1. INTRÓITO

 

Trata-se de recurso extraordinário, tempestivamente interposto pelo MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO, com fundamento na alínea “a” do permissivo constitucional, contra acórdão exarado pela 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, nestes ter-mos sintetizado (fls. 307 a 309), complementado por seu integrativo de fls. 315 a 317:

Apelação.

Ação anulatória de débito fiscal, com pedido de declaração de inexistência de rela-ção jurídico-tributária.

IPTU.

Responsável tributário.

Contrato de concessão de uso de imóvel pertencente à União.

Existência de imunidade tributária sobre o bem imóvel da União, e que foi entregue para exploração econômica por parte da empresa aqui autora.

Impossibilidade de, a teor do que dispõe o art. 34 do CTN, proceder-se-á a cobrança do tributo IPTU sobre quem não detém nem o domínio nem a posse sobre o referido bem.

Sentença de primeiro grau que deu ao tema a correta solução jurídica sob todos os aspectos em que foram formulados os pedidos.

Sentença que se confirma em reexame de duplo grau.

Embargos de declaração.

Alegação de omissão no aresto por ausência de menção a texto legal específico.

Pretendido efeito modificativo do acórdão.

Ainda que possível a interposição de embargos de declaração objetivando prequestionar matéria com vistas à interposição dos recursos constitucionais, não se há de ampliar os efeitos desse recurso ordinário até a obtenção de decisão modificativa do julgado atacado, quando não contempla qualquer omissão, obscuridade ou contradição.

Por outro lado, a não alusão expressa a dispositivo de lei não indica não tenha sido a matéria devolvida devidamente examinada, discutida e decidida.

Apenas em um ponto merece acolhida os embargos, é no que toca à omissão do julgamento quanto ao efeito ‘ex nunc’ do pedido repetitório do apelado.

Tal pedido não merece guarida, uma vez que se está diante de cobrança ilegal, daí a declaração de seu efeito ‘ex tunc’.

Embargos acolhidos para expungir do aresto o vício da omissão.

Em prol de sua tese de plausibilidade, o recorrente centra seu pedido de reforma da decisão plural impugnada na tese de que a imunidade tributária recíproca, prevista no art. 150, VI, “a”, da Constituição da República, não é extensível à BARRAFOR VEÍCULOS LTDA., ora recorrida, pessoa jurídica de direito privado que, ao sagrar-se vencedora de licitação pú-blica promovida pela Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária – INFRAERO, firmou contrato de concessão de uso de área situada no aeroporto de Jacarepaguá, aos funda-mentos de que:

a) o §3º do art. 150 da Lei das Leis prevê exceção à regra da imunidade tributária recíproca na hipótese de o patrimônio de quaisquer dos entes políticos serem destinados a exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis aos empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelos usuários (fls. 325);

b) à própria INFRAERO, como empresa pública que é, não se aplicam os benefícios fiscais vaticinados na alínea “a”, do inciso III, do artigo 150, da Lei Maior da República, na traça do que preceitua o art. 173 da Carta Magna (fls. 326);

c) o imóvel em tela se encontra totalmente desafetado de uma destinação pública, eis que entregue por concessão de uso à recorrida que, no particular, vem se utilizando da área exclusivamente para realização de atividades com fins lucrativos (comércio de veículos auto-motores, como concessionária da marca FORD), totalmente diversas daquelas previstas insti-tucionalmente ao órgão cedente, não havendo, assim, espaço para a invocação da regra consti-tucional da imunidade recíproca (fls. 326 a 328);

d) o contrato de concessão de uso firmado pela recorrida junto à INFRAERO contém cláusula expressa no sentido de que os ônus relativos aos tributos fundiários municipais serão repassados ao concessionário (fls. 324).

Requer, ao final, o provimento deste recurso extraordinário, para o fim de reconhecer que a recorrida não faz jus à imunidade tributária recíproca (fls. 329).

