RESUMO: O movimento feminista vem se transformando e problematizando a si mesmo ao longo dos anos. Atualmente, encontra-se uma ampla variedade de estudos feministas complexos que passa pelos estudos essencialistas, igualitários, pós-coloniais e interseccionais. O presente texto, sem descartar a variedade dos estudos feministas, tentará abordar mais especificamente a luta das mulheres negras por reconhecimento e liberdade.

Palavras-chave: feminismo; mulheres negras; interseccionalidade; existencialismo; reconhecimento.

“... Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Êles respondia-me: — É pena você ser preta. Esquecendo-se êles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça êle já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta”.(Carolina de Jesus, Quarto de Despejo)

        Ao longo dos anos, ações dos movimentos feministas vêm sendo decisivas para maior igualdade de gênero e melhores condições de vida. As reivindicações das mulheres por direitos civis, políticos e sociais alcançaram a regulamentação do trabalho feminino, equiparação salarial entre os gêneros, o direito ao voto, maior participação na política, na educação, entre outras conquistas.

       No entanto, dentro dos movimentos feministas existe uma ampla gama de lutas não universais quanto à categoria mulher, como o feminismo negro, que vem apontando a necessidade de se perceber outras possibilidades de ser mulher (RIBEIRO, 2016). O discurso de Sojourner Truth, em 1851, já anunciava que a situação da mulher negra era muito diferente da situação da mulher branca, enquanto àquela época mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto e ao trabalho, mulheres negras lutavam para serem consideradas pessoas (RIBEIRO, 2016):

"Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, que é preciso carregá-las quando atravessam um lamaçal e que elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou uma mulher?".

         Durante as décadas de 40 e 50, Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Frantz Fanon foram nomes centrais de estudos existencialistas e anticoloniais, momento inicial da chamada “segunda onda” do feminismo: francesas postulavam a necessidade de serem valorizadas as diferenças entre homens e mulheres, dando visibilidade, principalmente, à especificidade da experiência feminina, geralmente negligenciada. As propostas que caracterizam determinadas posições, por enfatizarem a igualdade, são conhecidas como “o feminismo da igualdade”, enquanto as que destacam as diferenças e a alteridade são conhecidas como “o feminismo da diferença” (NEGRÃO, 2002).

         Ao dizer a “existência precede a essência”, Sartre negou a concepção aristotélica de que o ser humano possui uma essência inata, predefinida. Em “O Segundo Sexo”, Beauvoir utiliza as próprias ideias de Aristóteles como exemplo de pensamento que utiliza a masculinidade como padrão de medida de ser humano. A mulher é vista como o Outro, julgada como igual apenas na medida em que age como homem, uma noção equivocada, segundo a filósofa, por ignorar as diferenças entre homens e mulheres.

          Com formação fenomenológica, Beauvoir foi uma feminista existencial. Seguindo o pensamento de que a “existência precede a essência”, Beauvoir aplicou-o a noção de “mulher", demandando a separação do ente biológico da feminilidade: o primeiro, o corpo com que a mulher nasce e o segundo, uma construção social. Sendo a feminilidade uma construção social, ela é aberta a mudanças e interpretações, havendo espaço para uma escolha existencial, cunhando assim sua máxima “não se nasce mulher, torna-se mulher”. O patriarcalismo cria sofrimento na mulher na medida em que os homens aceitam sua igualdade mas continuam a exigir uma essencialidade dela, a ser uma “mulher de verdade”, ficando a mulher em um desequilíbrio que o homem não compreende, pois quanto mais ele afirma seu domínio no mundo mais se revela viril, ao passo que as conquistas das mulheres caem em contradição com a feminilidade. Beauvoir não negou a identidade, o sujeito ou a diferença, negou essencialidades inatas e buscou a liberdade de ser:

Recusar as noções de eterno feminino, alma negra, caráter judeu, não é negar que haja hoje judeus, negros e mulheres; a negação não representa para os interessados uma libertação e sim uma fuga inautêntica. É claro que nenhuma mulher pode pretender sem má-fé situar-se além de seu sexo. Uma escritora conhecida recusou-se a deixar que saísse seu retrato numa série de fotografias con- sagradas precisamente às mulheres escritoras: queria ser incluída entre os homens, mas para obter esse privilégio utilizou a influência do marido. (BEAUVOIR)

          Em 1952 é publicado o livro de Frantz Fanon, “Pele Negra, Máscaras Brancas", apresentando um pensamento existencial psicanalítico das consequências colonialistas. Época de violências revolucionárias, o pensamento de Fanon chega ao Brasil no momento em que o marxismo e o existencialismo estavam em voga na cena política e cultural, com o país acompanhando a guerra de libertação da Argélia e as posições anticolonialistas do filósofo. Naquele momento pós-guerra, o mundo estava polarizado em dois eixos. Sartre e Fanon representavam a fusão do anti-imperialismo, do antirracismo, da descolonização e da luta de classes. GUIMARÃES, 2008).

