INTRODUÇÃO
A Defensoria Pública, enquanto instituição essencial à atividade jurisdicional do Estado, surge com a Constituição Federal de 1988, com o objetivo de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados e insuficientes de recurso.
A Constituição Cidadã atribui à Defensoria Pública a missão constitucional de tutelar os interesses dos necessitados, representando a opção do legislador pelo modelo público de prestação de assistência jurídica (salaried staff model), missão redefinida ao longo do crescimento e estruturação da instituição, ampliando, consequentemente, sua atuação.
No contexto do direito processual existe um debate relativo aos limites de atuação da Defensoria Pública, especialmente acerca da legitimidade da instituição para atuar enquanto terceiro interveniente em processos, independente da constituição de representante postulatório legal da parte, sempre que houver discussão de interesse de vulnerável, em razão de seu interesse institucional.
Dessa forma, pretende-se perquirir a funcionalidade do instituto denominado pela doutrina como custus vulnerabilis, enquanto missão institucional e enquanto intervenção processual autônoma, abordando sua definição, sua possibilidade, seu alcance e regramento legal no ordenamento jurídico brasileiro.
A pesquisa em comento é de suma importância, principalmente ante às latentes desigualdades sociais existentes no Brasil, assumindo a Defensoria Pública a missão constitucional de representação dos grupos que necessitam de proteção especial por parte do estado, buscando tornar a sociedade mais justa, com o efetivo acesso a direitos por meio da prestação de assistência jurídica.
Como resultado, o presente estudo demonstra a possibilidade do custus vulnerabilis com base na Constituição Federal, no Código de Processo Civil, em legislações institucionais da Defensoria Pública e sua origem histórica, demonstrando, ainda, sua viabilidade nos tribunais superiores pátrios.
Sendo assim, pode-se afirmar que os obstáculos enfrentados pelos jurisdicionados inerentes ao acesso à justiça não estão apenas relacionados ao aspecto econômico, mas também a seu aspecto social, técnico, informativo e jurídico. Sendo assim, é inegável que a atuação da Defensoria Pública como custus vulnerabilis é considerada como a “guardiã dos vulneráveis”, sendo esta incluída dentre suas atribuições institucionais. Não obstante, esse assunto é debatido precipuamente no âmbito civil e questiona-se, contemporaneamente, a sua aplicabilidade do âmbito penal.
2. HISTÓRICO DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA NO BRASIL
A assistência jurídica gratuita prestada pelo estado nem sempre foi uma realidade no âmbito do sistema de justiça brasileiro, pois a preocupação em assegurar de modo amplo o direito à assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados só adveio com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a institucionalização da Defensoria Pública.
Entretanto, podemos dizer didaticamente que “precisaríamos regressar pelo menos até as Ordenações Filipinas de 1595, se quiséssemos delimitar o estudo ao histórico de assistência jurídica gratuita no Brasil” (PAIVA, 2016, p. 3), período em que os advogados atuavam em favor dos miseráveis e das vítimas de extrema pobreza, num viés caritativo. Nesse sentido,
[...] embora não se tratasse da questão da gratuidade da justiça de maneira sistemática, as ordenações previam o direito à isenção de custas para impetração de aggravo (Livro III, Título LXXXIV, Parágrafo 10) e livravam os presos pobres do pagamento dos feitos em que fossem condenados (Livro I, Título XXIV, Parágrafo 43). (ESTEVES e SILVA, 2018, p. 50).
Posteriormente, durante o Brasil Império, há manifestação do poder público no sentido de custear a defesa de réus miseráveis no processo criminal, o que
[...] tratava-se de uma iniciativa da Câmara Municipal da Corte, que criou o cargo de Advogado dos Pobres, remunerado pelos cofres públicos, com atribuição oficial de defender os réus miseráveis nos processos criminais. Esse teria sido o primeiro cargo de defensor público da história do Brasil, cargo extinto em 1884. (ALVES, 2005, p. 277).
Conforme Oliveira (2007), mesmo diante da carência da população ante a ausência do estado na prestação de assistência jurídica, somente com a Proclamação da República são editadas normas sobre assistência jurídica. Entretanto, com a promulgação da primeira Constituição Republicana de 1891, a assistência jurídica não foi regulada no plano constitucional, porém, em seu Art. 72, faz referência ao direito de plena defesa:
§ 16 - Aos acusados se assegurará na lei a mais plena defesa, com todos os recursos e meios essenciais a ela, desde a nota de culpa, entregue em 24 horas ao preso e assinada pela autoridade competente com os nomes do acusador e das testemunhas (BRASIL, 1891).
Mesmo diante da ausência de previsão constitucional, “[...] em 1897, por meio do Decreto 05 de maio, foi instituído o Serviço de Assistência Judiciária do Distrito Federal (que era, à época, o Rio de Janeiro)”. (ROCHA, 2013, p. 65).
O avanço na matéria se deu apenas com a Constituição Federal de 1934, sendo esta “[...] a primeira Constituição brasileira a conferir status constitucional à assistência judiciária, mas ainda sem tratar da Defensoria Pública: tratou do direito, mas esqueceu do instrumento” (ROCHA, 2013, p. 53). O referido diploma legal previa em seu Art. 113, inciso XXXII, que caberia à União e aos Estados conceder assistência judiciária aos necessitados, criando, para este efeito, órgãos especiais, assegurando a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos (BRASIL, 1934).
