O presente artigo é uma investigação histórica acerca do surgimento das leis sociais, do Estado e da norma jurídica de fonte estatal. O estudo foi feito através de pesquisa bibliográfica qualitativa, e demonstra como o poder estatal só pode crescer em detrimento da liberdade individual.

Sumário: 1. Introdução; 2. Revolução Neolítica e o surgimento da família e propriedade privada; 3. Do surgimento das primeiras cidades-estados aos primeiros impérios; 4. Do feudalismo às monarquias absolutistas; 5. Democracia e demagogia; 6. Conclusão.

 

1. INTRODUÇÃO

Compreender as origens de determinadas instituições é fundamental para uma atitude responsável em relação as mesmas no momento presente. Ideias tem consequências e uma equivocada compreensão acerca de determinadas tradições e instituições já produziu uma verdadeira matança mundo a fora nos últimos séculos. 

No momento em que o ocidente se encontra extremamente polarizado acerca de quais políticas os Estados devem implementar, tanto no campo econômico quanto no campo social, por intermédio de legislações é extremamente importante uma investigação sobre como se deu o surgimento da Lei, dos Estados, das sociedades e dos conflitos. Somente assim é possível não nos cegarmos por ideologias que do ponto de vista da existência histórica são apenas “crianças”.

O presente artigo busca na história a resposta para quando se deu o início das leis nas sociedades humanas, que questões essas leis primitivas buscavam resolver, quem decidia qual era a lei e como se davam as punições decorrentes do desrespeito a essas leis e como essas coisas evoluíram para o que conhecemos hoje como ordenamento jurídico.

Este trabalho baseia-se em uma pesquisa bibliográfica, sendo assim, recontarei a história como ela nos é apresentada, sem inovações, posteriormente fatos históricos serão interpretados do ponto de vista praxiológico, isto é, sob a ótica do estudo da ação humana conforme proposto por Ludwig Von Mises e utilizado pela Escola Austríaca de Economia, modelo criado originalmente voltado para a economia, mas já trazido para o Direito por intelectuais como o Nobel de economia, que possuía doutorado em Direito pela Universidade de Viena, F.A. Hayek e o filósofo e economista Hans-Hermann Hoppe.

 

2. A REVOLUÇÃO NEOLÍTICA

Estima-se que o homem comportamentalmente moderno tenha surgido há cerca de 50 mil anos atrás, eles viviam como caçadores e coletores, isto é, eram essencialmente parasitas sob o planeta terra. Os estudos mais recentes e confiáveis estimam que durante esse período os seres humanos viviam em grupos pequenos compostos, em regra, por 150 pessoas, mas podendo chegar a 500, explorando determinada região. Os homens mais jovens e mais fortes se dedicavam a caça e as mulheres e os homens mais inaptos dedicavam-se a colheita. As pesquisas mais recentes também mostram que a média de vida natural dos humanos nessa época poderia ser superior aos 30 anos de idade. Porém, devido à violência generalizada as mortes não naturais eram uma realidade muito presente. 

Vigorava no período pré-neolítico algo que a História chama de comunismo primitivo, isto é, a não existência de propriedade privada e uma distribuição dos bens pela tribo a fim de atender as necessidades de todos. Contudo, nota-se uma certa romantização dessa organização social, primeiramente pelo fato de haver propriedade privada pois, a arqueologia já mostra o uso de certas ferramentas de caça que certamente eram propriedade de caçadores individuais e o igualitarismo na distribuição de bens simplesmente não existia da forma como se pensa:

O igualitarismo das sociedades caçadoras e coletoras não deve, no entanto, ser excessivamente enfatizado ou idealizado. Estas sociedades também se caracterizavam por aspectos hierárquicos profundos. Semelhantemente ao que se conhece do reino animal, os homens ocupavam uma posição superior às mulheres e as dominavam. Frequentemente as mulheres eram “tomadas” e tratadas pelos homens da mesma maneira que mercadorias do mundo “externo” são tomadas e tratadas: apropriadas, roubadas, usadas, abusadas e comercializadas. As crianças ocupavam uma posição inferior à dos adultos. Além disso, existiam hierarquias tanto entre os membros da sociedade do sexo masculino quando do feminino, dos machos e fêmeas alfa dominante até os membros inferiores da sociedade. Ocorriam disputa por status, e aquele que não aceitasse a ordem estabelecida sofria punições severas. Os perdedores nesta disputa por status mais elevado corriam o risco de serem feridos e até de morrer, ou, na melhor das hipóteses, de serem expulsos da tribo. Em suma, ainda que a vida tribal proporcionasse um padrão de vida confortável em termos de comida e de lazer abundantes, estava longe de ser confortável nos termos da tão desejada “autonomia individual” dos dias de hoje. Pelo contrário, a vida no domicílio tribal implicava disciplina, ordem e submissão. (HOPPE, 2018, p. 32)

Segundo Hoppe (2018) havia um problema essencial que ameaçava a vida dos nossos ancestrais por volta de 20 mil anos atrás. Nossos ancestrais eram seres que se dedicavam a caça e a coleta para sobreviverem e, como a terra pode dar uma quantidade limitada de recursos por determinado período, então o aumento populacional desordenado fazia com que surgisse uma “armadilha malthusiana”. 

Na era pré-neolítica, não se tem conhecimento acerca de casamentos ou a existência de um pudor sexual muito forte. O consenso histórico e arqueológico nos diz que o que vigorava em termos sexualidade nesse período é o que se chama “amor livre”. As mulheres tinham plena liberdade sexual o que acarretava filhos “sem pai” ou filhos de “todos”, pois a responsabilidade na criação desses filhos era socializada com todos da tribo. As mulheres escolhiam os machos mais fortes e mais saudáveis para o coito, há um consenso que a maioria dos homens não conseguiam procriar, o que praticamente não ocorria entre as mulheres, mas a impossibilidade de se determinar quem era o pai das crianças que nasciam reforçava esse sistema em que os filhos eram da tribo. É, no entanto, preciso notar que a plena possibilidade de se determinar quem era a mãe, fazia com que houvesse por parte das mulheres uma significativa responsabilidade no plano individual, mas não no nível que se observa nos dias de hoje.

