RESUMO:

            O jurista Hans Kelsen se revela como defensor do normativismo, ou seja, preconiza que a validade das normas reside no preenchimento de requisitos formais. Neste artigo é feita uma releitura dos principais pontos abordados pela teoria do direito de Kelsen; assim, analisa-se o processo de aplicação do direito em face à indeterminação que lhe é intrínseca, de modo a chegar a conclusões críticas acerca desta teoria.

Palavras-chave: Hans Kelsen, hermenêutica, nazi-fascismo, validade das normas

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O processo de aplicação do direito; 3. Indeterminação e dinamicidade do direito; 4. Conclusões críticas; 5. Bibliografia

1. Introdução

Hans Kelsen, através de uma perspectiva normativista, procura formular uma teoria pura do direito que funda a ordem jurídica na norma, sem levar em conta como fundamento de validade qualquer aspecto subjetivo, sociológico ou cultural. O direito é entendido exclusivamente a partir da normatividade e da validade, então seu campo nada tem a ver com a ética ou com a moralidade.

Neste sentido, a proposta kelseniana prevê que as normas jurídicas devem ser estudadas pela ciência do direito; as normas morais, por sua vez, são objeto de estudo da ética. Mais especificamente, o raciocínio jurídico não deverá versar sobre o que é certo ou errado, mas sim sobre o que é válido ou inválido.

A diferenciação entre os campos da moralidade e da juridicidade justifica-se pela tentativa de autonomização da ciência jurídica em relação aos outros campos científicos. O direito é positivo na medida em que é o direito posto pela autoridade do legislador, dotado de validade, por obedecer a requisitos formais. Em decorrência disto, o direito não precisa respeitar um mínimo moral para ser definido e aceito como direito, pois é válida a ordem jurídica ainda que contrarie os alicerces morais.

Segundo Kelsen, o que é justiça é relativo. Isto corrobora-se pois não há concordância entre os povos sobre qual o definitivo conceito de justiça. Portanto, discutir sobre a justiça é tarefa da ética. Segundo Pierre Bourdieu, a tese de Kelsen se aproxima com a de Saussure na lingüística, na medida em que:

A tentativa de Kelsen, firmada no postulado da autolimitação da pesquisa tão só no enunciado das normas jurídicas, com exclusão de qualquer dado histórico, psicológico ou social e de qualquer referência às funções sociais que a aplicação prática destas normas pode garantir, é perfeitamente semelhante à de Saussure que fundamenta a sua teoria pura da língua na distinção entre lingüística interna e a lingüística externa, quer dizer, na exclusão de qualquer referência às condições históricas, geográficas ou sociológicas do funcionamento da língua ou das suas transformações (Bourdieu, pp. 211-212)

Neste artigo é feita uma releitura dos principais pontos abordados pela teoria do direito de Kelsen; assim, analisa-se o processo de aplicação do direito em face à indeterminação que lhe é intrínseca, de modo a chegar a conclusões críticas acerca desta teoria, na medida em que o próprio nazi-fascismo poderia ser considerado direito legítimo. Não obstante, pretende-se mostrar que o próprio nazi-fascismo se utilizou desta teoria como fonte de legalidade das suas ações.

Não se pretende aqui realizar um estudo exaustivo da visão sobre a hermenêutica de Kelsen, mas sim analisar elementos desta visão que sejam complexos e, por vezes, controversos na teoria do direito. Compreende-se que o instrumento da releitura promove a atualização e discussão de temas consagrados na teoria kelseniana. Logo, nas palavras de Bourdieu:

A capacidade de reproduzir activamente os melhores produtos dos pensadores do passado pondo a funcionar os instrumentos de produção que eles deixaram é a condição do acesso a um pensamento realmente produtivo (Bourdieu, p. 63)

2. O processo de aplicação do direito

O pressuposto essencial na hermenêutica jurídica em Hans Kelsen é o fato de que esta é “uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior” (Kelsen, p. 463) de modo a fixar um sentido para a norma. Depreende-se, daqui, que há possibilidade de interpretação em qualquer hierarquia em que se encontre a norma; o que difere, na verdade, é o grau de liberdade da atividade hermenêutica. Ademais, a fixação de sentido da norma pode ser realizada, a priori,  por três entes: os órgãos aplicadores; os indivíduos que observam a norma; e a ciência do direito. Em linhas gerais, os primeiros criam uma nova norma a partir de normas anteriores; os segundos interpretam a norma para afastar a sanção que a corresponde; e a terceira interpreta a norma para que possa descrevê-la.

            Mais especificamente, a interpretação dos órgãos aplicadores é denominada por Kelsen de interpretação autêntica, e as demais são interpretações não-autênticas. Aquela cria direitos e normas, ao passo que estas não criam. Ou seja, quando um órgão se pronuncia sobre o conteúdo de uma norma, produz-se um enunciado normativo vinculante. Por outro lado, os demais entes, ao interpretarem, não produzem este enunciado, mesmo que digam qual deva ser o sentido da norma. Um outro critério que distingue estes dois tipos de interpretação, como veremos posteriormente, é o ato de vontade.