A Constituição de 1937, sendo uma constituição outorgada, com características não democráticas, conforme aponta a doutrina institucional, “[...] nada dispôs sobre a assiste?ncia judicia?ria, pore?m, mitigando a ause?ncia de previsa?o constitucional, o legislador ordina?rio previu, no Co?digo de Processo Civil de 1939 (arts. 68 e seguintes), disciplina acerca da justic?a gratuita (GOMES, 2019, p. 122).
Superada a ordem jurídica da Constituição Polaca, a Constituição de 1946, em seu Art. 141, § 35, previa que “o Poder Público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos necessitados” (BRASIL, 1946), o que deixou a cargo do legislador infraconstitucional o trabalho de desenvolver a extensão da assistência judiciária, entretanto, “[...] a constituição de 1946 não faz qualquer referência à necessidade de existência de órgãos especialmente criados para este fim” (GONÇALVES FILHO; ROCHA; MAIA, 2020, p. 24).
Regulamentando a disposição constitucional acima mencionada, apenas com “[...] a edição da lei n. 1.060 de 05 de fevereiro de 1950, ocorreu a efetiva implantação do sistema de assistência judicial (assistência judiciária e justiça gratuita)” (LIMA, 2010, p. 19).
De acordo com Gomes (2019), a Constituição de 1967, posteriormente alterada pela redação da Emenda Constitucional n. 69, não trouxe grandes novidades sobre o tema, prevendo apenas de forma vaga a assistência judiciária. O Código de Processo Civil de 1973 foi mais sucinto sobre o tema em relação ao diploma anterior.
Entretanto, a prestação de assistência jurídica de forma ampla e gratuita aos necessitados, incluindo a justiça gratuita e a assistência judiciária, surge com a Constituição Federal de 1988. Com a criação da Defensoria Pública, percebe-se que “[...] a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) trouxe nova, forte e emancipadora luz para os necessitados” (MAIA, 2018, p. 133).
A Constituição Cidadã prevê, de forma inédita, um rol extenso de direitos e garantias fundamentais, entre os quais se encontra a prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (Art. 5º, LXXIV, CF/88).
Conforme disposição do Art. 134 da CF/88, “A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados na forma do art. 5º, LXXIV. BRASIL. “
Conclui-se então que a
Constituição Federal de 1988 consolidou um modelo público de prestação de assistência jurídica (serviço), a qual deverá ser prestada pela Defensoria Pública (instrumento de prestação do serviço), garantindo a assistência jurídica (objeto do serviço) (GOMES, 2019, p.124).
Para tanto, o Estado contrata profissionais por meio de Concurso Público de provas e títulos, os quais são denominados “Defensores Públicos”, que recebem remuneração fixa para prestação de assistência jurídica integral e gratuita, que representa a opção do constituinte pelo modelo de prestação de assistência jurídica pública.
2.1 MODELOS DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA
Podemos identificar quatro principais modelos de assistência jurídica presentes no mundo: (I) modelo pro bono; (II) modelo judicare; (III) salaried staff model e (IV) modelo híbrido.
No modelo pro bono, também chamado de modelo honorífico, advogados atuam sem receber nenhuma contraprestação do poder público, por ideais de foro íntimo, baseados principalmente em fins caritativos, solidaristas e humanitários. Isso
[...] implica a prestação de assistência judiciária gratuita por profissionais liberais (advogados), sem nenhuma espécie de contraprestação por parte do Estado. A atividade e? desenvolvida de modo caritativo, imbuída do aspecto humanitário que encerra (LIMA, 2010, p. 55).
De outra forma, no sistema judicare os advogados recebem remuneração por parte do estado para atuarem em demandas específicas. Este modelo está presente principalmente nos países europeus, “Consiste em um modelo privado, no qual advogados atuam esporadicamente em determinados casos, sendo remunerados pelo estado. Presente a figura do advogado dativo.” (ALVES, 2020, p. 575).
No salaried staff model, também conhecido como modelo público, profissionais são contratados pelo estado, recebem remuneração fixa, independentemente da carga de trabalho, para prestar assistência jurídica aos necessitados, por meio de uma instituição criada para essa finalidade, como é o caso dos defensores públicos. Nesse modelo “O poder Público contrata “advogados públicos” (expressão tecnicamente inadequada) para atuar especificamente e exclusivamente em prol dos hipossuficientes. Nesse ultimo modelo enquadra-se a Defensoria Pública”. (ALVES, 2020, p. 575).
Já o modelo híbrido ou misto “[...] trata-se da reunião dos modelos pro bono, judicare e salaried staff, em diversas combinações possíveis, caracterizando autêntica relação de complementaridade”. (ESTEVES e SILVA, 2018, p. 10).
Podemos mencionar o modelo híbrido, por exemplo, quando existe uma instituição ou órgão mantido pelo estado para a prestação da assistência jurídica (modelo público), mas que, ao mesmo tempo, possibilita a figura do advogado dativo para atuar em causas específicas (modelo judicare), ante a impossibilidade de atuação da instituição.
A Constituição Federal de 1988 optou pelo modelo público de assistência jurídica aos necessitados e elegeu a Defensoria Pública como o órgão estatal responsável para o exercício dessa competência. O modelo público é o que melhor representa os interesses de uma sociedade marcada por tantas desigualdades e injustiças, pois “[...] a atuac?a?o da Defensoria Pu?blica e? muito mais ampla, possibilitando uma atuac?a?o estrate?gica, multidisciplinar, democra?tica, tambe?m preventiva, individual e coletiva, judicial e extrajudicial”. (GOMES, 2019, 136)
Além disso, o modelo público garante maior paridade de armas entre a qualificação da defesa e da acusação pública, que é provida no cargo mediante concurso público. Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 é clara ao adotar em seu Art. 134 o modelo público, tanto assim é que “[...] a nomeação de advogado para atuar em prol de pessoa necessitada só se legitimaria na impossibilidade de a Defensoria Pública o fazer” (FENSTERSEIFER, 2017, p. 120), sendo a Defensoria um instrumento de elo entre a sociedade e o estado.