A situação até aqui exposta, incentivava a altos índices de natalidade nas tribos de nossos antepassados. Com o passar do tempo os seres humanos puderam observar algo que hoje é chamado de Lei dos rendimentos, segundo Hoppe (2018, p. 50) essa lei afirma que “para qualquer combinação de dois ou mais fatores de produção existe uma combinação ideal (de tal forma que qualquer desvio envolve desperdício de material ou perda de eficiência)”, ou seja, se há uma determinada área geográfica limitada da qual determinada tribo retira seus meios de subsistência, então há também um limite no número de indivíduos que essa área pode sustentar, quando o número de indivíduos passar desse limite a qualidade de vida de todos os membros da tribo irá cair em decorrência da limitação geográfica. 

Nossos ancestrais, num primeiro momento, lidaram com a Lei dos rendimentos promovendo abortos generalizados. Num segundo momento, quando as tribos observavam que a terra disponível não dava conta de sustentar o número de seus membros, promoviam um êxodo, tal movimento foi essencial para espalhar a raça humana pela Europa, Oriente Médio e Ásia. Contudo, nesse período o planeta passou por diversas mudanças climáticas que afetaram bastante a quantidade de terra fértil disponível para a subsistências desses humanos que deixavam suas tribos em busca de novos territórios:

No período em estudo, nos mais de vinte mil anos entre os 35.000 e 11.000 mil anos atrás, ocorreram mudanças drásticas nas condições naturais. Há vinte mil anos, por exemplo, durante um período chamado último máximo glacial, as temperaturas caíram acentuadamente e a maior parte do norte da Europa e da Sibéria se tornou inabitável. A Grã-Bretanha e toda a Escandinávia foram cobertas por geleiras, a maioria da Sibéria se transformou num deserto polar, e a tundra chegava até o Mediterrâneo, o Mar Negro e o Mar Cáspio. Depois de cinco mil anos, há cerca de quinze mil anos, as geleiras começaram a retroceder, permitindo que pessoas, animais e plantas reocupassem regiões anteriormente desérticas. Dois mil e quinhentos anos depois, contudo, em apenas uma década, as temperaturas novamente caíram até quase as mesmas condições gélidas de antes; e, mil anos depois, há cerca de onze mil e quinhentos anos, de novo abruptamente, as temperaturas sofreram um aumento considerável e a Terra entrou no período chamado Holoceno, o mais recente e ainda duradouro período de aquecimento interglacial. (HOPPE, 2018, p. 44)

Nesse contexto de escassez de terras habitáveis, as guerras intertribais se tornaram cada vez mais habituais, fato que também contribuiu para um certo controle populacional entre os humanos. Mas o meio pelo qual a humanidade escapou da “armadilha malthusiana” não foi nem por meio de abortos generalizados, nem por migração e muito menos pela habitualidade das guerras, o que salvou a humanidade do problema da escassez de bens disponíveis foi uma invenção, a invenção da agricultura. 

Há cerca de onze mil anos atrás, por meio da observação de processos naturais o homem concebeu a agricultura, na chamada revolução neolítica, essa invenção foi a primeira de três concepções humanas que resolveram o problema da Lei dos rendimentos, pois, nossos antepassados deixaram de ser parasitas sobre a Terra e se tornaram produtores, desse evento decorreu a segunda invenção humana essencial para que o aumento populacional não mais ameaçasse o padrão de vida, a propriedade privada dos meios de produção. Até então, havia dois tipos de propriedade privada nas sociedades humanas, de bens utilitários como roupas, ferramentas, porção de comida e a autopropriedade, isto é, a propriedade de si mesmo, mas a terra e os animais eram propriedade de ninguém, ao conceber a agricultura os seres humanos observaram que considerar as terras nas quais os indivíduos trabalhavam como sendo de todos criava problemas como, as pessoas não trabalhavam por igual, não sendo justo elas receberem por igual e que apesar disso era complicado demais determinar os que mais trabalhavam. 

A saída para otimizar a agricultura e evitar conflitos sociais decorrentes da divisão do produto final foi a criação da propriedade privada das terras agricultáveis. Mas essas duas invenções só resolviam parte do problema da Lei de rendimentos, uma vez o crescimento constante da natalidade ainda era um problema na nova vida sedentária dos grupos humanos. Á saída foi “privatizar” as crianças, antes responsabilidade da sociedade ante a impossibilidade de se determinar a paternidade das crianças e a organização social mais simples, agora, com o advento do sedentarismo e agricultura os nossos antepassados passaram a ver com mais clareza o problema da crescente natalidade, observou-se que o estado de amor livre somado aos novos níveis de produtividade deixou os machos livres para procriar à vontade.

 Para se privatizar as crianças era necessário passar a poder determinar a paternidade e obrigar o pai a garantir exclusivamente a subsistência dos seus filhos. A saída foi criar freios morais ao amor livre, com casamentos monogâmicos e poligâmicos onde a mulher estava obrigada a 2 coisas, guardar a virgindade até se casar e, ao se casar, se obrigar a manter relações sexuais apenas com seu marido. Uma vez que é extremamente fácil e natural determinar a maternidade, mas a paternidade, até o advento dos exames de DNA, era impossível de se determinar com certeza a fidelidade feminina passou a ser mais requisitada do que a masculina.

