida dos povos indígenas [...]”. (PINEZI, 2010, p. 2). 

Sobre o cenário presenciado no território brasileiro à época, Darcy Ribeiro aduziu poeticamente:

Aos olhos dos recém-chegados, aquela indiada louçã, de encher os olhos só pelo prazer de vê-los, aos homens e às mulheres, com seus corpos em flor, tinha um defeito capital: eram vadios, vivendo uma vida inútil e sem prestança. Que é que produziam? Nada. Que é que amealhavam? Nada. Viviam suas fúteis vidas fartas, como se neste mundo só lhes coubesse viver. Aos olhos dos índios, os oriundos do mar oceano pareciam aflitos demais. Por que se afanavam tanto em seus fazimentos? Por que acumulavam tudo, gostando mais de tomar e reter do que dar, intercambiar? Sua sofreguidão seria inverossímil se não fosse tão visível no empenho de juntar toras de pau vermelho, como se estivessem condenados, para sobreviver, a alcançá-las e embarcá-las incansavelmente? Temeriam eles, acaso, que as florestas fossem acabar e, com elas as aves e as caças? Que os rios e o mar fossem secar, matando os peixes todos? (RIBEIRO, 1995, p. 45-46).

Esse processo histórico revelou uma imensa exploração material, o encobrimento cultural e a negação indígena, pois: “[...] cada povo, cada etnia indígena tem uma cultura própria, com organização social e econômica e práticas corporais particulares. (ALMEIDA; ALMEIDA; GRANDO, 2010, p. 5). 

A título de exemplo, pode-se citar, por volta dos anos 1957, a prática do infanticídio entre os Tapirapés, povo de origem Tupi-Guarani. 

Por questões relacionadas à sobrevivência, os Tapirapé tinham como costume eliminar o quarto filho. Assim, segundo eles, a população se manteria em número reduzido (aproximadamente 1000 habitantes) e poderia garantir que o ecossistema local supriria as necessidades de sobrevivência do grupo. Essa prática acompanhava os Tapirapé por muito tempo, por isso, estava enraizada entre eles. Tanto que, na época da pesquisa feita por Cardoso de Oliveira, o número de habitantes da aldeia era de apenas 54 indígenas mas eles continuavam a praticar o infanticídio. (PINEZI, 2010, p. 6). 

Quando do evento, algumas missionárias que habitavam a tribo se insurgiram contra a prática, invocando mandamentos religiosos relativos à vida como dom de Deus e que somente poderia ser retirada por Este, além de não fazer sentido priorizar a vida em coletividade em detrimento da vida individual. 

Todavia, somente quando adotaram argumentação no sentido de que o número de componentes diminuiria drasticamente “[…] com o infanticídio do quarto filho, as freiras tiveram uma resposta positiva dos indígenas que reviram essa prática tradicional e que parecem tê-la abandonado”. (PINEZI, 2010, p. 6).

Outro fato interessante a ser lembrado envolve os Suruwahá, tribo localizada na bacia do rio Purus, no sudoeste do Amazonas e que possui cerca de 144 membros. Mas antes disso, é preciso destacar: 

[…] como para a maioria das etnias indígenas, a coletividade é importantíssima no que tange às decisões, escolhas e acontecimentos mais corriqueiros da vida. O coletivo está acima do individual. O nascimento de uma criança, por exemplo, é algo que interessa a todos os membros da tribo. Os problemas são compartilhados por todos, assim como as alegrias. […] Entre os Suruwahá, o nascimento de uma criança que apresenta alguma anomalia física, bem como o de filhos considerados ilegítimos e o de gêmeos, é considerado uma maldição e uma ameaça ao bem estar de toda a tribo. Assim, há a prática do infanticídio entre eles […]. (PINEZI, 2010, p. 7-8). 

No caso, duas crianças escaparam do infanticídio na tribo referida. A primeira, se refere à Iganami, que nasceu com paralisia cerebral. A segunda, Sumawani, que apresentara traços de hermafrodismo. 