A recorrida, nas contrarrazões ao recurso extraordinário (fls. 384 a 395), reafirma a sua tese inaugural de que não se está a discutir a imunidade tributária, ou não, do bem público “locado”, mas apenas que o IPTU deve ser cobrado somente do proprietário ou de quem de-tém o domínio útil ou a posse por direito real do bem, mercê do que não pode ser considerada contribuinte do referido imposto, porquanto sua relação jurídica importa em direito pessoal. Para seu resguardo, cita o precedente do RE 451.152-5/RJ, de relatoria do Ministro GILMAR MENDES. Demais disso, elucida que a ressalta do §3º do art. 150 da Constituição Federal é aplicável tão-só quando o próprio ente público passa a atuar na economia, na exploração direta do negócio, não sendo o caso presente.

O procedimento atinente ao Juízo primeiro de admissibilidade encontra-se às fls. 422 a 425.

A repercussão geral da questão constitucional suscitada foi reconhecida pelo Plenário Virtual mediante votação eletrônica finalizada em 17 de junho de 2011.

É a síntese da problemática posta para judicial deslinde e consulta.

2. PARECER

Em linha de princípio, malgrado reste claro que o bem jurídico da vida perseguido pela recorrida em sua pretensão inaugural seja tão-somente a declaração de que não pode in-tegrar o polo passivo da obrigação tributária do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territo-rial Urbana – IPTU, vislumbro essencial, na espécie, aclarar, de uma vez por todas, a quaestio juris, ainda deveras controversa, atinente à possibilidade de extensão da imunidade tributária recíproca conferida aos bem públicos ao particular que, por concessão de uso, lhe confere destinação diversa do serviço público, auferindo lucros com a atividade comercial explorada.

Ab initio, cumpre transliterar a norma constitucional instituidora da imunidade inter-governamental recíproca, assim nomeada por Sacha Calmon Navarro Coêlho (in Curso de Direito Tributário Brasileiro. 10. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 253), e a qual surgiu com a 1ª Constituição Republicana de 1891 (art. 10, §1º):

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

[...]

VI – instituir impostos sobre:

a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;

[...]

Nada despiciendo considerar que o elemento teleológico que justifica a norma em comento atrela-se ao princípio federativo, erigido a como cláusula pétrea (art. 60, §4º, I, CF), à luz do desempenho dos órgãos públicos, que devem coexistir em clima de preservadas har-monia e autonomia, ratificando axiologicamente o federalismo de equilíbrio ou de cooperação.

A latere, o §2º da mesma norma constitucional disciplina que a imunidade prevista é extensiva (e por isso a denominação, por parte da doutrina, de “imunidade tributária recíproca extensiva”) às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados às suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes. De par com isso, para a imunidade tributária prevista no art. 150, VI, "a", §2º da Lex Matre, o patrimônio, a renda e os serviços devem estar intrinsecamente relaciona-dos com suas finalidades essenciais.

De tudo conclui-se que, para além dos entes políticos (União, Estados, Distrito Fede-ral e Municípios), para quem a norma imunitória lhes garante maior amplitude de garantia, a imunidade tributária somente afasta a cobrança de impostos dos patrimônios, rendas e serviços efetivamente utilizados na consecução dos seus respectivos fins sociais ou deles de-correntes.

Volvendo à hipótese dos autos, observa-se, de maneira meridianamente clara, que a recorrida emprega a área para fins incontrastavelmente diversos das finalidades essenciais da INFRAERO. Segundo se depreende do “Contrato de Concessão de Uso de Área sem Investi-mento” ancorado às fls. 35 dos autos, a recorrida utiliza-se da área de propriedade da União, que transferiu a sua posse e administração àquela mencionada empresa pública federal, para "exploração de comércio, importação e exportação de veículos automotores, inclusive peças, acessórios, bicicletas, trailers, produtos para uso em camping e minishop”.

