Que as ciências sociais ( e especialmente o Direito) têm vivido os últimos decênios de costas aos espetaculares logros dos recentes estudos provenientes da ciência cognitiva, da psicologia evolucionista, da antropologia, da genética do comportamento, da primatologia, da neurociência cognitiva , entre outras , é algo tão óbvio, que somente a prova do contrário resultaria relevante.

Ainda surpreende a muitos que alguém pretenda estabelecer algum vínculo forte entre as ciências sociais normativas, a psicologia evolucionista, a ciência cognitiva , a genética comportamental, a primatologia e a neurociência, sendo tão comum como é a aceitação de que na Ciência o social e o natural percorrem por caminhos de desencontro, mais ainda se cabe em uma era de perversa (hiper) especialização que aparentemente torna impossível não já salvar o hiato entre âmbitos tão distintos senão inclusive a tentativa de evitar a crescente compartimentalização em ilhas autárquicas de disciplinas tradicionalmente unificadas.

Não é menor a influência que exerceu sobre essa concepção separatista da ciência o auge insólito do chamado pós-modernismo, do relativismo cultural e do construtivismo social. Hoje em dia, a defesa teórica de que aquilo que é o conhecimento ( e nomeadamente o conhecimento propriamente científico ) é uma representação que não provém diretamente da realidade, nem corresponde necessariamente com esta - senão que está socialmente construído - , se atreveu a transpassar os âmbitos da sociologia, do direito e da psicologia para adentrar-se sem cuidados, e com não pouca arrogância, nos da física, da química e da biologia.

Assim, não só a autoridade, a segurança, a hermenêutica, a enfermidade, o incesto, a desigualdade social , a pobreza ou a escolarização urbana estão socialmente construídos, senão que também o são a realidade, as emoções, o pensamento, o gênero, o conhecimento, a natureza e a própria natureza humana. O que não deveriam ser mais que propostas marginais, ao menos por sua inconsistência lógica, transformaram-se em um mainstream do pensamento (pseudo) científico atual.

Sem embargo, a extraordinária proliferação de investigações e publicações que nas duas últimas décadas dirigem seus interesses a reflexionar sobre as relações entre a ciência cognitiva e a sociologia, a ciência cognitiva e a filosofia social normativa, a ciência cognitiva e a evolução cultural, ou a biologia e a psicologia evolucionista com todas elas , tem posto em um sério aperto não somente a defesa teórica de uma inexorável fragmentação do território da Ciência senão também da arraigada idéia de que não existe uma realidade independente de causas sociais, isto é, de que toda ela está socialmente construída.

E como, pessoalmente, acredito que a realidade é real e que a ciência é um modo excelente de perceber como essa realidade funciona, o que pretendo deixar claro é que esta nova realidade inter e multidisciplinar – a qual, dito seja de passo, permanecem, em sua miopia, inadvertidamente alheios uma boa parte dos cientistas sociais e, em especial, em sua quase totalidade, os operadores do direito - não somente põe em cheque uma grande porção dos logros teóricos tradicionais das ciências sociais normativas – nestas incluída, claro está, a ciência jurídica -, como , e muito particularmente, possibilita uma revisão das bases ontológicas e metodológicas do fenômeno jurídico a partir de uma concepção mais empírica e robusta acerca da natureza humana.

Neste particular, trata-se de uma perspectiva interdisciplinar cuja idéia básica consiste em propor que várias disciplinas contidas nas ciências sociais e do comportamento tornem-se mutuamente coerentes e compatíveis com o que é conhecido nas ciências naturais, ou seja, uma explicação verticalmente integrada dos fenômenos. Nas palavras de Jerome Barkow , essas explicações (“verticalmente integradas”) que, em ciências humanas, são simultaneamente cruciais e raras, querem significar que o que é exigido é sempre um leque de explicações que se complementem nos diversos níveis de análise e que sejam todas mutuamente compatíveis.

Coloca-se como exigência que qualquer explicação sociológica ou filosófica da ética seja compatível com as teorias psicológicas da ética, e que estas sejam compatíveis tanto com a ciência cognitiva, a neurociência cognitiva , a psicologia evolucionista como com a biologia da evolução (sobretudo na doutrina jurídica, onde cada autor , quase que completamente alheio aos estudos que se efetuam em outros campos distintos do direito, aborda um tema comum a partir de um ponto de vista disciplinar e teórico específico, ademais de exclusivamente jurídico).