3. DA DIFERENÇA EXISTENTE ENTRE JUSTIÇA GRATUITA, ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA E ASSISTÊNCIA JURÍDICA
Recorrentemente, os termos assistência judiciária, assistência jurídica e justiça gratuita são usados indistintamente. Contudo, os institutos não se confundem, sendo necessário fazer uma breve diferenciação.
Primeiramente, de acordo com a doutrina de Guilherme Freire, “[...] a justiça gratuita está relacionada ao pagamento de custas, taxas, emolumentos e despesas processuais.” (BARROS, 2010, p. 27), ou seja, se limita às despesas decorrentes do processo, sendo a matéria regulada pelo Código de Processo Civil, em seu Art. 98 e seguinte.
Por outro lado, a assistência judiciária
[...] engloba o patrocínio da causa por advogado e pode ser prestada por um órgão estatal ou por entidades não estatais, como escritórios modelos das faculdades de Direito ou de ONGs. Esse conceito limita-se à defesa dos direitos dos necessitados na esfera judicial. (BARROS, 2010, p. 27).
Assim, a assistência judiciária gratuita está relacionada ao patrocínio da causa por um advogado custeado pelo estado, se limitando, porém, à esfera judicial, atuando o advogado naquela causa específica.
De modo diverso, a assistência jurídica possui um conceito mais abrangente, que inclui a atuação judicial e extrajudicial, a qual é prestada pela Defensoria Pública, conforme foi regulado pela Constituição Federal, em seu art. 5º, LXXIV, e Art. 134. De acordo com a doutrina,
[...] diferentemente da assistência judiciária prevista na constituição anterior, a assistência jurídica tem conceito mais abrangente e abarca a consultoria e atividade extrajudicial em geral. Agora, portando, o Estado promoverá a assistência aos necessitados no que pertine a aspectos legais, prestando informações sobre comportamentos a serem seguidos diante de problemas jurídicos, e, ainda, propondo ações e defendendo o necessitado nas ações em face dele proposto (NERY JR, 2003, p. 77).
Desse modo, podemos concluir que é necessária a diferenciação dos institutos. Enquanto a justiça gratuita é regulada no CPC, Art. 98 e seguintes referentes às despesas processuais, a assistência judiciária está regulada na Lei 1.060/50 e a assistência jurídica, em sentido mais abrangente, está regida pela própria Constituição, em seu Art. 5º, LXXIV, e Art. 134.
4. DA TITULARIDADE DO DIREITO À ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA
A Constituição Federal de 1988, ao eleger o destinatário da assistência jurídica gratuita prestada pelo Estado, faz referência ao termo “necessitado” e àquele que ostenta de “insuficiência de recursos”, Art. 5º, LXXIV, e Art. 134 da CF/88.
Nesse ponto, cumpre esclarecer que o termo necessitado e a expressão insuficiência de recursos “[...] são palavras semanticamente abertas, e por isso, permitem um amplo debate hermenêutico a partir de contextos sociais e processuais” (MAIA, p. 130).
Hodiernamente, o conceito de necessitado, para fins de prestação de assistência jurídica, estritamente atrelado ao público atendido pela Defensoria Pública, está relacionado principalmente à carência econômica, mas podem ser identificadas outras hipóteses geradoras da necessidade, pois
[...] a necessidade não advém exclusivamente de questões econômicas, mas de outras questões de vulnerabilização do ser humano a que o Estado não pode se furtar de enxergar e proteger: se o Estado, através da Defensoria, não cuidar dessas situações, elas continuarão, na sua invisibilidade, produzindo visíveis injustiças, pois a ausência de recursos lhes impede de contratar advogado ou muitas vezes de simplesmente conhecer seus direitos. (ROCHA, 2013, p. 83).
Desse modo, percebe-se que o conceito de necessitado está associado à existência de alguma vulnerabilidade, não limitado ao aspecto econômico-financeiro, estando o indivíduo, por razões fáticas ou circunstanciais, sofrendo especiais dificuldades em ter acesso aos seus direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico.
O próprio constituinte se preocupou em eleger grupos para receber a tutela estatal diferenciada, os quais são denominados necessitados organizacionais, que conceitualmente são:
[...] as pessoas que apresentam uma particular vulnerabilidade em face das relações sociojurídicas existentes na sociedade contemporânea [...]. Todos aqueles, enfim, que no intenso quadro de complexas interações sociais hoje reinantes, são isoladamente frágeis perante adversários poderosos do ponto de vista econômico, social cultural ou organizativo, merecendo, por isso mesmo, maior atenção com relação a seu acesso à ordem jurídica justa e à participação por intermédio do processo. (GRINOVER, 1996, p.116-117).