Como a tribo Suruwahá não se compõe de um povo completamente isolado, o “[…] próprio cacique da tribo propôs aos pais a intervenção da medicina do “branco” para o tratamento das crianças e disse que se elas fossem curadas seriam reinseridas na sociedade tribal”. (PINEZI, 2010, p. 8). 

Diante disso, Sumawani e Iganani foram levadas, com a ajuda de dois lingüistas e missionários de um grupo missionário evangélico denominado JOCUM (Jovens com uma missão), para São Paulo, a fim de serem tratadas pela medicina “branca”. Depois de muita polêmica sobre os casos, que foram divulgados pela Rede Globo de Televisão, no Programa “Fantástico”, as crianças receberam tratamento adequado. Sumawani passou por uma cirurgia reparadora e foi constatado que é uma menina. Logo após, voltou com seus pais para a aldeia. Ela precisava tomar medicamentos à base de hormônio para se desenvolver e para evitar que tivesse complicações de saúde como desidratação, muito comum nesses casos. Sumawani, no entanto, no início de 2009, morreu, vítima exatamente de uma desidratação grave causada pela falta do hormônio. Iganani ainda recebe tratamento, em Brasília. (PINEZI, 2010, p. 8). 

Práticas como essas nos remetem ao debate nunca concluído entre os temas universalismo dos direitos humanos x relativismo cultural, o que pretende-se enfrentar neste trabalho, tendo como foco as práticas indígenas e sua proteção no âmbito da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Num segundo momento, abordar-se-á a proteção ao índio e de sua cultura na Constituição Federal, cotejando tais premissas a certas práticas empreendidas face às demais normas constitucionais relativas às temáticas abordadas.

1. A proteção aos indígenas na Constituição Federal de 1988

A Carta da República de 1988 reservou especial atenção aos indígenas, regulamentando várias das questões aos mesmos atinentes no capítulo referente à ordem social, conforme Bernardo Gonçalves Fernandes destacou:

No campo da proteção constitucional aos indígenas, a Ordem Social destaca o princípio da proteção da identidade, como preocupação do Constituinte. Para tanto, faz-se extremamente necessária a proteção das terras por eles tradicionalmente ocupadas, bem como da sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. (FERNANDES, 2017, p. 1970).

Analisemos, a partir de agora, os conteúdos normativos referentes à proteção acima descrita. 

São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

São classificadas como terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Citadas terras destinam-se a sua posse permanente, cabendo aos índios o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

As terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. Acerca desse ponto, Nathalia Masson lembra ser

[…] importante destacar que somente são reconhecidos aos índios os direitos sobre as cerras que tradicionalmente ocupam se a área estiver habitada por eles na data da promulgação da Constituição Federal de 1988 (marco temporal) e, em complementação, se houver real relação dos índios com a cerra (marco da tradicionalidade da ocupação).

Com base nesse entendimento - firmado pelo Plenário do STF no julgamento do caso "Raposa Serra do Sol" (Pet. 3388), em 201430 a 2ª Turma do STF reconheceu não haver posse indígena em relação a uma fazenda, localizada no Mato Grosso do Sul, que havia sido declarada pela União como área de posse permanente da etnia guarani-kaiowá. Isso porque o relatório da FUNAI de identificação e delimitação da cerra indicou que a população indígena guarani-kaiowá só residiu na área, objeto de disputa, até o início dos anos 1940. Descarte, há mais de 70 anos não existe comunidade indígena na área, de forma que o requisito do marco temporal não foi satisfeito. (MASSON, 2016, p. 1279).

Inclusive, reforçando a pontuação de Nathalia Masson, Bernardo Gonçalves Fernandes ressalta, a “[…] súmula 650 do STF afirma que: Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto. (FERNADES, 2017, p. 1671).