          Sartre, Beauvoir e Fanon demonstram em seus estudos uma preocupação ética mais psicanalítica do que moral, rejeitando a ideia de que o ser humano se desenvolve de acordo com sua natureza inata. Em “Peles negras, máscaras brancas”, Fanon segue o mesmo pensamento existencialista de que a existência precede a essência, e que isso explica nossas motivações, modo de viver, deliberações. Ele analisa as relações entre desordem mental e colonialismo, entre desajustamento sexual e repressão política. Para Fanon, o negro incorporou a cultura colonial branca que iguala a “negritude" com inferioridade. O sentimento de inferioridade do negro o faz pensar que sua dignidade é alcançada apenas na “brancura", o que é impossível, apesar de tentar inserir-se no "meio branco" de todas as maneiras. Ao negro há somente um destino, e ele é branco. Dessa forma, para ser digno, o negro acaba por buscar a sua própria aniquilação. Nesse sentido, conforme o mundo patriarcal demonstrado por Beauvoir, poder-se-ia dizer que, para a mulher, havia somente um destino, e ele era masculino.

             Em um capítulo sobre a mulher negra, Fanon analisa diversos trechos de obras literárias em que demonstra o sentimento de inferioridade da mulher negra e sua submissão ao branco:

Porque enfim, quando lemos no romance autobiográfico Je suis Martiniquaise — “Gostaria de ter me casado, mas com um branco. Só que uma mulher de cor nunca é realmente respeitável aos olhos de um branco. Mesmo se ele a ama. Eu sabia disso” — temos o direito de ficar preocupados. (...) Mayotte ama um branco do qual aceita tudo. Ele é o seu senhor. Dele ela não reclama nada, não exige nada, senão um pouco de brancura na vida. E quando, perguntando-se se ele é bonito ou feio, responde: “Tudo o que sei é que tinha olhos azuis, que tinha os cabelos louros, a pele clara e que eu o amava” — é fácil perceber, se colocarmos os termos nos seus devidos lugares, que podemos obter mais ou menos o seguinte: “Eu o amava porque ele tinha os olhos azuis, os cabelos louros e a pele clara”. (FANON, 1982)

              O trecho acima também corrobora a importância que Patricia Hill (COLLINS) destaca sobre análises de estereótipos e a autodefinição de mulheres negras. Hills aborda o pensamento de Mae King, a qual sugere que os estereótipos são representações que definem e controlam a condição feminina negra, a desumanizando e explorando. Também traz o pensamento de Gilkes, indicando que a resistência da mulher negra à opressão tem sido uma constante ameaça ao status quo. Porém ambas apontam que a substituição de estereótipos negativos por estereótipos ostensivamente positivos pode ser igualmente problemática, caso a função dos estereótipos como mecanismo para controlar imagens permaneça velada (COLLINS), e cita um trecho, contido no livro de Gwaltney, de 1980, de uma mulher negra que interpreta a diferença entre as imagens de controle aplicadas às mulheres como sendo de grau, e não de tipo:

Minha mãe costumava dizer que a mulher negra é a mula do homem branco e que a mulher branca é o seu cachorro. Agora, ela disse isso para dizer o seguinte: nós fazemos o trabalho pesado e apanhamos, quer façamos um bom trabalho ou não. Mas a mulher branca está mais próxima do patrão, e ele faz um carinho em sua cabeça e a deixa dormir dentro de casa, mas não vai tratar nenhuma das duas como se estivesse lidando com uma pessoa (COLLINS - Gwaltney, 1980).

               Grada Kilomba (RIBEIRO, 2016), diz que as mulheres negras ocupam uma posição mais difícil na sociedade supremacista branca. Por não ser homem nem mulher branca, sofre uma espécie de carência dupla, tornando-se um “Outro absoluto”, não reconhecido por nenhuma categoria. Assim, ela demonstra uma discordância da categorização feita por Beauvoir, pois para esta a mulher seria sempre subordinada ao homem, o que diz respeito a um modo branco de ser mulher. Para Kilomba, a mulher branca alcança a posição de sujeito em dados momentos, como perante o homem negro, posição esta que a mulher negra não possui.