A Constituição Federal de 1988 elegeu, em seu texto, grupos para receber a tutela estatal especial e,
[...] entre os grupos eleitos constitucionalmente enquanto necessitados de especial proteção estatal, citam-se exemplificadamente os seguintes agrupamentos: 1) Dos consumidores (art. 5º, XXXII, e art. 170, V); 2) das crianças e adolescentes (art. 227); 3) dos idosos (art. 230); 4) os indígenas (art. 231 e ss) 5) dos Quilombolas (art. 68 e §1º do art. 215; 6) das mulheres (art. 7º, XX), 7) da pessoa com deficiência (art. 227 § 2º, arts. 244 e outros) (MAIA, 2017, p. 149).
No decurso das alterações trazidas pela LC n. 132/2009, a LC n. 80/94 reformou e ampliou o conceito de necessitado, incluindo os necessitados organizacionais, determinando que cabe à Defensoria Pública
Art. 4º, XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado (BRASIL, 2009).
Neste sentido, Esteves e Silva (2018) apontam algumas espécies de vulnerabilidade existentes no mundo contemporâneo, quais sejam: vulnerabilidade econômica; vulnerabilidade organizacional; vulnerabilidade etária, física e sensorial; vulnerabilidade indígena; vulnerabilidade por vitimização; vulnerabilidade por migração ou deslocamento interno; vulnerabilidade por vivência em situação de rua; vulnerabilidade por orientação sexual e identidade de gênero; vulnerabilidade das minorias; vulnerabilidade processual; vulnerabilidade episódica ou transitória; e a vulnerabilidade por privação de liberdade.
Na mesma perspectiva, de acordo com as Regras de Brasília sobre o acesso à justiça, item 1.3, consideram-se pessoas em condição de vulnerabilidade aquelas
[...] que, por razão da sua idade, gênero, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o Sistema de Justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico (ANADEP, 2008, grifo nosso).
Registra-se, ainda, o entendimento do Ministro Antônio Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça, no que diz respeito ao conceito de necessitado, em julgamento que versava sobre a legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de ação civil pública:
A expressão ‘necessitados’ deve ser interpretada de maneira mais ampla, não se restringindo, exclusivamente, às pessoas economicamente hipossuficientes, que não possuem recursos para litigar em juízo sem prejuízo do sustento pessoal e familiar, mas sim a todos os socialmente vulneráveis” (grifos do autor) (STJ, AgREsp 50.212/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 10.10.2011.).
Sobre a amplitude do conceito de necessitado, a doutrina adverte que
Ao defender tal entendimento, não se está, como muitos poderiam pensar, por ampliar de tal maneira o conceito de necessidade ou necessitado a ponto de acobertar “toda a sociedade” nele. Não é o caso. Mas tão somente se está alinhando o conceito ao novo cenário jurídico e normativo (constitucional e infraconstitucional) edificado desde a CF/88, de modo a superar o paradigma liberal individualista e o conceito restritivo (vale destacar, de assistência apenas ‘judiciária’) estabelecido à luz da Lei de Assistência Judiciária (Lei 1.060/50) (FENSTERSEIFER, 2017, p. 40).
Por outro lado, a insuficiência de recursos deve ser entendida com o significado de instrumentos ou meios disponíveis para alcançar determinado fim, pois “quando a Constituição pretende se referir à questão econômica premente utiliza as palavras carentes, pobreza e pobre (art. 3º, III, art. 23, X; art. 203, II; art. 245 e ADCT 79,80,81 e 84)” (GONÇALVES FILHO; ROCHA; MAIA, 2020, p. 59).
Assim, o titular da assistência jurídica prestada pela Defensoria Pública é aquele que se encontra em especiais dificuldades em exercitar os seus direitos com plenitude, devendo o conceito de necessitado receber elasticidade em sua interpretação.
Por fim, deve ser analisada, ainda, a carência de recursos, sob a perceptiva de instrumentos ou meios necessários para garantir o efetivo acesso à justiça e à ordem jurídica justa, o que deverá ser analisado a partir da situação fática, devendo ser conferida interpretação que favoreça a proteção dos direitos fundamentais e dos direitos humanos.
5 A DEFENSORIA PÚBLICA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
A Defensoria Pública, como já mencionado alhures, é fruto da Constituição Federal de 1988, criada com o objetivo de concretizar o direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados. Entretanto, a assistência judiciária já havia sido consagrada pela Constituição Federal de 1934, que inovou, ao dispor em seu Art. 113, n. 32, que “A União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais assegurando, a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos”. (BRASIL, 1934).
Por esse motivo, a Constituição Federal de 1934 representa grande avanço na matéria, pois
[...] é particularmente relevante a referência no dispositivo à criação de “órgãos especiais” para a prestação da assistência judiciária, o que, vale frisar, até como certo recuo posterior do legislador constitucional brasileiro na matéria, não se repetiu nos textos constitucionais subsequentes até a CF/88, quando, então, houve a efetiva designação da Defensoria Pública para prestar tal serviço público essencial (FENSTERSEIFER, 2017, p. 61).
Após a consolidação da Defensoria Pública na Constituição Federal de 1988, foram editadas importantes Emendas Constitucionais atreladas ao fortalecimento e ao desenvolvimento da Instituição.
Primeiramente, com o advento da Emenda Constitucional 45/2004, restou assegurado às Defensorias Públicas Estaduais autonomia funcional, administrativa e a iniciativa de proposta orçamentária, obedecidos os limites de diretrizes orçamentárias (Art. 134, § 2º, da CF/1988). Ocorre que,
Nesse primeiro momento, portanto, a previsão expressa da autonomia restou realizada unicamente em relação às Defensorias Públicas dos Estados, sendo excluídas do âmbito explícito de incidência da norma as Defensorias Públicas da União e do Distrito Federal. (ESTEVES e SILVA, 2018, p. 71).