É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. Logo:

[…] no primeiro caso, ocorre a remoção (ad referendum do Congresso Nacional) e após o Congresso Nacional a ratifica. Já na segunda hipótese, a remoção só pode ocorrer mediante autorização (prévia) do Congresso Nacional. (FERNANDES, 2017, p. 1671).

São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º da Carta da República de 1988, ou seja:

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

[…]

§ 3º O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros.

§ 4º As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o art. 21, XXV, na forma da lei. (BRASIL, 1988, p. s/p.).

Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

Por força do ano. 109, XI da CR/88, compete à Justiça Federal processar e julgar conflitos que versem sobre direitos indígenas, isto é, sobre: cultura indígena; direitos sobre terras tradicionalmente ocupadas pelos índios; interesses constitucionalmente atribuíveis à União, como as infrações praticadas em detrimento de bens e interesses da União. Assim, incluem-se nesse rol de competências os crimes que estão relacionados aos direitos dos índios. (FERNANDES, 2017, p. 1681). 

Entretanto, essa competência não abrange aquelas infrações penais praticadas sem quaisquer relações com as comunidades indígenas, termos em que: 

De acordo com o STF: "o deslocamento da competência para a justiça Federal somente ocorre quando o processo versar sobre questões diretamente ligadas à cultura indígena e ao direito sobre suas terras, ou quando envolvidos interesses da União. Tratando-se de suposta ofensa a bens semoventes de propriedade particular, não há ofensa a bem jurídico penal que demande a incidência das regras constitucionais que determinam a competência da Justiça Federal". Em finalização ao tema, insta citar o enunciado no 140 da súmula do STJ, que determina: "Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima". (MASSON, 2016, p. 1280-1281).

Referidos regramentos encontram-se dispostos nos arts. 231 e 232 da Constituição brasileira, in verbis:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo. 

(BRASIL, 1988, p. s/p.).

No tocante à educação, sob a égide § 2º do art. 210 da Constituição Federal, às comunidades indígenas a utilização, junto ao português, de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. “Tais ações educacionais estão inscritas na esfera de competência do Ministério da Educação, ouvida a FUNAl”. (FERNANDES, 2017, p. 1681). 

Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.

[…]

§ 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. (BRASIL, 1988, p. s/p.).

2. Casos polêmicos envolvendo indígenas no Brasil

Para iniciar este ponto, importa descrever fato interessante narrado por Roberto Lemos dos Santos Filho, Juiz Federal lotado no município de Bauru, estado-membro de São Paulo e Mestre em Direito pela Universidade Católica de Santos, em texto publicado na web site jus navigandi (jus.com.br), no ano de 2011, em que o mesmo

[…] rejeitou denúncia ofertada contra dois indígenas por crime de cárcere privado, em razão da ausência de prévio estudo antropológico para aferição da real possibilidade de os indiciados entenderem o caráter ilícito da conduta perpetrada, e da razoabilidade de exigir que procedessem de forma diversa. (SANTOS FILHO, 2011, p. s/p).

No episódio, o Ministério Público Federal havia denunciado dois indígenas pela suposta prática dos crimes descritos no art. 148, § 2º, c/c os arts. 29 e 70, todos do Código Penal. De acordo com suas descrições: 

"[...] no período compreendido entre a noite do dia 20 até às 19 horas do dia 22 de maio de 2008, [INDÍGENA 1] (cacique) e [INDÍGENA 2](vereador de Avaí/SP), índios da reserva de Araribá em Avaí/SP, que lideravam uma manifestação armada (com armas brancas de origem indígena), privaram da liberdade três servidores ([SERVIDOR 1], [SERVIDOR 2] e [SERVIDOR 3]) da então Administração Regional da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), mantendo-os em cárcere privado na citada terra indígena, fazendo-os reféns contra a vontade deles, e lhes causando grave sofrimento moral em razão dos maus tratos e da natureza da detenção. (SANTOS FILHO, 2011, p. s/p).