Essas três invenções humanas, agricultura, propriedade privada e a família trouxeram a necessidade de novas regras, que podemos denominar de direito primitivo. Até o neolítico, haviam poucas regras e elas basicamente se baseavam na força de determinados indivíduos, porém agora nasce leis para proteger o novo status quo, onde haviam famílias com a propriedade das terras e do que nelas se produzia. As primeiras leis neolíticas surgiram antes do Estado, nasceram da sociedade, isto é, de indivíduos livres interagindo entre si com o objetivo de cooperação para atingir benefícios individuais e familiares. Por óbvio, a tutela desses direitos era feita pelos próprios indivíduos e no caso do conflito de interesses, ao contrário do que pode se imaginar, não se partia logo para os conflitos armados. Toda sociedade tem a assim chamada “elite natural”, pessoas que constroem sua fama em determinada localidade a partir de suas habilidades, sejam elas intelectuais, em construir riquezas ou baseadas na experiência de vida, certamente a eles se recorriam pessoas em conflitos e os mesmos aplicavam a lei advinda da tradição, tais veredictos eram respeitados por pressão social naquele assentamento humano. Como podemos determinar esses fatos até aqui narrados, acerca do direito primitivo, ao nascer do estilo de vida sedentário? Ocorreu algo parecido na história humana, a ordem social no início do feudalismo, ao falar da passagem da aristocracia para a monarquia durante a Idade Média, Hans-Hermann observa que:

Supondo, então, uma demanda por parte das entidades em conflito para que juízes especializados, árbitros e pacificadores não façam leis, mas apliquem determinada lei, para quem as pessoas se voltaram para satisfazer tal demanda? Obviamente, não se voltarão para qualquer um, pois a maioria das pessoas não tem capacidade intelectual ou caráter necessário para ser um bom juiz, e as palavras da maioria das pessoas, portanto, não tem autoridade e pouca ou nenhuma chance de serem ouvidas, respeitadas e aplicadas. Em vez disso, a fim de resolverem seus conflitos e de fazerem com que o acordo seja reconhecido e respeitado por outros de forma duradoura, as pessoas se voltarão para as autoridades naturais, para os membros da aristocracia natural, para os nobres e os reis. (HOPPE, 2018, p. 121,122)

Muitos podem se perguntar, o motivo de se esperar comportamento de tamanha civilidade de nossos antepassados que não muito tempo atrás se estruturavam preponderantemente sob força e violência. Os primeiros humanos sedentários não tinham muitos incentivos para conflitos violentos internos, uma vez que isso ameaçaria a produtividade. Eles também sofriam muitos ataques dos humanos que ainda viviam como nômades, os primeiros assentamentos eram fonte de muita comida para os que ainda insistiam no modelo parasitário de sobrevivência, os homens mais jovens e fortes precisavam dividir sua atenção ao trabalho no campo e na segurança do assentamento.

 

3. DO SURGIMENTO DAS PRIMEIRAS CIDADES-ESTADOS AOS PRIMEIROS IMPÉRIOS

O advento da agricultura e pecuária fez nascer os primeiros assentamentos humanos, que deixaram a vida nômade para aderir ao modo de vida sedentário. Na medida em que determinados grupos dominava áreas geográficas férteis, surgiam dois problemas, a defesa daquela área contra invasores interessados nas características geográficas e manter a ordem e coesão social dentro da comunidade.

Segundo Neto e Tasinafo (2006) o surgimento das cidades-estados pode ser observado em duas regiões distintas, mas com uma característica comum. Egito e Mesopotâmia, no Egito as cheias do Rio Nilo proporcionavam uma vasta área agricultável, algo que na Mesopotâmia era proporcionado pelos rios Tigre e Eufrates. Os primeiros registros de civilizações datam de 5.000 mil anos atrás, as primeiras cidades mesopotâmicas surgiram cerca de 2.900 antes de Cristo.

Nesse contexto, onde as famílias tinham propriedade privada das terras e nelas produziam para sobreviver surge a desigualdade econômica, não há que se falar em desigualdade social advinda da existência da propriedade privada uma vez que, como já foi esclarecido anteriormente nesse artigo, havia uma desigualdade social marcante nas tribos humanas durante o chamado comunismo primitivo. Não demorou muito para a produtividade gerar um excedente de bens disponíveis, o que fez surgir o comércio feito por meio das trocas. Nesse diapasão, começa a surgir algumas leis destinadas a disciplinar a vida nessas comunidades, tais leis surgem dos costumes e são consagradas através da religiosidade.

As manifestações mítico-religiosas dos povos antigos expressavam as perguntas que eles faziam, por exemplo, sobre a dinâmica da natureza ou a origem e o sentido da vida. Para responder a essas questões, procuraram explicações em forças sobrenaturais ou da natureza, criando mitos, uma maneira de explicar fatos e questões do cotidiano. Os mitos deram origem às religiões que cultuavam deuses ligados às forças da natureza ou a animais. Algumas dessas civilizações acreditavam na vida após a morte e mumificavam seus mortos para prepara-los para enfrentar o desconhecido. Alguns deuses possuíam características humanas, ficavam irados ou eram benevolentes, sendo capazes de atender pedidos. Os sacerdotes desempenhavam um papel central em algumas dessas sociedades, como intermediários entre o divino e o terreno. (NETO; TASINAFO, 2006, p. 12)

Nesse contexto, agora é hora de tratar de um fenômeno social que é o grupo de pessoas que decidiram viver da expropriação de bens privados, os ladrões. Pode-se dividir essa classe de pessoas em 2 grupos, tribos que ao se depararem com territórios férteis já habitados queriam tirar a terra de seus primeiros proprietários para nelas produzirem para si e os que, sejam tribos ou indivíduos, simplesmente queriam viver da produção alheia, com os indivíduos era fácil de lhe-dar, bastava aplicar-lhes penas como decepamento de membros ou mesmo a pena de morte, já com grupos de salteadores só se podia recorrer a permanente vigilância. Nesse período, algumas cidades ao se depararem com crescimento populacional e esgotamento de terras já sob seus controles também decidiam partir para a guerra de expansão territorial, afim de subjugar outras cidades.