Nada despiciendo mencionar, a propósito, que do objeto social da recorrida deflui-se que a sua atividade empresarial é a comercialização e prestação de serviços em veículos au-tomotores da marca xxx. Não se cuida, vê-se, de serviço público constitucionalmente mono-polizado pela União Federal, que, por sua vez, outorgou sua execução para a recorrida, o que, a rigor, autorizaria a extensão da imunidade tributária (RE 265.749/SP, Rel. Ministro MAU-RÍCIO CORRÊA), mas de utilização de bem público para prestação de serviço de natureza eminentemente comercial. Não há que se falar, assim, em longa manus das pessoas políticas por parte da recorrida.

Como então, considerar escorreito o entendimento de que a imunidade tributária re-cíproca deve também ser reconhecida àqueles que, tal qual a recorrida, empregam destinação diversa e com fins lucrativos a áreas de propriedade das pessoas políticos? Ora, o telos do princípio imunitório é, precisamente, não permitir que a coisa pública venha a ser molestada pela tributação, submetendo uma entidade federada sob a outra.

Apenas porque o bem por ora utilizado pelo particular foi cedido pelo Poder Público a imunidade tributária deve acompanhá-la indistintamente? Entendo que não, porquanto a pretensão impositiva do Município, em tema de cobrança de IPTU a terceiro particular con-cessionário de bem público para fins lucrativos, não inviabiliza o próprio funcionamento da Federação.

 

No ponto, merece ser trazido à colação, por necessário, o raciocínio correto e tarjante do Ministro JOAQUIM BARBOSA quando do julgamento do RE 253.472/SP, uti infra:

1.1. A imunidade tributária recíproca se aplica à propriedade, bens e serviços uti-lizados na satisfação dos objetivos institucionais imanentes do ente federado, cuja tributação poderia colocar em risco a respectiva autonomia política. Em consequência, é incorreto ler a cláusula de imunização de modo a reduzi-la a mero instrumento destinado a dar ao ente federado condições de contratar em circunstâncias mais vantajosas, independentemente do contexto.

1.2. Atividades de exploração econômica, destinadas primordialmente a aumentar o patrimônio do Estado ou de particulares, devem ser submetidas à tributação, por apresentarem-se como manifestações de riqueza e deixarem a salvo a autonomia política.

1.3. A desoneração não deve ter como efeito colateral relevante a quebra dos princípios da livre-concorrência e do exercício de atividade profissional ou econô-mica lícita. Em princípio, o sucesso ou desventura empresarial devem pautar-se por virtude e vícios próprios do mercado e da administração, sem que a intervenção do Estado seja fator preponderante.

No mesmo sentido: RE 458.164-AgR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, julgamento em 21-6-2011, Segunda Turma, DJE de 23-8-2011; RE 253.394, Rel. Min. ILMAR GAL-VÃO, julgamento em 26-11-2002, Primeira Turma, DJ de 11-4-2003.

No caso em destrame, tem-se que a recorrida, ao tentar preexcluir a incidência do IPTU sobre o imóvel de propriedade da entidade imune, pretende ver reconhecido, de uma vez por todas, o tratamento isonômico que lhe vem sendo até então equivocadamente assegu-rado, ao garantir que continue importando e exportando veículos automotores, peças, acessó-rios, bicicletas, trailers, produtos para uso em camping etc., por valores muito abaixo do mer-cado, cujas demais empresas privadas, por não valerem-se de bens públicos para o exercício de suas atividades, têm que recolher o IPTU à municipalidade, o que, em relação à recorrida, representa uma diminuição do lucro do negócio ou aumento do preço dos produtos.

Feitas essas breves considerações, a cizânia que reside se se exclui-se a incidência do IPTU sobre imóvel de propriedade da União Federal locado (por meio de concessão) a terceiro particular que o usa para fins lucrativos há de ser definitivamente solvida por intermédio de uma interpretação não-originalista do texto constitucional, a pretexto de, garantindo a isono-mia entre os entes políticos e demais integrantes da Administração Indireta e o pacto federati-vo, ferir ipso facto a isonomia igualmente prevista na Constituição aos particulares e o princípio da livre concorrência da atividade econômica, ao claramente albergar a posição de vantagem econômica de uns poucos em relação àqueles que não se utilizam do artifício da concessão de bens públicos para realização de suas atividades comerciais.