In casu, pela reflexão dos elementos descritos em sede de inquérito, o magistrado em questão decidiu por não receber a denúncia por ausência de condição de procedibilidade face aos efetivos elementos probatórios de conhecimento “[…] por parte dos índios indiciados do caráter ilícito das ações que praticaram, o que somente seria possível aferir mediante a realização de perícia antropológica”. (SANTOS FILHO, 2011, p. s/p). Segundo o Juiz Federal: 

Em razão da diversidade cultural assegurada pela Constituição, compreendo imprescindível a realização de perícia antropológica para precisa apuração de os indígenas que realizaram as condutas descritas na denúncia terem, de forma efetiva, conhecimento do caráter ilícito e ilegítimo das ações perpetradas, providência essa que não foi adotada.

As provas colhidas no inquérito revelam que as condutas descritas na inicial, praticadas por líderes indígenas desta região, foram motivadas em razão do não atendimento pela FUNAI de reivindicações relacionadas com relação a mudança da sede da mesma autarquia de Bauru-SP para o litoral paulista (Município de Itanhaém).

Demonstram que os atos foram praticados como meio de chamar a atenção das autoridades acerca dos anseios da população indígena local. O relatório de fls. 13/14 elaborado pela autoridade policial que compareceu ao local na data dos fatos torna certa essa inferência. (SANTOS FILHO, 2011, p. s/p).

Apesar de termos apontado a prática quando da introdução deste artigo, insistimos em descrevê-la pelo fato de ainda possuir incidência no território brasileiro e seus agentes não serem punidos face à proteção constitucional do indígena.

A referência se faz ao infanticídio indígena, o qual ocorre em, ao menos, “[…] 13 etnias indígenas do Brasil, principalmente nas tribos isoladas, como os suruwahas, ianomâmis e kamaiurás. Cada etnia tem uma crença que leva a mãe a matar o bebê recém-nascido”. (G1.GLOBO.COM, 2014, p. s/p).

Criança com deficiência física, gêmeos, filho de mãe solteira ou fruto de adultério podem ser vistos como amaldiçoados dependendo da tribo e acabam sendo envenenados, enterrados ou abandonados na selva. Uma tradição comum antes mesmo de o homem branco chegar por lá, mas que fica geralmente escondida no meio da floresta. (G1.GLOBO.COM, 2014, p. s/p).

Em matéria exposta pelo programa Fantátisco, da rede globo de televisão, e também publicada na web site g1.globo.com no ano de 2014, sobre a cidade considerada mais violenta do Brasil à época, a de Caracaraí, que se encontra localizada no estado-membro de Roraima.

Apontou-se, nesse sentido, que o último Mapa de Violência do Ministério da justiça apresentou “[…] 42 pessoas foram assassinadas por lá. Entre elas, 37 índios, todos recém-nascidos, mortos pelas próprias mães, pouco depois do primeiro choro”. (G1.GLOBO.COM, 2014, p. s/p).

A partir de uma porteira, o Fantástico entrou na terra dos ianomâmis, uma área de 9,6 milhões de hectares, maior do que Portugal. Lá, vivem 25 mil índios em 300 aldeias numa floresta inteiramente preservada.

O filho de uma mulher ianomâmi vai fazer parte da próxima estatística de crianças mortas logo após o nascimento. Há duas semanas, ela começou a sentir as dores do parto, entrou na floresta sozinha e horas depois saiu de lá sem a barriga de grávida e sem a criança.

Os agentes de saúde que trabalham lá disseram, sem gravar, que naquela noite aconteceu mais um homicídio infantil, o infanticídio.

O infanticídio indígena é um ato sem testemunha. As mulheres vão sozinhas para a floresta. Lá, depois do parto, examinam a criança. Se ela tiver alguma deficiência, a mãe volta sozinha para a aldeia.(G1.GLOBO.COM, 2014, p. s/p).