        Essa ideia está no âmago do estudo interseccional, que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação, tratando da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. (CRENSHAW, 1989). Consoante Djamila Ribeiro (RIBEIRO, 2016), pensar a interseccionalidade é perceber que não pode haver primazia de uma opressão sobre as outras e que, sendo estas estruturantes, é preciso romper com a estrutura. É pensar que raça, classe e gênero não podem ser categorias pensadas de forma isolada, mas sim de modo indissociável. Em Mulheres, Raça e Classe, Angela Davis enfatiza a importância de utilizar outros parâmetros para a feminilidade e denuncia o racismo existente no movimento feminista, além de fazer uma análise anti-capitalista, antirracista e anti-sexista. (RIBEIRO, 2016).

             Desses questionamentos e confrontos de pontos de vista feministas, desencadeou-se o chamado pensamento pós-moderno. Para o feminismo pós-moderno, uma noção única da verdade ou criar explicações gerais para a opressão das mulheres é impossível. A nova perspectiva epistemológica tem como essência variados pontos de vista feministas contraditórios e conflituosos. As feministas pós-modernas rejeitam a afirmação de que existe uma grande teoria capaz de explicar a posição das mulheres na sociedade. Tais feministas rejeitam as noções usadas para explicar a desigualdade de gênero – como patriarcado, raça ou classe – como algo “essencialista”. O ponto central do feminismo pós-modernismo é o reconhecimento da diferença - de sexualidade, raça, idade, cor, entre outras (LAGE, 2014).

          Para Judith Butler o feminismo pós-moderno deve reconstruir o processo de formação das identidades de gênero e a categoria "mulher" precisa ser "desconstruída", para mostrar que a ideia de universalidade e naturalidade de ser mulher são artificiais. Ainda, diz que desconstruir o sujeito do feminismo não é censurar sua utilização, mas "liberar o termo num futuro de múltiplas significações, emancipá-lo das ontologias maternais ou racistas às quais esteve restrito e fazer dele um lugar onde significados não antecipados podem emergir” (BUTLER, 1990). A principal preocupação de Butler é o papel que o poder cumpre na constituição da identidade no feminismo. Já Nancy Fraser quer combinar poder e autonomia na teoria feminista, misturando ingredientes modernos e pós-modernos, reunindo igualdade e diferença, tentando descrever a desigualdade de gênero em cada contexto social, e como emancipar as mulheres de tais desigualdades (CHAMBOULEYRON, 2009).

          Nancy Fraser demanda uma justiça social que tem sido chamada de “a política do reconhecimento” com o objetivo de contribuir para um mundo amigo da diferença. Para ela, a justiça requer tanto redistribuição como reconhecimento, defendendo uma concepção bidimensional, que contemple tanto demandas defensáveis pela igualdade social quando demandas defensáveis pelo reconhecimento da diferença (FRASER, 2010). A política da redistribuição para Fraser engloba não só orientações centradas em classes sociais mas também formas de feminismo e antirracismo que as reformas socioeconômicas afirmam ser a solução para as injustiças de gênero e étnico-raciais. Já a política do reconhecimento envolve não somente movimentos que objetivam revalorizar identidades injustamente depreciadas, por exemplo, o feminismo cultural, a política de identidade homossexual e também tendências desconstrutivas como o feminismo desconstrutivista, que rejeita o “essencialismo” da política de identidade tradicional. O gênero é uma categoria pautada na política econômica e na cultura (LAGE, 2014).

        Em uma visão da justiça distributiva, o gênero constrói a divisão basilar entre o trabalho “produtivo” remunerado e o trabalho “reprodutivo” e doméstico não remunerado, assim como a divisão dentro da categoria do trabalho remunerado entre trabalhos melhor remunerados, ocupações profissionais dominados por homens e trabalhos pior remunerados, ocupações domésticas e do “colarinho rosa”, dominados pelas mulheres. Assim, “o resultado é uma estrutura econômica que gera modos específicos de exploração baseados no gênero, marginalização econômica e privação”. A injustiça de gênero “aparece como uma espécie de injustiça econômica que reclama por soluções redistributivas” (LAGE, 2014).