Outrossim, no que pertine a alegação do Município recorrente de que à INFRAERO não se assegura os efeitos protetores da imunidade recíproca, sobreleva notar que a matéria já encontra-se há muito pacificada nessa Corte. Confira-se, a esse respeito, a dicção da jurispru-dência que dimana da decisão exarada pela Segunda Turma do STF em agosto de 2007, e de cujos argumentos declaro-me inteiramente afiliado, verbo ad verbum:

EMENTA: INFRAERO – EMPRESA PÚBLICA FEDERAL VOCACIONADA A EXECUTAR COMO ATIVIDADE-FIM, EM FUNÇÃO DE SUA ESPECÍFICA DESTINAÇÃO INSTITUCIONAL, SERVIÇOS DE INFRAESTRUTURA AERO-PORTUÁRIA – MATÉRIA SOB RESERVA CONSTITUCIONAL DE MONOPÓLIO ESTATAL (CF, ART. 21, XII, “C”) – POSSIBILIDADE DE A UNIÃO FEDERAL OUTORGAR, POR LEI, A UMA EMPRESA GOVERNAMENTAL, O EXERCÍCIO DESSE ENCARGO, SEM QUE ESTE PERCA O ATRIBUTO DE ESTATALIDADE QUE LHE É PRÓPRIO – OPÇÃO CONSTITUCIONALMENTE LEGÍTIMA – CRIAÇÃO DA INFRAERO COMO INSTRUMENTALIDADE ADMINISTRATIVA DA UNIÃO FEDERAL, INCUMBIDA, NESSA CONDIÇÃO INSTITUCIONAL, DE EXECUTAR TÍPICO SERVIÇO PÚBLICO (LEI Nº 5.862/1972) – CONSEQUENTE EXTENSÃO, A ESSA EMPRESA PÚBLICA, EM MATÉRIA DE IMPOSTOS, DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL FUNDADA NA GARANTIA DA IMUNIDADE TRIBUTARIA RECÍPROCA (CF, ART. 150, VI, “A”) – O ALTO SIGNIFICADO POLÍTICO-JURÍDICO DESSA GARANTIA CONSTITUCIONAL, QUE TRADUZ UMA DAS PROJEÇÕES CONCRETIZADORAS DO POSTULADO DA FEDERAÇÃO – IMUNIDADE TRIBUTÁRIA DA INFRAERO, EM FACE DO ISS, QUANTO ÀS ATIVIDADES EXECUTADAS NO DESEMPENHO DO ENCARGO, QUE, A ELA OUTORGADO, FOI DEFERIDO, CONSTITUCIONALMENTE, À UNIÃO FEDERAL – DOUTRINA – JURISPRUDÊNCIA – PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – AGRAVO IMPROVIDO – A INFRAERO, que é empresa pública, executa, como atividade-fim, em regime de monopólio, serviços de infraestrutura aeroportuária constitucionalmente outorgados à União Federal, qualificando-se, em razão de sua específica destinação institucional, como entidade delegatária dos serviços públicos a que se refere o art. 21, inciso XII, alínea “c”, da Lei Fundamental, o que exclui essa empresa governamental, em matéria de impostos, por efeito da imunidade tributária recíproca (CF, art. 150, VI, “a”), do poder de tributar dos entes políticos em geral. Consequente inexigibilidade, por parte do Município tributante, do ISS referente às atividades executadas pela INFRAERO na prestação dos serviços públicos de infraestrutura aeroportuária e daquelas necessárias à realização dessa atividade-fim. O ALTO SIGNIFICADO POLÍTICO-JURÍDICO DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA RECÍPROCA, QUE REPRESENTA VERDADEIRA GARANTIA INSTITUCIONAL DE PRESERVAÇÃO DO SISTEMA FEDERATIVO. DOUTRINA. PRECEDENTES DO STF. INAPLICABILIDADE, À INFRAERO, DA REGRA INSCRITA NO ART. 150, §3º, DA CONSTITUIÇÃO – A submissão ao regime jurídico das empresas do setor privado, inclusive quanto aos direitos e obrigações tributárias, somente se justifica, como consectário natural do postulado da livre concorrência (CF, art. 170, IV), se e quando as empresas governamentais explorarem atividade econômica em sentido estrito, não se aplicando, por isso mesmo, a disciplina prevista no art. 173, §1º, da Constituição, às empresas públicas (caso da INFRAERO), às sociedades de economia mista e à suas subsidiárias que se qualifiquem como delegatárias de serviços públicos. (RE nº 363.412 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, j. em 07.08.2007, DJe-177, DIVULG. 18.09.2008, PUBLIC. 19.09.2008, EMENT. VOL.-02333-03, PP-00611)