Certo é, as discussões sobre a prática citada ressurgiram nesse ano já que um “[...] projeto de lei que pretende erradicar o infanticídio já foi aprovado em duas comissões na Câmara Federal e agora vai para votação no plenário”. (G1.GLOBO.COM, 2014: s/p). Enquanto, doutro lado, antropólogos defendem a ideia de que não se deve interferir na nas crença e culturas indígenas.

Note-se que na hipótese, portanto, poderemos avistar discussões acerca das cultura e crença indígenas e da proteção ao direito à vida, nos termos do caput do art. 5º da Carta Magna. 

Para finalizar, vale mencionar acontecimento em que se reconheceu, no Tribunal de Justiça do estado-membro de Roraima, a partir da iniciativa da Advocacia-Geral da União, que o Estado não pode aplicar pena prevista no Código Penal a um indígena quando o este já tenha sido punido pela própria comunidade. 

Trata-se a hipótese de um caso até então nunca presenciado no Brasil, eis que se interpretou o art. 57 do Estatuto do Índio, a Lei nº 6.001 de 19 de dezembro de 1973, à luz do art. 231 da Carta Constitucional de 1988, “[…] para conferir às comunidades indígenas autonomia no campo jurídico-penal, seguindo precedentes do direito comparado, aplicado nos EUA e na Guatemala" […]. (CONJUR.COM.BR, 2016, p. s/p). 

A decisão se refere a um caso de homicídio praticado por um índio em “desfavor” de outro “[…] na mesma tribo, dentro da terra Manoá-Pium, na reserva Raposa Serra da Lua, em Roraima”. (CONJUR.COM.BR, 2016, p. s/p).

No episódio o Ministério Público de Roraima ofereceu denúncia com base no artigo 121 do Código, aceita pela comarca da cidade de Bonfim, estado-membro de Roraima.

Entretanto, segundo as procuradorias federais em Roraima (PF/RR) e especializada junto à Fundação Nacional do Índio (PFE/Funai), unidades da AGU que ingressaram no caso como parte interessada, o artigo 57 do Estatuto do Índio traz implícita a vedação à punição dupla, chamada de bis in idem, o que afasta a aplicação da lei penal.

Os procuradores federais explicaram que pela regra do Estatuto será "tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou difamante, proibida em qualquer caso a pena de morte".

Os advogados públicos alegaram, ainda, que deveria prevalecer o chamado "direito consuetudinário", em que os costumes praticados na tribo devem prevalecer sobre o direito formal brasileiro. (CONJUR.COM.BR, 2016, p. s/p).

A Turma Criminal do Tribunal de Justiça do estado-membro ora mencionado adotou o entendimento da Advocacia-Geral da União.

Segundo a sentença, se o crime foi punido conforme os usos e costumes da comunidade indígena, os quais são protegidos por força do artigo 231 da Constituição, e "desde que observados os limites do artigo 57 do Estatuto do Índio, que veda a aplicação de penas cruéis, infamantes e a pena de morte, há de se considerar penalmente responsabilizada a conduta do apelado". (CONJUR.COM.BR, 2016, p. s/p).

Considerações finais

Os povos indígenas sempre possuíram e aquelas tribos não civilizadas ainda possuem sua maneira natural de sobrevivência. Essa cultura encontra-se protegida pela Constituição Federal, como se desenvolveu neste texto. 

De toda maneira, alguns elementos foram tratados, no trabalho, a fim de demonstrar severas marcas na história indígena. Vale ressaltar aqui, um dos maiores problemas dos seres humanos é, por vezes, reconhecer o outro com destacada diferença, posição em que o índio se encontra nos dias atuais, enquanto sujeito de direitos. 

Como se apontou, os nativos brasileiros são indígenas e as invasões europeias, em nome da explicação da terra, de suas riquezas, bem como a sexual, promoveram torturas e assassinatos, e, em última instância, um verdadeiro extermínio em massa, o que gerou a rendição por parte dos índios. Aos indígenas, restou o cerceamento à prática da cultura de maneira mais natural.