        Para Fraser, gênero codifica padrões difundidos de valor cultural, que são centrais para a ordem do status como um todo. Como um resultado, não apenas as mulheres, mas todos os grupos de baixo status, correm o risco de serem feminilizados e, consequentemente, diminuídos. Assim, uma das principais características da injustiça de gênero é o androcentrismo: um padrão de valor cultural que privilegia traços associados à masculinidade, enquanto deprecia tudo o que codifica como “feminino”. O androcentrismo é uma das principais características da injustiça de gênero, e a consequência da feminilização é a visão da mulher enquanto subordinada e deficiente, incapaz de participar com igualdade da vida social (LAGE, 2014).

         Fraser também faz uma crítica a Butler por focar a liberação das mulheres na liberação da identidade, já que Butler entende esta última como sempre opressora (LAGE, 2014). Disso decorre, diz Fraser, que a critica desconstrutiva [...] torna-se o modo privilegiado de teorização feminista, enquanto a crítica normativa e reconstrutiva é entendida como normalizadora e opressiva. Mas essa visão é limitada para alcançar plenamente as necessidades de políticas liberatórias. As feministas realmente precisam fazer julgamentos normativos e oferecer alternativas emancipatórias. Nós não apoiamos “qualquer coisa que apareça” [...]. De fato, processos “desreificantes” e “reificantes” são dois lados da mesma moeda pós-fordista. Feministas precisam tanto da desconstrução quanto da reconstrução (LAGE, 2014). Para Fraser, reconhecimento e redistribuição são duas dimensões de um mesmo paradigma de justiça. São distintos, mas fortemente relacionados. A razão pela qual Fraser mantém a distinção está no fato de entender que os remédios para cada tipo de demanda são distintos.

         No caso do gênero, a injustiça na distribuição de recursos é elemento forte da desigualdade pois o gênero funciona como princípio organizador da estrutura econômica da sociedade capitalista. A divisão entre trabalho produtivo (remunerado) e trabalho reprodutivo (não remunerado), associados respectivamente ao masculino e ao feminino, estão na base de desigualdades materiais. Além disso, o gênero também implica diferenciação de status, uma vez que os padrões culturais institucionalizados privilegiam características associadas à masculinidade (FRASER, 2003). Toda injustiça demandará sempre as duas medidas, pois os eixos de subordinação estão todos entrecruzados. A sexualidade, a classe, a raça e o gênero combinam-se de inúmeras formas distintas, e em muitas dessas combinações, as injustiças se acumulam. (FRASER, 2003).

           Fraser defende que a ênfase no reconhecimento ou na redistribuição depende da injustiça que deve ser corrigida. No caso do apartheid na África do Sul, a ênfase teve de ser no reconhecimento. No entanto, o remédio adequado para garantir o reconhecimento não esteve focado na valorização da identidade negra, mas sim na cidadania universal não-racializada (LAGE, 2014). Portanto, a luta pelo reconhecimento é a luta pela desinstitucionalização da desvalorização de determinados grupos, que os impede de participar como iguais de seu grupo social (LAGE, 2014).

            A raça também constitui grupos tipicamente “bidimensionais”. É possível identificar um padrão racial na pobreza. Imigrantes, minorias étnicas e afro-descendentes são em geral as principais vítimas da pobreza e do desemprego. Além disso, esses grupos sofrem também de desvalorização de sua identidade em razão de padrões culturais eurocêntricos institucionalizados que depreciam não brancos (FRASER, 2003).

          Nesse sentido, o pensamento de Fraser conflui para o de Fanon . Em “Os Condenados da Terra”, após seu intenso envolvimento com a luta pela libertação da Argélia, Fanon traz a ideia de que somente a ruptura com o sistema capitalista pode promover o colonizado a um corpo social existente e político:

“O colonizado é um invejoso. O colono não o ignora quando, surpreendendo o seu olhar à deriva, comprova amargamente mas sempre alerta: “querem ocupar nosso lugar.” É verdade, não há um colonizado que não sonhe, pelo menos uma vez por dia, em instalar-se no lugar do colono. Esse mundo em compartimentos, esse mundo dividido em dois, está habitado por espécies diferentes. A originalidade do contexto colonial é que as realidades econômicas, as desigualdades, a enorme diferença dos modos de vida, não chegam nunca a esconder as realidades humanas. Quando se compreende no seu aspecto imediato o contexto colonial, é evidente que o que divide o mundo é sobretudo o fato de se pertencer ou não a tal espécie, a tal raça. Nas colônias, a infraestrutura é igualmente uma superestrutura. A causa é efeito: se é rico porque é branco, se é branco porque é rico. Por isso as análises marxistas devem modificar-se ligeiramente sempre que abordam o sistema colonial.” (FANON, 1965)