Ao ler o versículo acima, vertido numa linguagem suficientemente clara, evidencia-se que a pretensão vindicada pelo recorrente de não extensão da imunidade tributária recíproca à INFRAERO não encontra guarida, haja vista que se uma empresa pública presta um serviço público federal posto sob regime constitucional de monopólio, há de se considerar que a mesma atua como órgão da Administração Indireta, não desenvolvendo, portanto, atividades econômicas próprias das empresas privadas, razão pela qual deve receber o mesmo tratamento, em matéria tributária, dispensado à própria União Federal, entidade política delegante.

No mesmo sentido: RE 542.454-AgR, Rel. Min. AYRES BRITTO, julgamento em 6-12-2011, Segunda Turma, DJE de 17-2-2012; ARE 638.315-RG, Rel. Min. Presidente CE-ZAR PELUSO, julgamento em 9-6-2011, Plenário, DJE de 31-8-2011, com repercussão geral.

In caso, a INFRAERO, por encargo recebido de outorga legal, executa serviço públi-co gratuito de administração de aeroportos, considerado genérico, geral, universal, proporcio-nando vantagens à coletividade como um todo e, por tal razão, abrangida pela imunidade tri-butária prevista no art. 150, VI, “a”, da Constituição.

Feitas essas considerações propedêuticas, donde se extrai que o bem público cedido a particular para fins comerciais é passível de incidência do IPTU, bem assim que a INFRAERO está alcançada pela regra da imunidade tributária recíproca, é mister trazer à lume a questão sobre quem deve integrar o polo passivo da obrigação tributária do Imposto sobre a Pro-priedade Predial e Territorial Urbana: a União Federal ou o concessionário?

De partida, fica de logo o registro de que a União, proprietária da área ocupada pela recorrida mediante contrato de concessão de uso celebrado com a INFRAERO, não pode figurar no polo passivo da obrigação tributária, por vedação constitucional expressa, insculpida no multicitado art. 150, VI, “a”, da Carta Federal.

Lado outro, a jurisprudência desta Casa é fecunda em precedentes no sentido de que o detentor de posse precária e desdobrada, decorrente de contrato de concessão de uso, não tem legitimidade para figurar como sujeito passivo de obrigação tributária (RE 451.152, Rel. Min. GILMAR MENDES, julgamento em 22-8-2006, Segunda Turma, DJ de 27-4-2007; RE 599.417-AgR, Rel. Min. EROS GRAU, julgamento em 29-9-2009, Segunda Turma, DJE de 23-10-2009).

Entendo, todavia, data venia, que os argumentos empregados para subsidiar tal con-clusão não merecem subsistir. A meu ver, tanto a doutrina quanto esta própria Corte, têm se equivocado ao considerar somente a posse que exterioriza a propriedade como núcleo do fato jurígeno criador da obrigação tributária do IPTU. Isso porque aquele que detém qualquer di-reito de gozo relativamente ao bem imóvel, seja pleno ou limitado, deve ser sujeito passivo do IPTU.

Explico melhor.

Tanto a doutrina quanto a jurisprudência pátrias, inclusive dessa Corte Suprema, co-mo antedito, têm compreendido que o sujeito passivo do IPTU é somente aquele que é propri-etário do bem; possui o domínio útil, como propriedade efetiva e econômica do bem, quase propriedade plena; ou detém a posse como exteriorização da propriedade ou condição de sua aquisição ad usucapionem.