No decorrer dos anos, evoluções normativas trouxeram, no entanto, garantias ao indígenas, principalmente, no seio da Constituição Federal de 1988, cerne deste texto, o que garantiu à classe invocar seus direitos quando de eventual cerceamento por parte da sociedade civil e/ou do Estado. 

Existem algumas práticas, todavia, que podem incomodar a muitos, não somente por potencialmente ofenderem às normas jurídicas, mas também, por questões morais não atinentes aos mesmos, conforme se frisou com os casos apresentados, os quais envolveram as práticas de “homicídio”, “cárcere privado” e “infanticídio”. Essas questões geram, sem dúvida algumas, uma eterna discussão sobre o cotejo universalismo dos direitos humanos fundamentais x relativismo cultural. 

Isso porque enquanto os índios possuem a proteção à sua sua organização social, costumes, línguas, crenças, entre outros, diversos tratados internacionais e a Constituição Federal preveem variadas proteções aos demais seres pertencentes às inúmeras etnias, como aquelas protetivas, contextualmente a este texto, à inviolabilidade ao direito à vida e à liberdade de locomoção. 

Nesses termos, o debate acerca da busca de um equilíbrio sempre proporcionará iniciativas legislativas infraconstitucionais no intuito de melhor regular o exercício desses direitos constitucionalmente preconizados. 

Por outro lado, antropólogos defendem a ideia de que não se deve interferir nas crenças e culturas indígenas de modo que não se proceda à perda de sua essência cultural. 

Enfim, como se presencia, os esforços para garantir e proteger os direitos indígenas muito ajudam na sua preservação, de seus modos e costumes, cabendo ao Poder Público, porém, tomar decisões e medidas eficazes para harmonizar os interesses envolvidos, ou seja, amparar os direitos dos não indígenas, com ênfase nos humanos fundamentais, sem, ademais, violar os direitos daqueles. 

Referências

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CONJUR.COM.BR. Estado não pode punir índio que já foi condenado por sua tribo, decide TJ-RR. Diponível em: https://www.conjur.com.br/2016-fev-20/estado-nao-punir-indio-foi-condenado-tribo. Acesso em: 09 nov. 2018.

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. Salvador: JusPODIVM, 2017. 

G1.GLOBO.COM. Tradição indígena faz pais tirarem a vida de crianças com deficiência física. Disponível em: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/12/tradicao-indigena-faz-pais-tirarem-vida-de-crianca-com-deficiencia-fisica.html. Acesso em: 09 nov. 2018.

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. A superação da modernidade na construção de um novo sistema mundo. Disponível em: http://joseluizquadrosdemagalhaes.blogspot.com/2011/02/197-teoria-do-estado-primeiras-aulas.html. Acesso em: 08 set. 2018.

MASSON, Nathalia. Manual de direito constitucional. 4. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016.

PINEZI, Ana Keila Mosca. Infanticídio indígena, relativismo cultural e direitos humanos: elementos para reflexão. Disponível em: https://www.pucsp.br/revistaaurora/ed8_v_maio_2010/artigos/download/ed/2_artigo.pdf. Acesso em: 08 set. 2018.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SANTOS FILHO, Roberto Lemos dos. Cárcere privado praticado por indígenas: rejeição da denúncia por falta de prévio estudo antropológico. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18621/carcere-privado-praticado-por-indigenas-rejeicao-da-denuncia-por-falta-de-previo-estudo-antropologico. Acesso em: 09 nov. 2018. 

Data da conclusão/última revisão: 12/11/2018

 

Como citar o texto:

DUARTE,Hugo Garcez Duarte; LIMA, Luis Carlos H..As práticas indígenas frente à Constitucional Federal de 1988. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 30, nº 1575. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direitos-humanos/4247/as-praticas-indigenas-frente-constitucional-federal-1988. Acesso em 13 nov. 2018.

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