Em seguida, a Emenda Constitucional 69/2012 retirou da União a competência para organizar e manter a Defensoria Pública do Distrito Federal, passando tal atribuição ao próprio Distrito Federal. Além disso, estendeu à Defensoria Pública do Distrito Federal os princípios e regras conferidas à Defensoria Pública dos Estados, in verbis:
Art. 2º da EC nº 69/2012: Sem prejuízo dos preceitos estabelecidos na Lei Orgânica do Distrito Federal, aplicam-se à Defensoria Pública do Distrito Federal os mesmos princípios e regras que, nos termos da Constituição Federal, regem as Defensorias Públicas dos Estados (BRASIL, 2012).
A Emenda Constitucional 74/2013 acresceu ao Art. 134 da CF o §3º, concedendo a autônima institucional já conferida às Defensorias Estaduais à Defensoria Pública da União e à Defensoria Pública do Distrito Federal, com a seguinte redação: “§ 3º Aplica-se o disposto no § 2º às Defensorias Públicas da União e do Distrito Federal” (BRASIL, 2013).
Com o advento da Emenda Constitucional 80/2014, que representa grande avanço para a instituição, principalmente por ampliar o conceito e a missão da Defensoria Pública e fortalecer seu processo de interiorização, o Art. 134 da CF passou a ter a seguinte redação:
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal. (BRASIL, 2014).
A referida Emenda Constitucional “[...] alterou, na Constituição Federal, o capítulo IV (Das funções Essenciais à Justiça, do Título IV (Da Organização dos Poderes), prevendo uma Seção exclusiva à Defensoria Pública (Seção IV)”. (GOMES, 2019, p. 125).
Além disso, houve a constitucionalização dos princípios institucionais da Defensoria, já previstos no Art. 3º da LC 80/94, e a autorização para aplicação de parte do regramento jurídico do poder judiciário no que couber à Defensoria Pública, principalmente quanto à iniciativa de lei, in verbis: “§ 4º São princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional, aplicando-se também, no que couber, o disposto no art. 93 e no inciso II do art. 96 desta Constituição Federal”. (BRASIL, 2014).
Por fim, a Emenda Constitucional 80/2014 acrescentou ao Art. 98 do ADCT disposição, garantindo a existência de defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais no prazo de 08 anos, com verdadeiro processo de universalização de acesso à justiça e interiorização da Defensoria Pública, como protetora dos direitos humanos.
5.1 NA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL
As normas e diretrizes estabelecidas pela Constituição Federal de 1988 para a Defensoria Pública foram regulamentadas por meio da Lei Complementar n. 80, de 12 de janeiro de 1994, intitulada Lei Orgânica da Defensoria Pública, que dispõe sobre a organização e estrutura da Defensoria Pública da União, da Defensoria do Distrito Federal e territórios e estabelece normais gerais para organização das Defensorias Públicas dos Estados (BRASIL, 1994). Assim,
[...] ao organizar a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios, a Lei Complementar n. 80/1994 mostra-se exaustiva, cuidando detalhadamente de sua estrutura, carreira, atribuições, direitos e responsabilidades (titulo II- Da organização da Defensoria Pública da União e titulo III- Da organização da Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios. Por outro lado, ao dispor sobre as Defensorias Públicas Estaduais, a Lei Complementar n. 80/1994 traça apenas normas gerais sobre a matéria, deixando a cargo dos estados-membros a devida especificação dos pormenores (Título IV Normas Gerais sobre a organização da Defensoria Pública’) (ESTEVES e SILVA, 2018, p. 138).
Mais tarde, a Lei Complementar n. 132, de 07 de outubro de 2009, alterou profundamente a LC 80/94, de modo a ampliar e modernizar o papel de atuação do órgão, inclusive na tutela coletiva e na solução extrajudicial dos conflitos. Marcos Lopes Gomes, citando José Augusto Garcia de Souza, resume as inovações trazidas pela Lei Complementar n. 132/2009:
a) a nova definição para a Defensoria Pública, agora reconhecidamente como ‘instrumento do regime democrático’, ligada visceralmente à proteção dos Direitos Humanos; b) positivação dos ‘objetivos da Defensoria Pública’, recomendando pela primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais; c) ampliação das funções institucionais, com ênfase na atuação extrajudicial e na tutela coletiva; d) extensão das chamas funções institucionais ‘atípicas’, comprometendo-se a Defensoria Pública com ‘grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do estado’ e com pessoas vitimadas por formas graves de opressão ou violência, independentemente da situação econômica indicial; e) a enumeração de direitos dos assistidos pela Defensoria Pública, com a previsão de audiências públicas para o planejamento das ações institucionais e, no tocante especificamente às Defensoras estaduais, o estabelecimento de ouvidoria externa, outra medida de vanguarda entre as corporações jurídicas brasileiras; f) a reformulação de inúmeras normas relativas à Defensoria Pública da União (GOMES, 2019, p. 125).
Por outro lado, o Código Processual Civil de 2015 destinou uma seção específica para tratar do benefício da gratuidade da justiça (seção IV), “revogando nos termos do art.1072, III do CC, os arts. 2º, 3º, 4º, 6º, 7º, 11º, 12º e 17º da Lei 1.060, de 5 de fevereiro de 1950” (Apud GOMES, 2019, p. 126), justamente porque a matéria passou a ser regulada pelo CPC. Além disso, o CPC criou um título específico para tratar da Defensoria Pública (título VII), entre as demais inovações.