Nessas sociedades mais complexas, a divisão do trabalho se acentuou, hierarquias sociais foram estabelecidas e a guerra, forma de disputa por territórios e pelo poder, tomou dimensões maiores, sendo a principal maneira de subjugar outros povos e tirar proveito das conquistas. (NETO; TASINATO, 2006, p. 12)

Essas guerras de expansão e dominação, bem como a decisão de alguns em não viver às custas de suas próprias produções começam a criar um novo fenômeno, o Estado. Mas para se entender melhor como aqueles ajuntamentos de proprietários trabalhando na agricultura, se organizando em milícias defensivas e com uma ordem baseada em leis aplicadas por elites naturais se transformaram em sociedades extremamente estratificadas, com pequenas castas dominantes, poucos donos de grandes terras, uma imensidão de servos e escravos e alguns trabalhadores livres é preciso observar o fenômeno religioso.

Na medida em que o processo de criação de mitos sobrenaturais se firmava como meio principal das pessoas lidarem com mistérios da vida, surgiam os homens que se proclamavam ou eram socialmente reconhecidos como místicos capazes de abrir um canal de comunicação com os deuses que poderia ser crucial para o êxito econômico dos humanos. Qualquer tentativa de impor dominação sobre determinados povos não podia prescindir da religião e seus sacerdotes.

            Suponha que membros de um assentamento A parta em busca de guerrear e dominar sobre os assentamentos B, C e D, vitorioso em suas pretensões os membros do assentamento A vão se tornar uma casta que agora não vai mais fazer nada que não seja viver as custas da produção das terras B,C e D, isso será possível pelo fato de o grupo vencedor na guerra agora impor um pagamento de tempos em tempos para não matar os sobreviventes da guerra nos assentamentos perdedores. Soma-se a isso o fato de que os homens mais diretamente envolvidos no conflito, isto é, os soldados foram feitos de escravos, juntos de suas esposas e filhos. Mas para esse domínio ser relativamente pacifico e perene no tempo, uma vez que os governantes não queriam revoltas de tempos em tempos, a saída é cooptar a classe sacerdotal, doando-lhes, por exemplo, boa parte das terras A para sustento. A repetição desses fenômenos em lugares diferentes e de forma sucessiva criou as primeiras cidades-estados, bem como os primeiros impérios:

Os sumérios, segundo os estudos recentes, não eram uma população autóctone, ou seja, originária do próprio lugar. Provavelmente chegaram de regiões vizinhas, como a Ásia Central. Mas a presença dos sumérios não constituiu uma invasão: o grupo que se fixou no sul da Mesopotâmia veio em sucessivas ondas migratórias e se misturou com as populações locais. Pouco ao norte dos sumérios, um outro grupo se fixou: os acádios ou acadianos, de origem semita, que incluem os hebreus, babilônicos e fenícios, por exemplo, e receberam esse nome pois se organizaram a partir da cidade de Akkad. Sumérios e acadianos começaram a rivalizar-se pelo domínio dos canais de irrigação e o aproveitamento dos recursos hídricos dos rios Tigre e Eufrates. Os acadianos, por sua proximidade com as nascentes, ao desviarem um trecho do rio, alteravam o volume de águas que seguiam para os sumérios, por exemplo. Essa questão interferia nas relações políticas entre os dois povos que se fixaram na Mesopotâmia na mesma época. A situação política era instável, não no interior das cidades que tinham suas próprias formas de organização e de poder, mas nas relações entre as diferentes cidades, que tentavam impor o seu domínio, umas sobre as outras. Por volta de 2350 a.C, sob a liderança de Sargão de Akkad, deu-se a unificação entre as áreas sumérias e acadianas, e fundou-se o primeiro império, que pouco depois atingiria as áreas que iam do Mediterrâneo ao golfo Pérsico. O sistema político adotado por Sargão alterava o modelo que reconhecia a autonomia das cidades e do templo, pois a religião era um importante elemento para o exercício do poder de cada cidade, que acreditava ter uma divindade por localidade. (NETO; TASINAFO, 2006, p. 30)

Ainda assim, com os primeiros impérios formados, sumério e egípcio, verifica-se que somente no Egito o governante tinha o poder de fazer leis. Os primeiros governantes despóticos na Mesopotâmia somente preservavam as leis que já estavam na sociedade, embora com o passar do tempo em decorrência da intensificação da estratificação social iniciada com a imposição das monarquias começou-se a haver cada vez mais uma maior intensificação nas punições contra crimes cometidos pelos mais pobres em relação aos mais ricos. Isso se deve ao fato de que no império Acadiano e posteriormente no Babilônico o Rei não tinha pretensões divinas, mas se diziam servo dos deuses, diferente do Egito, onde o Faraó se proclamava um deus naquela terra.

 

4. DO FEUDALISMO ÀS MONARQUIAS ABSOLUTISTAS

O início dos primeiros impérios durou, as custas de muito atraso e violência, até o último dos impérios da antiguidade, o Império Romano. A série de invasões bárbaras, saques e violência provocou, ao longo dos anos, um êxodo das cidades para os campos que foi desenhando uma realidade social fundada na descentralização política e jurídica. Um efeito nocivo da Alta Idade Média foi a rígida divisão em estamentos sociais, fruto das condições econômicas e herança do pensamento da elite romana.