        No entanto, CYFER (2017) argumenta que Fraser recusa articular psicologia e política, o que lhe deixa sem ferramentas para diagnosticar as ambiguidades da motivação da subordinação, em particular nos casos de injustiça de gênero. Fraser também se opõe a teorias que justificam políticas de reconhecimento com base nos danos na estrutura psíquica dos indivíduos causados pela discriminação. Para Fraser, “a falta de reconhecimento é uma relação social institucionalizada e não um estado psicológico”. Em seu debate com Axel Honneth, ela afirma que Honneth privilegia este último aspecto em detrimento do papel que as instituições cumprem na inclusão social. Essas investigações, diz Fraser, podem levar a substituir “a mudança social por formas intrusas de engenharia da consciência” (CYFER, 2017; FRASER, 2003). Fraser teme que, explorando-se a dimensão psíquica do déficit de reconhecimento, se termine responsabilizando a própria vítima da discriminação pela injustiça que sofre. (CYFER, 2017).

          No entendimento de Cyfer, o descarte da compreensão psíquica de Fraser é bastante limitador em qualquer diagnóstico de injustiça, e ainda mais problemático no caso das injustiças de gênero, uma vez que sua manifestação é historicamente carregada de ambiguidades (CYFER, 2017).

          Conforme MENDES (2002), apesar das diferenças entre os movimentos do feminismo, esse conjunto de ideias vem trazendo uma nova forma à vida cotidiana e à produção e revisão cultural. O feminismo segue na sua proposta de reavaliação própria dos valores da razão, da verdade e igualdade e talvez se possa associar tal ambivalência dos estudos feministas “a uma tentativa de síntese, uma terceira alternativa que não a moderna e pós-moderna, qual seja, uma justaposição e uma acomodação mútua entre diferentes narrativas culturais e políticas”. (MENDES, 2002).

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          No Brasil, a luta contra a violência às mulheres tomou força nos anos 80. Criou-se o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), em 1985, com objetivo de eliminar a discriminação e aumentar a participação feminina nas atividades políticas, econômicas e culturais. Em 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil foi promulgada para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, conforme seu preâmbulo.

          Desde então, as reivindicações femininas - agora pelos seus direitos democráticos constitucionais - continuam. Em busca da erradicação, prevenção e punição da violência contra a mulher, outras conquistas foram alcançadas como a Lei Maria da Penha, em 2006, para o combate e repressão à violência doméstica e e proteção das vítimas, bem como a Lei do Feminicídio, sancionada em 2015, que tornou o homicídio de mulheres em crime hediondo quando envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Ainda, o movimento feminista brasileiro também pode contar com os esforços da Secretaria de Políticas das Mulheres, que atua não apenas pela redução da desigualdade dos gêneros, mas também para ajudar na redução da miséria e de pobreza para, assim, garantir a autonomia econômica das brasileiras.

            De acordo com o IPEA (2017), quanto às taxas de homicídio de mulheres, entre 2010 e 2015 verificou-se uma melhora gradual, tendo este indicador diminuído 1,5% e sofrido uma queda de 5,3% apenas no último ano da série. Apenas no último ano houve uma diminuição na taxa de homicídio de mulheres em 18 Unidades Federativas.

          No entanto, estes dados guardam diferenças significativas ao comparar as mortes de mulheres negras e não negras. Enquanto a mortalidade de mulheres não negras teve uma redução de 7,4% entre 2005 e 2015, atingindo 3,1 mortes para cada 100 mil mulheres não negras – abaixo da média nacional -, a mortalidade de mulheres negras observou um aumento de 22% no mesmo período, chegando à taxa de 5,2 mortes para cada 100 mil mulheres negras, acima da média nacional. Os dados indicam ainda que, além da taxa de mortalidade de mulheres negras ter aumentado, cresceu também a proporção de mulheres negras entre o total de mulheres vítimas de mortes por agressão, passando de 54,8% em 2005 para 65,3% em 2015. Neste mesmo relatório, foi observado ainda que, de cada 100 pessoas que sofrem homicídio no Brasil, 71 são negras.

           Conforme o IPEA:

Trocando em miúdos, 65,3% das mulheres assassinadas no Brasil no último ano eram negras, na evidência de que a combinação entre desigualdade de gênero e racismo é extremamente perversa e configura variável fundamental para compreendermos a violência letal contra a mulher no país. [...] Os dados apresentados revelam um quadro grave, e indicam também que muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas. Em inúmeros casos, até chegar a ser vítima de uma violência fatal, essa mulher é vítima de uma série de outras violências de gênero, como bem especifica a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06). A violência psicológica, patrimonial, física ou sexual, em um movimento de agravamento crescente, muitas vezes, antecede o desfecho fatal. (grifos meus).