Importante mencionar, ainda, que a Lei 11.448/07 alterou a Lei 7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública) e conferiu à Defensoria Pública legitimidade ativa para propor ação civil pública (Art. 5º, II), consagrando sua legitimidade na tutela coletiva.
A promulgação da referida lei ensejou o ajuizamento da ADI 3.943, pela Associação dos membros do Ministério Público, “[...] movida pela ideia de que a Defensoria Pública estaria a tomar espaço reservado ao Ministério Público” (BARLLETA e MAIA, 2016, p. 204). Na oportunidade, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a Defensoria Pública pode propor Ação Civil Pública na defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, atuando da segunda onda renovatória de acesso à justiça.
Por fim, conferida a legitimidade da Defensoria Pública para atuação coletiva, a Lei 13.300/2016 conferiu legitimidade ativa à Defensoria Pública para impetrar mandado de injunção coletivo, “[...] a fim de garantir à máxima efetividade do acesso à justiça coletiva” (BARLLETA e MAIA, 2016, p. 205).
6. CUSTUS VULNERABILIS NA DOUTRINA
A expressão custus vulnerabilis foi desenvolvida inicialmente pelo Defensor Público Maurílio Casas Maia (DPE-AM), com base nos estudos da Teoria Garantista, de Luigi Ferrajoli, e tem por finalidade didática e pedagógica uma releitura do perfil institucional da Defensoria Pública com o objetivo de
[...] explicitar distinções e proximidades da atuação institucional da Defensoria Pública em relação ao Ministério Público, a fim de torná-la inconfundível com a missão-função de custus legis, e também, sinalizar a paridade de armas institucionais na efetivação das respectivas missões constitucionais. (SILVA, 2020, p. 127).
Conceitualmente, a expressão custus vulnerabilidis vem sendo empregada em dois sentidos: um enquanto missão, outro enquanto intervenção.
É importante ter em mente que a expressão “custus vulnerabilis” possui dois significados. Primeiramente, é utilizada em um sentido genérico (custus vulnerabilis em sentido genérico), para representar a missão institucional, ou seja, a incumbência que foi atribuída constitucionalmente à Defensoria Pública pela Constituição Federal para tutelar os direitos das pessoas vulneráveis, designadas pelo texto constitucional como necessitados. Em uma segunda acepção, o termo custus vulnerabilis é utilizada para designar a intervenção da Defensoria Pública enquanto terceiro interessado no processo (GONÇALVES FILHO; ROCHA; MAIA, 2020, p. 69-70).
Portanto, enquanto órgão autônomo do sistema de justiça, a Defensoria Pública atua como guardiã dos vulneráveis em razão de sua incumbência constitucional de expressão e instrumento do regime democrático, responsável pela promoção dos direitos humanos e defesa dos necessitados, conforme disposto no Art. 134 e Art. 5º, LXXIV, da CF/1988.
Conforme Gonçalves Filho, Rocha e Maia (2020), na condição de interventora custus vulnerabilis, a Defensoria Pública atua em nome próprio, ou seja, como terceiro interveniente, em processos individuais ou coletivos em que se discutam interesses de pessoas em situação de vulnerabilidade, mesmo que exista advogado constituído, de modo a resguardar e complementar a defesa dos interesses ali discutidos, reforçando a importância da participação da Defensoria na formação de precedentes em favor dos grupos hipossuficientes.
Nesse sentido, o Defensor Público Jorge Bheron destaca que a intervenção da Defensoria na condição de custus vulnerabilis não prejudica a atuação do advogado devidamente constituído, pois a intervenção defensorial
[...] tem como escopo aportar, em prol do vulnerável, argumentos, informações e documentos aptos a instruir sobejamente o processo, de forma a possibilitar ao julgador uma cognição ampla e profunda da problemática posta, enfrentando com maior grau de certeza e confiança o mérito do pedido, sem com isso dispensar ou substituir o importante papel desempenhado pelo causídico particular representante judicial do preso, uma vez que o advogado privado presta serviço público e exerce função social (artigo 2º, parágrafo 1º, Estatuto da OAB) indispensável à administração da justiça (artigo 133, CRFB), cuja atuação livre está protegida (artigo 7º, I, Estatuto da OAB) (ROCHA, 2017).
O fundamento legal é encontrado na LC 80/1994, em seu Art. 4º, incisos VII e XI, que dispõe como função institucional da Defensoria o exercício da defesa dos interesses individuais e coletivos dos grupos sociais vulneráveis, podendo, para tanto, utilizar de todas as medidas capazes de propiciar a adequada e efetiva defesa de tais interesses, “[...] mais aproximado de uma cláusula geral interventiva em prol dos vulneráveis” (SILVA, 2020, p. 132).
Assim, a partir do fundamento cima apresentado, Gonçalves, Rocha e Maia (2020) apontam a teoria dos poderes implícitos, pois se a constituição atribuiu uma atividade-fim (proteção dos necessitados), concedeu também todos os meios e instrumentos necessários para o desempenho dessa atribuição, sendo a intervenção viabilizada pela “[...] ausência de delimitação na forma de atuação processual da Defensoria Pública na Constituição Federal” (SILVA, 2020, p. 128).
Além disso, a LC 80/94, com as alterações trazidas pela LC 132/2009, reformou e ampliou o conceito de necessitado, conferindo à Defensoria o status de emancipadora dos vulneráveis organizacionais, determinando que cabe à Defensoria Pública:
Art. 4º, XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado. (BRASIL, 2009).