O processo feudal começa com os nobres e ricos romanos indo se refugiarem, da violência nas cidades do império, nas suas fazendas nas áreas rurais. Essa fuga também é empreendida pelo mais pobres e suas famílias que vão para onde muitos ricos estão, em busca de emprego. A completa queda do Império Romano e as guerras internas entre os bárbaros conquistadores fez com que uma ideia que talvez fosse temporária fosse se tornando um modo de vida permanente. Pode-se imaginar que os primeiros a irem para o campo jamais imaginavam que Roma iria cair, talvez crescem que se passava apenas uma perturbação passageira da ordem, mas na medida que os séculos passavam tudo ia mudando irremediavelmente.  Juridicamente podemos destacar:

A adoção do direito consuetudinário, ou seja, concepção do costume como fonte das leis, se manteve por boa parte da Idade Média, superando o direito romano. Embora este ainda fosse usado em algumas regiões, já não havia mais um estudo específico sobre os princípios da legislação e ordenamento jurídico como havia no período romano e a concepção da personalidade das leis sobrepôs-se à da territorialidade, isto é, cada homem era julgado, em qualquer local, segundo as leis de seu povo e não do lugar em que se encontrava. Essa concepção enfraquecia a perspectiva de um modelo único e levava à particularização do Direito e à adoção de costumes tribais como referência jurídica. (NETO; TASINAFO, 2006, p. 94)

A descentralização jurídica e política na Europa durante a Idade Média, promoveu um período de relativa liberdade de facto, sabemos que vigora nas ciências sociais a ideia de que a história humana recente é marcada pelo aumento da liberdade dos indivíduos, contudo isso é uma verdade estritamente jurídica, decorrente não da mudança promovida pelo Direito na sociedade mas sim decorrente da mudança promovida pela sociedade no Direito. Desde a Revolução Industrial o avanço do sistema capitalista foi promovendo uma cada vez maior disponibilidade de bens para fazer os seres humanos passarem de um estado de menor satisfação para um estado de maior satisfação, foi esse enriquecimento econômico que influenciou na promoção de mais liberdades consagradas em ordenamentos jurídicos estatais.

Do ponto de vista da vida diária de um homem comum, hoje gozamos de menos liberdade em relação ao homem comum no feudalismo. Por exemplo, a ditadura dos horários era praticamente inexistente naquele período. Um problema daquela época que cresce no mundo todo, sendo no Brasil mais perceptível, são os altos impostos que recai sob homem comum (mas como somos taxados no consumo, não parece ser tanto assim num primeiro momento). Agora, uma significativa diferença entre o homem medieval e o contemporâneo é a segurança de sua propriedade privada, mesmo um servo tinha direito vitalício à sua terra (na qual vivia e plantava). Conceitos como função social da propriedade privada praticamente estatizou as terras de uma forma “humanista” no Brasil e em outras partes do mundo. Interessante notar que no Direito medieval a terra é do seu senhor, entretanto, os que detinham  o usufruto o faziam com uma segurança em estilo de proprietários, já no Direito atual somos os proprietários das nossas terras, entretanto não podemos nos utilizar dela como bem entendermos, precisando observar diretrizes do Estado, algo que na prática nos transforma em posseiros. 

O século XIV marcou o início do fim do período feudal, bem como de sua descentralização política e jurídica, importante notar a significativa influência de questões climáticas, como chuvas torrenciais e também da influência da Peste Negra que dizimou cerca 35% da população europeia. Importante notar que esses eventos traumáticos por si só não poderiam ter destruído o sociedade feudal, o que foi determinante para o fim do feudalismo foi a falta de visão de longo prazo e sensibilidade contextual por parte da nobreza feudal, que por conta disso nunca mais teriam o nível de poder e liberdade que até agora gozavam.

De um lado, revoltas camponesas, de outro lado, fortalecimento da burguesia. Diante da nova conjuntura os nobres ao invés de abrir mão, mesmo que temporariamente, de viver completamente as custas dos camponeses, preferiram recorrer a nobres mais ricos e bem armados para se protegerem, tais nobres, é claro, não pretendiam fazer isso gratuitamente e, sendo assim, exigiam em troca nada mais que poder sobre os demais nobres, estes aceitaram tais exigências. Contudo, a nobreza encontrou uma maneira de costurar alianças que garantissem a eles participar da parasitagem que, certamente, os novos soberanos estavam dispostos a promover.

A ótica dos nascentes Estados-nacionais não eram em nada diferentes da ótica de qualquer governante da antiguidade, nem mesmo dos senhores feudais, sobreviver às custas de expropriação e parasitagem. À princípio, para não se indisporem e atraírem a simpatia da burguesia, ressuscitaram o Direito Romano com suas noções de propriedade privada e direito civil para permitir que os burgueses, sobretudo os mais bem sucedidos, pudessem com uma padronização jurídica e monetária gozar de maior prosperidade. Mas, com o passar do tempo e na medida em que consolidavam poder, estes novos monarcas, juntos da nobreza, expandiam cada vez mais seus poderes e gastos absurdos, impondo regras loucas e tributação excessiva sobre a classe produtiva, o que leva ao fim das monarquias absolutistas alguns séculos à frete.