Noutras palavras, o argumento de que a recorrida não preenche nenhum dos requisi-tos para ser contribuinte do imposto deita raízes na interpretação de que se trata apenas de posse oriunda de direito pessoal e não real, bem como na disposição constitucional que proíbe usucapião de imóveis públicos.

Entrementes, os arts. 32 e 34 do CTN ao prescreverem o fato gerador e o sujeito pas-sivo do imposto, são claros e não deixam margem para divergências em torno do tema. Não se fez distinção entre a posse oriunda de direito real e pessoal apta a enquadrar, ou não, o agente como contribuinte do imposto, não devendo esta ou qualquer outra Corte de Justiça dar um elastério que a lei complementar não ousou dar.

A propósito, eis o teor dos comandos normativos referenciados:

Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município.

Art. 34. Contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título.

Nos termos do art. 1.196 do Código Civil, considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade, os quais, descritos no art. 1.228, são: uso, gozo, disposição e sequela. A recorrida, no caso in concreto, pode sim ser considerada contribuinte do IPTU, porquanto é possuidora direta, e não mera detentora, do bem público que lhe fora concedido, de onde, inclusive, colhe os frutos de uma atividade comercial com fins lucrativos.

Sem embargo das opiniões contrárias, representadas por juristas de escol e pelo en-tendimento até então prevalecente desta Casa maior quanto à temática in occulis, entendo que o só fato de o particular encontrar-se impossibilitado de um dia vir a ser proprietário, por tra-dição ou usucapião, do bem público que lhe fora concedido o uso não deve ser critério pre-ponderante para determinar sua não sujeição passiva à obrigação tributária. Espelhando o con-texto, o Ministro MARCO AURÉLIO, com inescondível brilho, quando do julgamento do RE 253.472/SP, consignou que "a recorrente [no caso, concessionária] seria o sujeito passivo da obrigação tributária, tendo em conta que o fato gerador do tributo não é apenas a proprie-dade, mas também o domínio útil ou a posse quando estes não estão na titularidade do pro-prietário e, no caso, a União, proprietária do imóvel, transferira o domínio útil à recorrente por concessão de obras e serviços”.

Noutro giro, ainda que se fale que não há antinomia da Constituição Federal e o Có-digo Tributário Nacional no que concerne à enunciação do “fato gerador” do IPTU em razão unicamente de os conceitos de domínio útil e posse guardarem uma dimensão voltada em face da externalização da propriedade, sobrevejo a necessidade de distinção, caso a caso, entre contribuinte de direito e contribuinte de fato para efeito de concluir-se pelo sujeito passivo do imposto.

A título de argumento obiter dictum, sobreleva notar que minha posição não é esco-teira, encontrando subsídio no irrepreensível voto-vista lançado pelo Min. JOAQUIM BAR-BOSA quando do julgamento do suso mencionado RE 451.152/RJ, in litteris:

A circunstância de a parte recorrida não ser juridicamente classificável como contri-buinte não impede que ela, ainda assim, faça parte da relação jurídica tributária co-mo sujeito passivo. Com efeito, a sujeição passiva tributária compreende tanto os contribuintes como os responsáveis tributários [equiparável ao contribuinte de fato].

E continua:

Observo, ainda, que a responsabilidade pelo pagamento dos tributos era conhecida por ambas as partes, pois o termo de contrato que veicula a concessão de uso (TC 2.99.65.055-3) prevê expressamente: ‘Correrão por conta do CONCESSIONÁRIO quaisquer ônus que recaiam ou venham a recair sobre a área dada em concessão de uso e os serviços nelas explorados, inclusive [...] Tributos [...] Municipais [...]’ (fls. 31)

Nessa ordem de ideias, não é por demais salientar que essa mesma cláusula também encontra previsão no TC nº 2.99.65.025-1 firmado pela INFRAERO com a empresa privada recorrida, senão vejamos:

3. Correrão por conta do CONCESSIONÁRIO quaisquer ônus que recaiam ou ve-nham a recair sobre a área dada em concessão de uso e os serviços nelas explorados, inclusive Tributos Federais, Estaduais e Municipais, e os encargos sociais e trabalhistas de seus empregados. Obriga-se, ainda, o CONCESSIONÁRIO a atender às exigências de posturas Estaduais e/ou Municipais, inclusive as inerentes à regularização fiscal. (fls. 36)

Ouso ir mais além, na medida em que considerar o imóvel alheio à imunidade tribu-tária recíproca em função de sua utilização por empresa privada para fins comerciais, e, ao mesmo tempo, decidir que aquele particular que o ocupa não pode integrar o polo passivo da obrigação tributária apenas em razão de sua impossibilidade em ser proprietário do bem pú-blico, nada mais é do que uma burla às escâncaras ao sistema tributário.

Do que vale considerar o imóvel passível de tributação pelo IPTU, na particularidade do caso sub examine, e julgar ilegítimo o seu possuidor direto (usufrutuário) ao pagamento do imposto, cujo encargo também não pode recair sobre a União em função da vedação constitu-cional? Ora, é sabido e consabido que o direito não se aplica a casos hipotéticos, mas à reali-dade da vida, e qualquer cidadão médio sabe que a prevalecer essa teoria, esta Corte Suprema estará esvaziamento em conteúdo a sua própria prestação jurisdicional, autorizando a incidên-cia do IPTU sobre o bem público no específico caso de concessão para particular que o explore para fins comerciais, sem, contudo, considerá-lo contribuinte do imposto por mero rigorismo à letra fria da lei.

Nestas condições, não há outra conclusão a ser adotada senão a de que o fato gerador do IPTU pode sim ser a simples posse direta do imóvel, desde que sito na zona que o CTN define como urbana e preenchidos alguns requisitos excepcionais: a) bem imóvel incorporado ao domínio da União Federal; b) concedido a terceiro particular; c) que o particular empregue ao imóvel destinação alheia aos fins institucionais do ente cedente, visando obtenção de lucro mediante exploração de atividade comercial.

Alfim, quadra alinhavar que não vislumbro qualquer risco de lesão ao sistema federa-tivo a cobrança de IPTU pela municipalidade nos casos tais quais o presente, porquanto, como dito alhures, não se cuida de bem de posse de pessoa administrativa criada para executar, me-diante outorga, serviços públicos constitucionalmente incluídos na esfera orgânica de compe-tência das entidades governamentais, mas sim de empresa privada que está a explorar comer-cialmente a área.

Mesmo sabedor de que meu posicionamento não se ajusta, com integral fidelidade, à diretriz jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal vem firmando na matéria, por meio do exame pretérito de casos bastante símiles, não vislumbro a possibilidade de extensão, à recorrida, em matéria de impostos, da proteção constitucional fundada na garantia da imuni-dade recíproca (CF, art. 150, VI, "a"), pelo que o IPTU lhe deve ser cobrado quanto às ativi-dades executadas no desempenho do encargo, que foi a ela constitucionalmente outorgado pela INFRAERO.

Afeto a essas considerações, tenho que o inconformismo merece acolhida, sendo constitucionalmente lícito ao Município recorrente fazer incidir o IPTU sobre os bens imóveis que compõem o acervo patrimonial da União Federal, utilizados por empresa particular na execução de serviços cuja exploração lhe foi delegada, mediante concessão federal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2009.

BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 10. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense: 2009.

SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: 2010.

 

Data de elaboração: julho/2012

 

Como citar o texto:

CARVALHO, André Luiz Galindo de..Considerações jurídico-constitucionais sobre a (im)possibilidade de reconhecimento de imunidade tributária recíproca a empresa privada ocupante de bem público (recurso extraordinário 601.720/Rj). Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 1022. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/pratica-forense-e-advogados/2630/consideracoes-juridico-constitucionais-im-possibilidade-reconhecimento-imunidade-tributaria-reciproca-empresa-privada-ocupante-bem-publico-recurso-extraordinario-601-720rj-. Acesso em 22 out. 2012.

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