Ainda sob o prisma legal, o novo CPC trouxe previsão expressa do tema em seu Art. 554, § 1º, ao dispor da necessária intimação da Defensoria Pública nas ações possessórias em que figure no polo passivo grande número de pessoas, e que estas pessoas estejam em situação de vulnerabilidade econômica, em um viés de intervenção baseado na hipossuficiência financeira.
Por outro lado, “[...] a utilização do método de interpretação histórica auxilia e reforça a possibilidade de atuação interventiva da Defensoria Pública”, uma vez que o cargo de Defensor Público surgiu no âmbito da Procuradoria de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por meio da Lei Estadual 2.188, de 21 de julho de 1954, dividindo palco institucional com os antigos promotores de justiça (SILVA, 2020, p. 128).
Nesse sentido, Esteves e Silva lecionam que,
Como se observa, portanto, assim como no Distrito Federal (e posteriormente no Estado da Guanabara), também no antigo Estado do Rio de Janeiro a Defensoria Pública se manteve originalmente inserida dentro da carreira do Ministério Público, sendo a assistência aos necessitados prestada por integrantes do parquet(2018, p. 61).
É justamente por esse motivo, dada a origem igualitária, que “[...] remete à necessidade da paridade de armas entre a procuratura de justiça por acusação (Ministério Público) e por defesa pública (Defensoria Pública), mormente quando se pensa em formação de precedentes”. (SILVA, 2020, p. 129).
Dados os fundamentos apresentados é que se pensa em um novo modelo de estruturação da Defensoria Pública enquanto “órgão de suporte defensivo” (SILVA, 2020, p. 21), mesmo nos casos em que a pessoa vulnerável já possua advogado constituído de sua confiança, em verdadeiro ato cooperativo de defesa pública com funções de apoio para equilíbrio das relações processuais.
Assim, podemos concluir que a Defensoria Pública é o órgão do sistema de justiça responsável pela tutela dos grupos que necessitem de proteção especial por parte do estado, cuja origem é oriunda de órgão de procuratura de justiça, o que deve ser levado em consideração para ponderar sobre as possíveis posições processuais que pode assumir, justamente em razão da sua autonomia e interesse institucional.
6.1 NA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
A intervenção defensorial-custus vulnerabilis chegou aos tribunais superiores, tais como o Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ), mostrando sua viabilidade e possibilidade.
O Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1729246/AM, admitiu a intervenção da Defensoria Pública em nome próprio em função pró-vulnerável, embora de forma inominada, com fundamento no Art. 4º, XI, da LC 80/1994, baseado na missão institucional do órgão e por analogia à intervenção disposta no Art. 554, § 1º, do CPC, conforme demonstra a ementa abaixo:
PROCESSO CIVIL. INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DA DEFENSORIA PÚBLICA. NECESSIDADE. REVISÃO. MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. INCIDENCIA DA SÚMULA 7/STJ. 1. Conforme consignado no decisum agravado, o Tribunal regional concluiu pela necessidade de intimação do Ministério Público e da Defensoria Pública para intervenção no feito, em razão de serem os recorridos pessoas hipossuficientes e muitos deles idosos em situação de risco, sendo certo que a revisão desse entendimento implica revisão do conjunto probatório dos autos, o que encontra óbice na súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça. (...)
3. Em que pese a inaplicabilidade do dispositivo ao feito, trazemos à reflexão importante questão envolvendo a normativa prevista no art. 554 § 1º do CPC/2015, em que se exige a atuação da Defensoria Pública em casos como o presente: “§ 1º No caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública”. Conclusão inafastável é que esse dispositivo legal busca concretizar a dignidade da pessoa humana, democratizando o processo, ao permitir a intervenção defensorial. O artigo almeja garantir e efetivar os princípios do contraditório e da ampla defesa de forma efetiva.
4. Importante destacar que a possibilidade de defesa dos vulneráveis, utilizando-se de meios judiciais e extrajudiciais, está prevista no art. 4º, XI, da LC 80/1994: “Art. 4º, XI- exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado”. (STJ, AgInt no REsp 1729246/AM, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, T2, j. 4/9/2018, DJe 20/11/2018).
Já no ano de 2019, pela primeira vez, o Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.712.163/SP, em decisão histórica para a doutrina institucional, admitiu de forma expressa a intervenção da Defensoria Pública da União como custus vulnerabilis, julgado conforme transcrição da ementa abaixo:
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC.RITO DOS RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS. PLANO DE SAÚDE.CONTROVÉRSIA ACERCA DA OBRIGATORIDADE DE FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO NÃO REGISTRADO PELA ANVISA. (...)
2. Na espécie, após análise acurada dos autos, verificou-se que o acórdão embargado deixou de analisar a possibilidade de admissão da Defensoria Pública da União como custus vulnerabilis.
3. Em virtude de esta Corte buscar a essência da discussão, tendo em conta que a tese proposta nesse recurso especial repetitivo irá, possivelmente, afetar outros recorrentes que não participam diretamente da discussão da questão de direito, bem como em razão da vulnerabilidade do grupo de consumidores potencialmente lesado e da necessidade da defesa do direito fundamental à saúde, a DPU está legitimada para atuar como quer no feito.
(...) 7. Embargos de declaração acolhidos, em parte, apenas para admitir a DPE como custus vulnerabilis (Grifo nosso).