          Muitas conquistas se devem aos movimentos feministas, mas é fundamental conhecer seus conflitos, nuances, críticas para ter aporte prático e efetivamente construir uma sociedade mais livre para todos.

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo - 1. Fatos e Mitos - 4.a EDIÇÃO, 1970.

BUTLER, Judith. Contingent Foundations: Feminism and the Question of “Postmodernism”. Tradução: Pedro Maia Soares. University of California at Berkeley. Nova York, 1990.

CHAMBOULEYRON, Ingrid Cyfer. A tensão entre modernidade e pós-modernidade na crítica à exclusão no feminismo. 2009. 140 f. Tese (Doutorado em Ciência Política). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2009. p. 13 .

CYFER, Ingrid. Feminismo, identidade e exclusão política em Judith Butler e Nancy Fraser. Diálogos na Teoria Crítica (Parte II) - Idéias, Campinas, SP - ISSN 2179-5525, v. 8, n. 1 (2017).

COLLINS, Patricia Hill. “Learning from the outsider within: the sociological significance of black feminist thought”, publicado em Social Problems, v. 33, n. 6, “Special theory issue”, p. 14-32, Oct.-Dec. 1986.

CRENSHAW, Kimberlé Williams. “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory, and Antiracist Politics” (University of Chicago Legal Forum, 14, 1989).

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA Salvador, 2008.

_____________. Os Condenados da Terra. Editora Ulisseia. Lisboa, 1965.

FRASER, Nancy. Redistribuição, Reconhecimento e Participação: por uma concepção integrada de justiça. In: SARMENTO, D.; IKAWA D.; PIOVESAN, F. (Org.). Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

______________. “From redistribution to recognition? Dilemmas of justice in a ‘postsocialist’ age”. In: S. Seidman; J. Alexander. (orgs.). 2001. e new social theory reader. Londres: Routledge, pp. 285-293. Outra versão do artigo foi publicada na New Left Review (212: 68-93, 1995). 


GUIMARAES, Antonio Sérgio. A RECEPÇÃO DE FANON NO BRASIL E A IDENTIDADE NEGRA - Recebido para publicação em 19 de junho de 2008. Departamento de Sociologia da USP. NOVOS ESTUDOS CEBRAP 81, julho 2008 pp. 99-114 < http://www.scielo.br/pdf/nec/n81/09.pdf> Acesso em: Julho 2018.

HONNETH, Axel H651 Luta por reconhecimenro: a gramática moral dos conflitos sociais / Axel Honneth; traduçãoo de Luiz Repa. - Sao Paulo: Ed. 34, 2003. 296 p.

IPEA - Atlas da Violência 2017 Ipea e FBSP1. Disponível em < http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossies/fontes-e- pesquisas/wp-content/uploads/sites/3/2018/04/IPEA_FBSP_atlasdaviolencia2017.pdf> Acesso em: julho 2018.

LAGE, Fernanda de Carvalho; NASCIMENTO, Grasiele Augusta Ferreira. O Feminismo pós-moderno, a equidade de gênero e a condição de agente da mulher - http://publicadireito.com.br/artigos/? cod=dbe2ec22cee2bf46 -> 


MENDES, Mary Alves. Estudos Feministas: Entre Perspectivas modernas e pós-modernas.Cadernos de Estudos Sociais.Recife. v. 18, n.2, p.223-238, jul./dez. 2002, p. 233

NEGRAO, T. Feminismo no plural. Em M. Tiburi, M. M. Menezes & E. Eggert (Orgs.), As mulheres e a filosofia. São Leopoldo: UNISINOS.

RIBEIRO, Djamila. FEMINISMO NEGRO PARA UM NOVO MARCO CIVILIZATÓRIO - Uma perspectiva brasileira. - ENSAIOS • SUR 24 - v.13 n.24 • 99, 2016.

Data da conclusão/última revisão: 19/7/2019

 

Como citar o texto:

HOAEGEN,Nina Cruz Antony..A Alteridade Insuportável: Mulher Negra e Feminismo. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1638. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direitos-humanos/4467/a-alteridade-insuportavel-mulher-negra-feminismo. Acesso em 25 jul. 2019.

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