Estudemos, pois, como se dá a interpretação nos órgãos aplicadores e, em seguida, analisemos a ciência do direito.

            Kelsen parte do princípio de que o direito regula a sua própria criação; logo, as regras regulam a maneira pela qual outras regras devem ser criadas. O sistema jurídico é uma estrutura piramidal na qual as normas de escalão superior regulam a criação das normas de escalão inferior, portanto a atividade interpretativa envolve aplicar as normas superiores nas inferiores. É essa estrutura escalonada que permite a unidade lógica e a completude da ordem jurídica

            Neste sentido, a norma superior define quem e como criar a norma inferior. Ela determina não só o processo em que a inferior é feita, mas também, eventualmente, o conteúdo desta norma. Conseqüentemente, uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, mas sim porque é criada por uma determinada forma. Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser direito desde que a norma inferior retire seu fundamento de validade da norma superior. Em outras palavras, o dever-ser da norma jurídica retira seu fundamento de validade sempre de um outro dever-ser: uma outra norma que lhe é superior. Kelsen, então, nega que a validade de uma norma derive de sua eficácia ou decorra de sua correção intrínseca, como defendia o jusnaturalismo

Entretanto, o fato do critério de validade advir de uma norma superior não exclui uma certa liberdade para o preenchimento do conteúdo da norma, ou seja, há sempre uma indeterminação na regulação do conteúdo da norma, que pode ser: intencional, em que se concede à autoridade infra um espaço de liberdade para resolver certas questões; ou não-intencional, quando surge da plurivocidade de significados das palavras ou do descompasso entre a real vontade da autoridade competente e a expressão lingüística da norma; ou, ainda, de antinomias.

3. Indeterminação e dinamicidade do direito

De fato, a existência desta margem de indeterminação relativa é inerente à positivação das normas jurídicas. A autoridade superior não pode ou não quer pré-determinar todo o conteúdo das normas inferiores. Portanto, sempre haverá matérias a serem decididas pela autoridade inferior e a necessidade da interpretação resulta do fato do sistema das normas deixar várias possibilidades em aberto. Portanto, a norma superior fornece apenas uma moldura à norma inferior, não regulando totalmente o seu conteúdo. Na medida em que a hierarquia da norma é menor, diminui a indeterminação em favor da estrutura da moldura e, conseqüentemente, diminui-se a esfera de liberdade para preencher esta moldura.

            Assim, observa-se que o que diferencia as normas é apenas o seu grau, já que não há uma diferença qualitativa entre elas. Vejamos, portanto, a reflexão de Kelsen acerca da natureza humana:

            Kelsen, em uma incursão essencialmente antropológica, nos mostra que o homem realiza duas atividades - uma racional e outra volitiva. A atividade racional do juiz contribui em dois sentidos: identifica a moldura adequada ao caso concreto e identifica as possibilidades de preenchimento desta moldura. Por outro lado, a decisão de qual alternativa usar para preencher é um ato de vontade, e não de conhecimento. Segundo Tércio Sampaio, o órgão interpretante define-lhe sentido, delineando limites e fronteiras através de um ato de vontade, ou seja, “trata-se de um ‘eu quero’ e não de um ‘eu sei’” (Ferraz Jr., p. 262).

            Assim, nenhum modelo de interpretação pode fornecer uma possibilidade correta, visto que o juiz está inserido em um campo simbólico de valores que regerão sua vontade. Em suma, o juiz cria direito e esta criação não é por um processo inteiramente racional. Segundo Kelsen:

A questão de saber qual é, dentre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a correta, não é sequer – segundo o próprio pressuposto de que se parte – uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de teoria do Direito, mas um problema de política do Direito (Kelsen, p. 469).

            Partindo destes elementos, podemos estudar a ciência do direito que, segundo Kelsen, tem função meramente descritiva, pois ela não deve criticar o direito vigente e nem propô-lo alterações. Conseqüentemente, a ciência fica inteiramente no campo da razão, realizando duas funções: identificar a moldura adequada e as possibilidades de seu preenchimento. Deste modo, a ciência não decide e nem sugere caminhos para se chegar a uma decisão, servindo apenas como um instrumento dos órgãos aplicadores.

            Como vimos anteriormente, em virtude da necessária indeterminação relativa da norma jurídica, ela é metaforicamente referida como uma moldura que acomoda muitos significados. A interpretação não-autêntica realizada pela ciência do direito apenas fixa os limites da moldura de significados, não podendo ir além dessa atividade. Ou seja, uma vez encontradas todas as múltiplas significações atribuíveis a uma dada norma, e fixada a respectiva moldura, cessa a tarefa da ciência jurídica.

            Cumpre salientar que Kelsen reconhece que os atos de vontade estejam baseados em atos cognitivos. Um juiz, por exemplo, tem que fundamentar a sua sentença com coerência e, para tal, faz uso de seus conhecimentos doutrinários. Entretanto, como ressalta Tércio Sampaio, se houver um desequilíbrio entre ato de vontade e ato de conhecimento, prevalece aquele em detrimento deste.