A adoção do Direito Romano, é certamente a marca do crescente agigantamento do Estado, que foi pausado por um breve período com o advento do liberalismo europeu, mas que ressurgiu causando eventos como a Revolução Russa e as Guerras Mundiais. A descentralização jurídica e política proporcionavam um sistema mais próximo do indivíduo, fincado na realidade das pessoas, com o advento da concentração de poder nos monarcas as soluções e projetos, por serem concebidos cada vez mais distantes das pessoas estavam cada vez voltados para os problemas do rei e nobreza, as custas dos rendimentos da classe produtiva. Em suma, no feudalismo os nobres podiam até intervir em questões privadas e resolver problemas entre eles e o povo, mas eles faziam isso baseados numa lei já existente, que não foi por eles criadas, agora os reis ganham o poder de fazer as leis, a contradição é óbvia:

Suponha agora que um grupo de pessoas cientes da realidade dos conflitos interpessoais e em busca de uma forma de escapar a este revés. E suponha que eu proponha o seguinte como solução: em todos os casos de conflito, incluindo conflitos em que eu mesmo estou envolvido, terei sempre a última palavra. Serei o juiz final a determinar quem é o dono do quê e quando e quem está consequentemente certo ou errado em qualquer disputa relacionada à escassez de bens. Assim, todos os conflitos podem ser evitados ou facilmente resolvidos. (HOPPE, 2018, p. 117)

O brilhante filósofo e economista alemão Hans-Hermann Hoppe continua sua explicação a razão de ser um absurdo o Estado ser juiz de todas as questões baseados nas suas próprias leis:

Se você entra em conflito com o Estado, com seus agentes, são o Estado e seus agentes que decidirão quem tem ou não razão. O Estado tem o direito de taxa-lo. Portanto, é o Estado que determina o quanto de sua propriedade você tem direito de manter – isto é, sua propriedade é apenas “transitória”. E o Estado pode fazer leis, legislar – isto é, toda a sua vida está à mercê do Estado. (HOPPE, 2018, p. 118)

Não é de se estranhar o que se tornou as monarquias absolutistas e como foi preciso pôr fim a esse sistema. Como explica Bastiat (2019) as monarquias absolutistas não eram nada mais que um sistema de espólio legalizado de poucos contra muitos.

 

5. Democracia e demagogia

Segundo Aristóteles (2009) as formas de governo são monarquia, governo de um em favor de todos, aristocracia, governo dos melhores em favor de todos e a democracia, governo de todos em favor de todos. Contudo, para Aristóteles as formas de governo apresentavam corrupções e a corrupção da democracia seria a demagogia. Demagogia é o governo constituído de forma democrática, mas baseado no falseamento da realidade, manipulação generalizada com o objetivo de oferecer ao povo esperanças irrealizáveis.

Bastiat (2019) viveu no contexto da Segunda República Francesa, que ainda tinha bem viva as memórias e ideais da Revolução Francesa, colocou-se contra o aprofundamento da democracia na França pela seguinte razão: a monarquia havia se mostrado um sistema que sobrevivia da espoliação de poucos (rei, nobreza, clero) em relação ao povo (burguesia e trabalhadores) e o advento da república havia simplesmente aprofundado o status quo de espólio legalizado, mas agora, baseando-se em demagogia os políticos franceses estavam propagando ao povo a ilusão de que era possível constituir um sistema na qual todos podem viver as custas de todos.

Na visão de Bastiat (2019) a Assembleia Francesa legislava sistematicamente em desfavor da propriedade privada e da responsabilidade fiscal, o órgão havia se tornado uma instituição que acreditava que podia intervir em todos os aspectos da vida privada dos cidadãos, retirando direitos naturais e criando direitos positivados absurdos. Essa situação política criava um incentivo perverso, as pessoas de diferentes grupos passaram a se interessar em entrar na política para promover leis que autorizassem que o Estado expropriasse outros grupos em favor dos seus, e que como isso ocorria de parte de todos os grupos sociais a situação francesa estava ficando insustentável. O Estado estava se tornando uma burocracia incontrolável e praticando arbitrariedades maiores das que foram empreendidas pela monarquia que foi deposta na Revolução.

Outro grande economista e cientista político se debruçou sobre a democracia e nos deu uma análise profunda que mostra como o que chamados de democracia não passa de demagogia, e demagogia perigosa pelo fato de emprestar certa legitimidade para ações estatais ilegítimas. Vejamos:

Com o advento da democracia, a identificação do Estado com a sociedade foi redobrada, e hoje é comum ouvir apelos sentimentais, como “nós somos o governo”, que violam praticamente todos os princípios de razão e bom senso. O termo coletivo útil “nós” permitiu lançar uma camuflagem ideológica sobre a realidade da vida política. Se “nós somos o governo”, então, qualquer coisa que um governo faça a um indivíduo não é apenas justa e não tirânica, mas também “voluntária” de parte do indivíduo em questão. Se o governo incorreu numa dívida pública enorme que deve ser paga pela tributação sobre um grupo para benefício de outro, a realidade desse fardo é obscurecida pela afirmação de que “nós somos o governo”; se o governo recruta um homem, ou o prende por opinião dissidente, então, ele “ está fazendo isso a si próprio” – logo, não há nenhum problema. Pelo mesmo raciocínio, quaisquer judeus assassinados pelo governo nazista não foram mortos, mais sim “cometeram suicídio”, dado que eles eram o governo (que foi eleito democraticamente) e, portanto, qualquer coisa feita pelo governo contra eles foi voluntária de sua parte. Não seria preciso insistir nesse ponto; todavia, a esmagadora maioria das pessoas sustenta essa falácia em maior ou menor grau. Devemos, portanto, enfatizar que “nós” não somo o governo; o governo não somos “nós”. O governo não “representa” de nenhuma forma concreta a maioria das pessoas. Mas, mesmo que se assim fosse, mesmo se 70% das pessoas decidissem assassinar os 30% remanescentes, isso ainda seria assassinato e não suicídio voluntário por parte da minoria executada. (ROTHBARD, 2019, p. 14)

O grande problema das legislações positivadas a partir do consenso político majoritário denominado democracia é justamente o fato de, a priori, não necessitarem de fundamentação na lógica ou ética. Por exemplo, atualmente em diversos países se fortalece a proposta de que, diante do grande endividamento público, da falência da social democracia e da ideia de que as pessoas tem direitos sociais a serem garantidos pelo Estado não importa o custo financeiro disso, deve-se sobretaxar os mais ricos pois, por serem mais ricos, eles devem pagar o insustentável estado de bem-estar social, uma vez que essa ideia se torne lei de forma democrática, então o governo vai promover essa prática. Porém, o que a economia séria e a experiência de países que já fizeram essa loucura nos diz é que os mais ricos, diante disso, vão se mudar para países que não adotem essa legislação e levaram seus investimentos juntos, aumentando o desemprego como ocorreu, por exemplo, na França. Agora, suponhamos que todos os Estados resolvam positivar essa legislação, isso significaria um incentivo perverso a não produtividade, os mais ricos são geralmente os grandes empresários mais produtivos, se ser produtivo e gerar riqueza vai lhes render expropriação para subsidiar as pessoas menos produtivas, qual a razão para o aumento da sua própria produtividade?