No ano de 2020, em decisão inédita, o Superior Tribunal de Justiça, no Habeas Corpus 568.693/ES 2020/0074523-0, admitiu a Defensoria Pública da União enquanto custus vulnerabilis no processo penal, fundamentando que os efeitos da decisão repercutem na esfera de pessoas ou grupos de necessitados.
No caso em comento, tratava-se de um Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública do Espírito Santo, requerendo a soltura, independente do pagamento de fiança, em favor daqueles a quem foi concedida liberdade provisória condicionada ao pagamento de fiança, em razão da situação de emergência ocasionado pelo coronavírus, uma vez que a hipossuficiência financeira da parte impedia o seu pagamento.
A Defensoria Pública da União solicitou sua intervenção enquanto custus vulnerabilis, que foi deferida, para requer que os efeitos do referido HC fosse aplicado em todo território nacional, confirmando a importância da instituição na formação de precedentes que atinge um número quase infindável de pessoas.
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus Coletivo 143.641, foi admitida a intervenção da Defensoria Pública como guardiã dos vulneráveis, emborade maneira implícita. No caso em questão, foi proposto Habeas Corpus Coletivo pelo Coletivo de Advogados de Direitos Humanos (CADHu), requerendo a substituição da prisão preventiva de todas as mulheres gestantes, puérperas ou mãe de crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade.
A Defensoria Pública do Estado do Ceará e a Defensoria Pública do Paraná requisitaram sua intervenção como custus vulnerabilis e foram admitidas na condição de assistentes, “[...] o que soa compreensível para a ocasião na qual os estudos sobre custus vulnerabilis ainda eram incipientes” (GONÇALVES FILHO; ROCHA; MAIA, 2020, p. 120).
No caso acima declinado, após a movimentação das outras defensorias estaduais, todos os órgãos defensoriais foram admitidos na condição de amicus curiae, o que demonstra condição peculiar da Defensoria Pública do Estado do Ceará e Defensoria Pública do Estado do Paraná e nos leva a concluir que sua intervenção se deu na condição de custus vulnerabilis, em razão de seu interesse institucional.
Portando, conclui-se que apesar da recente existência doutrinária, o instituto vem sendo discutido e admitido nos tribunais superiores como forma de intervenção pró-vulnerável, principalmente frente à disposição elencada no Art. 554, § 1º, do CPC e disposições da Lei Complementar 80/94, com base no interesse institucional da Defensoria Pública, vocacionada à proteção dos direitos humanos e consolidação do estado democrático de direito.
7. CONCLUSÕES
O presente estudo delineou, de modo geral, a evolução histórica da assistência jurídica no Brasil, culminando na criação da Defensoria Pública pela Constituição Federal de 1988, para a efetivação do direito fundamental à assistência jurídica gratuita prestada pelo estado aos necessitados e insuficientes de recurso.
Houve a apresentação dos conceitos de “necessitado” e da “insuficiência de recursos”, que são considerados os titulares da assistência jurídica gratuita prestada pelo estado e que estão para além do conceito de ordem econômica, justamente porque atualmente os referidos conceitos recebem interpretação ampla, de modo a abarcar as múltiplas vulnerabilidades existentes no mundo contemporâneo.
Foram expostas, ainda, importantes emendas constitucionais, quais sejam: Emendas Constitucionais 45/2004, 69/2012, 74/2014 e 80/2014, que foram responsáveis por promover importantes mudanças estruturais na instituição e alterar profundamente a missão da Defensoria Púbica frente à proteção das minorias e dos grupos vulneráveis como forma de promoção dos direitos humanos.
Foram traçadas, também, propostas para consolidação da intervenção processual da Defensoria enquanto terceiro, na modalidade custus vulnerabilis, em processos em que se discuta interesse de vulnerável ligado essencialmente ao seu interesse institucional e na necessidade de sua adequada representação, mormente quando se pensa na formação de precedentes.
Foram exibidos importantes julgados dos tribunais superiores em que houve o enfrentamento do tema custus vulnerabilis enquanto intervenção processual autônoma, mostrando sua possibilidade e viabilidade na jurisprudência dos tribunais superiores.
Por consequência, pode-se afirmar que essa atuação da Defensoria é fundamental para a proteção das relações sociojurídicas dos vulneráveis, principalmente no âmbito penal, uma vez que ultrapassam as situações de cunho econômico, promovendo, assim, a efetivação da garantia ao acesso à justiça.
Logo, conclui-se pela possibilidade da participação da Defensoria Pública atuando como representante da parte e, enquanto órgão interveniente, em favor do melhor interesse dos grupos vulneráveis, como forma de acesso à ordem jurídica justa, efetivação os direitos humanos e consolidação do estado democrático de direito.
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Data da conclusão/última revisão: 03 de novembro de 2020
Inayara de O. Ribeiro Hoffmann e Sheila Karina da Silva
Acadêmicas de Direito do Centro Universitário São Lucas de Ji-Paraná.
* Artigo apresentado no curso de graduação em Direito do Centro Universitário São Lucas, em 2020, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito. Professora Orientadora: Ms. Renata Miranda de Lima.
Código da publicação: 10785
Como citar o texto:
HOFFMANN, Inayara de O. Ribeiro; SILVA, Sheila Karina da..Custus Vulnerabilis: a Defensoria Pública enquanto guardiã dos vulneráveis. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 1010. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/teoria-geral-do-direito/10785/custus-vulnerabilis-defensoria-publica-enquanto-guardia-vulneraveis. Acesso em 27 dez. 2020.
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