            Desta forma, Kelsen está desafiando a possibilidade de se elaborar um método interpretativo racional do direito ao pôr em xeque a visão liberal de que o juiz não cria qualquer direito. Tércio Sampaio, ao analisar a teoria de Kelsen, chama atenção para que seja ”possível denunciar, de um ângulo filosófico (zetético), os limites da hermenêutica, mas não é possível fundar uma teoria dogmática da interpretação” (Ferraz Jr, p. 263). Assim, 

Querer, por artifícios ditos metódicos, ir além dessa demonstração, tentar descobrir uma univocidade que não existe, é falsear o resultado e ultrapassar as fronteiras da ciência. [...] Tudo o que existe, portanto, quando a interpretação doutrinária se apresenta como verdadeira porque descobre o sentido ‘unívoco’ do conteúdo normativo é, no máximo, uma proposta política que se esconde sob a capa de uma pretensa cientificidade. (idem)

Em Kelsen, o ideal de segurança jurídica que deriva da univocidade é uma ideologia na qual os cidadãos precisam acreditar. A ciência alimenta a ficção de que a norma jurídica permite apenas uma interpretação correta, e esta ficção serve ao positivismo tradicional no sentido de consolidar o ideal de segurança jurídica. Distingue-se, aqui, possibilidade de correção pois, segundo Kelsen, “todos os métodos de interpretação até ao presente elaborados conduzem sempre a um resultado apenas possível, nunca a um resultado que seja o único correto”. (Kelsen, p. 465)

De fato, Kelsen concebe o direito não somente como um sistema estático de normas de conduta dirigidas aos jurisdicionados – tal qual o positivismo tradicional fazia -, mas também como um sistema dinâmico de regras que compõem a estrutura do ordenamento jurídico, conferindo poderes aos aplicadores para o estabelecimento de normas jurídicas, e fixando formas e procedimentos para tal atividade. A noção de ordenamento jurídico complexo decorre justamente da presença das duas espécies normativas: as normas de comportamento e as de estrutura.

Dessa concepção do direito como sistema dinâmico resulta a impossibilidade lógica de existência de lacunas. Observa-se que o preenchimento da chamada lacuna do Direito é uma função criadora que somente pode ser realizada por um órgão aplicador do mesmo.

4. Conclusões críticas

De início, poderíamos dizer que Kelsen foi reducionista ao não dar a devida importância às dimensões sociais e valorativas, fazendo do fenômeno jurídico uma mera normatividade despida de aspectos humanos. Apesar de sua intenção jamais ser a de negar os aspectos multifacetados de um fenômeno complexo como é o direito, Kelsen promoveu uma teoria parcialmente inaplicável na prática, tanto pelo seu caráter epistemológico quanto pela sua proposta ontológica.

Mais especificamente, ele define como fonte de legitimidade a norma fundamental axiologicamente neutra. Segundo Fábio Ulhoa Coelho, “todo o universo normativo vale e é legítimo em função dela. Mas dela não se pode exigir que seja justa. Mesmo uma norma fundamental injusta valida e legitima o direito que dela decorre” (Coelho, p. 17).

Esta posição de Kelsen favorece a ação de regimes extremistas, como o nazismo. O direito nazista, por injusto que seja, desde que obedeça a uma estrutura formal piramidal, adquire validade e legitimidade. Toda a discriminação e crimes praticados pelo nazismo beberam na fonte da legitimidade da norma, na medida em que passaram por processos formais para a sua constituição. Ao afastar qualquer valor, moral ou ética da norma jurídica, Kelsen propicia um reduto para ação de regimes estruturalmente legais, porém materialmente imorais.

Neste sentido, a formulação de uma teoria pura do direito é perigosa. O direito não deve ser uma moldura a ser preenchida por qualquer conteúdo. Deve, pelo contrário, exprimir os anseios e expectativas da sociedade civil, de modo a realizar a sua verdadeira função social: a pacificação. Assim, deve ser construído da base da pirâmide até o topo, pois é nesta construção que reside a sua legitimidade, e não o inverso.

Não obstante, este autor tem um conceito restrito de racionalidade, de modo a excluir a razão dos atos de decisão. Ao opor-se ao positivismo tradicional, Kelsen procurou dosar a atividade humana em racional e volitiva. Entretanto, sua obra dá margem ao órgão de ser largamente volitivo. Desta forma, no intuito de ser moderado (razão + vontade) com relação ao positivismo (somente razão), Kelsen deu margem ao extremo oposto desta corrente (somente vontade)

5. Referências bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difusão editorial Ltda., 1989

COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. São Paulo: Editora Saraiva, 2001

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Editora Atlas, 2003

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Coimbra: Armênio Amado Editora

 

Como citar o texto:

ASENSI, Felipe Dutra..Uma análise sobre os limites da hermenêutica jurídica em Hans Kelsen. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 170. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/teoria-geral-do-direito/1117/uma-analise-os-limites-hermeneutica-juridica-hans-kelsen. Acesso em 20 mar. 2006.

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