Voltando aos ensinamentos de Bastiat na sua célebre obra “A Lei” (2019), a perversão do Direito para a promoção da espoliação legalizada traz outros incentivos nefastos. Imagine que os maiores empresários de determinado ramo, com o intuito de inviabilizar a competição em seu setor, podem se juntar e eleger legisladores que criaram uma regulação econômica que inviabilize a vida de pequenos ou novos empresários naquele ramo, implementando um oligopólio legalizado, ou seja, grandes empresários espoliando seus consumidores. Ou imagine que produtores de determinado setor de um país, ao perceberem que os mesmo produtos que vendem está sendo importado pro país, e que os produtos importados são de maior qualidade e mais baratos, ao invés de promoverem uma melhora no que produzem podem eleger legisladores para sobretaxar os produtos importados para eles se beneficiarem, em detrimento do bem estar financeiro do consumidor. Por qual razão essas coisas ocorrem em diversos países? Pelo fato de que numa democracia, a maioria legislativa não está presa a razão e a uma ética universal e atemporal. Na sociologia e filosofia moderna, é majoritário a defesa do relativismo moral, que leva a um entendimento pela impossibilidade de uma ética universal e atemporal, a resposta a essa questão é dada por Hans-Hermann Hoppe e sua “ética argumentativa” concebida a partir do trabalho de dois outros grandes pensadores, Murray Rothbard e Jürgen Habermas. Nesse artigo, voltado as ciências jurídicas e limitado pela estrutura e finalidade de um artigo científico, não será aprofundado o estudo da ética argumentativa. Mas, uma saída interessante para o problema da demagogia democrática, do agigantamento estatal e mesmo da aprofundada polarização política no Ocidente é esta: 

O que é, então, a Lei? Como eu disse alhures, é a organização coletiva do Direito individual de legítima defesa. Cada um de nós recebeu de maneira certa da natureza, de Deus, o direito de defender sua Pessoa, sua Liberdade, sua Propriedade, pois esses são os três elementos constitutivos ou conservadores da Vida, elementos que se completam entre si e que não podem ser compreendidos um sem o outro. Afinal, o que são nossas Faculdades, se não um prolongamento de sua Personalidade, e o que é a Propriedade se não um prolongamento das nossas Faculdades? Se cada homem tem o direito de defender, mesmo que por meio da força, sua Pessoa, sua Liberdade, sua Propriedade, muitos homens tem o Direito de concertar-se, de entender-se, de organizar uma Força comum para prover regularmente a essa defesa. O direito coletivo tem, portanto, seu princípio, sua razão de ser, sua legitimidade no Direito individual; e a Força comum, racionalmente, não pode ter fim e missão diversos daqueles das forças isoladas às quais ela substitui. Assim, como a força de um indivíduo não pode legitimamente atentar contra a Pessoa, a Liberdade, a Propriedade dos indivíduos ou das classes. Essa perversão da Força estaria, tanto num caso como no outro, em contradição com nossas premissas. Quem ousará dizer que a Força nos foi dada não para defender nossos Direitos, mas para aniquilar os Direitos iguais de nossos irmãos? E se isso não vale para cada força individual, agindo isoladamente, como valeria para a força coletiva, que é apenas a união organizada das forças isoladas? Portanto, se existe algo evidente, é o seguinte: a Lei é a organização do Direito natural de legítima defesa; é a substituição das forças individuais pela força coletiva, para agir no coletivo onde aquelas têm o direito de fazer, para garantir as Pessoas, as Liberdades, as Propriedades para manter cada qual em seu Direito, para fazer reinar entre todos a Justiça. (BASTIAT, 2019, p. 42, 43)

O economista francês Frédéric Bastiat propõe uma que a lei legitima é apenas a que promove a organização coletiva do direito individual à legitima defesa de si e de seus bens, se assim fosse feito nos dias de hoje não veríamos toda essa polarização e desintegração social pois o governo se limitaria a, através da Lei e do poder de polícia, garantir intactos nossa vida e nossos bens, e de resto cada um teria liberdade para viver sua vida como bem entendesse, desde que não agredindo a vida e propriedade alheia.

 

5. CONCLUSÃO

Vimos nesse estudo que em dois momentos diferentes a humanidade passou por um mesmo processo. Após a Revolução Neolítica a humanidade, em razão da agricultura, se sedentarizou e as primeiras leis vieram da sociedade, estavam ancoradas na tradição e na medida em que surgiram as primeiras formas de Estado, como as cidades-estados até chegarem nos primeiros impérios os governantes foram ganhando o poder de fazer leis, poder que levou a um Estado cada vez mais totalitário, onde monarcas se proclamavam deuses. O Império Romano levou o totalitarismo da antiguidade a seu patamar mais elevado até ruir nas mãos dos povos, por eles denominados, bárbaros. 

A queda do Império Romano levou a humanidade novamente a um contexto de descentralização política e jurídica na qual a lei feita por governantes deu lugar a leis surgidas do povo em suas culturas e ancoradas em suas tradições. Porém, na Baixa Idade Média houve novamente um processo de centralização política que leva a uma centralização jurídica, pois os governantes novamente ganham o poder de decidir qual era a lei, o que novamente leva a um Estado totalitário nas monarquias absolutistas. 

Chegamos ao mais emblemático momento político jurídico, a democracia moderna. É atribuída ao estadista britânico Winston Churchill a seguinte frase: “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais.”, diante dessa frase não há como não se lembrar da obra mais famosa do alemão Hans-Hermann Hoppe. Em Democracia o deus que falhou, Hoppe defende que não é em nada positiva a passagem da monarquia para a democracia, por diversos motivos dentre as quais:

A instituição da propriedade privada governamental molda sistematicamente a estrutura de incentivos, fazendo frente ao governante e influenciando nitidamente a sua condução dos negócios do governo. Partindo do princípio do autointeresse, o governante tenta maximizar a sua riqueza, o valor presente da sua propriedade e as suas receitas correntes. Ele não se interessaria em aumentar as suas receitas correntes à custa de uma redução mais do que proporcional do valor presente dos seus ativos. Além disso, uma vez que os atos da aquisição das receitas correntes invariavelmente engendram repercussões no valor presente dos seus ativos (o que reflete o valor de todos os esperados rendimentos futuros dos ativos com desconto da taxa de preferência temporal), a propriedade privada, por sua própria natureza, conduz ao cálculo econômico, promovendo, em consequência, uma visão de longo prazo (orientada para o futuro). (HOPPE, 2014, p. 49,50)

Hoppe defende que enquanto nas monarquias o rei, por ser “proprietário” do governo, tende a ver o país como propriedade privada da qual ele tira seu sustento e ainda pode repassar a um herdeiro, motivo pelo qual o rei teria mais incentivo a praticar uma política fiscal mais prudente já que por ter um governo perene no tempo ele quer seu país prosperando para ele e sua descendência. Já na democracia, pelo fato de o governo ser considerado coisa pública e pelo fato de o governante ter um exercício de poder limitado no tempo e sem a possibilidade de repassa-lo a um herdeiro a tendência é que presidentes e primeiros ministros tendem a praticar uma predação irresponsável, totalmente voltada para o curto prazo, na intenção de ser o mais bem visto possível pela população, mesmo que momentaneamente, para lhe garantir prestígio e uma continuidade na política, o que leva a uma política fiscal irresponsável e também a incentivos ao povo para preferir a predação em vez de produção, pervertendo a linha nítida nas monarquias que separam povo do Estado, assumindo que o povo nunca é o governo, mesmo na democracia. Contudo, como vimos nesse estudo a democracia não só aprofunda a ideia de que o Estado faz a lei, como perverte o conceito de lei.

    Quando o Estado, que já tem a palavra final nos conflitos (inclusive nos conflitos como ele mesmo), julga de acordo com suas próprias leis aí então temos o caminho para o totalitarismo. Apesar da crença tradicional de que a democracia e suas instituições freiam o totalitarismo estatal, é perfeitamente possível um totalitarismo democrático. Uma vez que a base da democracia atual é a demagogia o povo acredita estar no poder. Porém, o poder ainda é exercido por uma pequena elite que tem o poder de manipular o povo em favor de seus próprios poderes, basta fazer o povo assumir que os interesses das elites governantes são os seus. Como salienta Hoppe (2014), o ideal é que não houvesse um governo coercitivo, contudo, quando na Idade Média o direito consuetudinário era o meio pelo qual o Estado-juiz mediava as contendas a predação estatal era muito mais contida, ela segue aumentando na medida em que entramos na época das monarquias absolutistas e, após a Segunda Guerra Mundial quando a Europa e quase todo ocidente adotam governos democráticos ela explode, seja por meio de tributação, inflação decorrente do abandono do padrão ouro e expansão monetária ou do aumento da dívida pública.Conclui-se então que a lei nasce, originalmente, da sociedade e isso se observa na Antiguidade e na Alta Idade Média. Contudo o Estado, que nasce da dominação e parasitagem em relação à propriedade privada, cria um processo de centralização que desemboca num Estado-legislador cuja tendência é a perversão da lei. Na democracia atual, que de acordo com a obra de Aristóteles é demagógica, a centralização política e a perversão da lei se intensificam na medida em que ocorre uma confusão entre governo e sociedade, criando uma trajetória de agigantamento estatal perigosa e fiscalmente irresponsável. Nas palavras de Frédéric Bastiat: “Todos querem viver às custas do Estado e se esquecem que o Estado vive às custas de todos.”

 

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Política. Tradução do grego, introdução e notas do prof. Mario da Gama Kury – 3 ed. – Brasília: UNB, 1997.

BASTIAT, Frédéric. A Lei. Tradução de Pedro Sette-Câmara. – São Paulo: LVM Editora, 2019.

HOPPE, Hans-Hermann. Democracia: o deus que falhou. Tradução de Marcelo Werlang de Assis. – São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises, 2014.

HOPPE, Hans-Hermann. Uma breve história do homem: progresso e declínio. Traduzido por Paulo Polzonoff. – São Paulo: LVM Editora, 2018.

NETO, José Alves de; TASINAFO, Célio Ricardo. História geral e do Brasil. – São Paulo: HABRA, 2006.

ROTHBARD, Murray N. Anatomia do Estado. Tradução de Matheus Pacini. – Campinas, sp: Vide Editorial, 2019.

Data da conclusão/última revisão: 18/03/2020

 

Como citar o texto:

FERNANDES, Atos Henrique..O Estado juiz e legislador: uma análise histórica. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 991. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/teoria-geral-do-direito/10407/o-estado-juiz-legislador-analise-historica. Acesso em 13 ago. 2020.

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