Por certo que essa postura interdisciplinar não exige que digam todos as mesmas coisas, mas que digam coisas compatíveis entre si e com outras áreas de conhecimento, ou que, pelo menos, tornem explícitas as incompatibilidades. Depois, da mesma forma como em filosofia não se trata de estabelecer uma orientação analítica e uma orientação hermenêutica opostas entre si senão de um “ir e vir” de uma a outra mutuamente enriquecedora, o mesmo sucede na epistemologia, na qual o conhecimento hermenêutico não “se opõe ao” senão que “se compõe do” conhecimento metodológico-científico – quer dizer, é parte dele – segundo uma relação complexa (de continuidade-descontinuidade) entre ciências humanas e ciências naturais. Assim que, sem lugar a dúvidas, somente através de um diálogo com as chamadas ciências “duras” como a filosofia, e também as ciências humanas, lograrão elaborar uma reflexão mais fecunda sobre a verdade, a natureza humana, o direito e a ética.

Seja como for, esse diálogo (perspectiva ou postura) interdisciplinar pressupõe simultaneamente uma reforma das estruturas do pensamento –para usar a expressão de Edgar Morin : o verdadeiramente importante não é justapor os aportes das diversas ciências, senão o de enlaçá-los, de saber mover-se entre saberes compartimentados e uma vontade de integrá-los, de contextualizá-los ou globalizá-los. Somente outra estrutura de pensamento (porque –como alguma vez se disse - o principal órgão da visão é o pensamento, isto é, de que vemos o mundo com nossas idéias) pode permitir-nos conceber as ciências como conjunção, como implicação mútua, o que se costuma ver como disjuntiva: o ser humano considerado simultaneamente como um ser biológico, cultural, psicológico e social.

Mas, qual a relação dos resultados da psicologia evolucionista, da ciência cognitiva, da genética do comportamento, da neurociência cognitiva e da primatologia com as pesquisas teóricas da antropologia, do direito, da sociologia, da teoria econômica ou da história? Em que aspecto podem enlaçar de um modo presumidamente tão decisivo para que as primeiras ponham em questão os resultados dessas últimas ?

O ponto poderia resumir-se assim: por décadas, as ciências sociais normativas fundaram as noções de cultura, crenças , relações de poder, direito, justiça, interpretação jurídica e estrutura jurídica e social no suposto implícito de que os humanos aprendemos a adaptar-nos culturalmente no meio social em que crescemos porque estamos cognitivamente dotados da capacidade para processar de forma geral a informação de nosso ambiente. Assim, a linguagem, as noções éticas , as representações religiosas, jurídicas e culturais ou a concepção do poder são entendidas como socialmente adquiridas.

Pois bem, o núcleo dura desta nova perspectiva interdisciplinar reside, precisamente, no objetivo de demonstrar de que modo a psicologia evolucionista, a ciência cognitiva, a genética do comportamento, a antropologia evolutiva, a primatologia e a neurociência cognitiva oferecem razões poderosas que dão conta da falsidade desta concepção comum da natureza humana e que alcance pode isso chegar a ter para o atual edifício teórico, ontológico e metodológico, da filosofia e da ciência do direito, para a concepção acerca do homem como causa, princípio e fim do direito, e consequentemente, para a dimensão essencialmente humana da tarefa de interpretar, justificar e aplicar o direito.

É certo que ainda não conseguimos resolver o problema da mútua relação entre o natural e o cultural, ou seja, os meios pelos qual a evolução biológica e a cultura influíram sobre a natureza humana, e vice-versa. Mas para entender a condição humana – e o direito é parte dessa condição e a sua idéia (idéia de direito) é o resultado da idéia do homem – há de compreender ao mesmo tempo os genes, a mente e a cultura, e não por separado a maneira tradicional da ciência e as humanidades: a dinâmica, em conjunto, entre os genes e o entorno é o que constitui e configura o ser humano; e é o cérebro o que nos permite analisar, raciocinar, formular teorias e juízos de valor, interagir com os demais e adaptar-nos a todos os contextos.

Algo passa com as ciências sociais e, nomeadamente, com a ciência do direito. E é já um tanto ridículo a esta altura seguir falando de sua “imaturidade”, porquanto já não há motivos para este tipo de argumentação: nem são mais jovens que as ciências naturais, nem pode dizer-se tampouco que seus cultivadores tenham sido espíritos menos refinados ou avisados que os que se dedicaram a cultivar as ciências naturais. O “atraso”, o “estancamento”, a “imaturidade” – chame-se como queira – das ciências jurídicas é fenômeno inconcusso que o dogmatismo e o isolamento endêmico das ciências sociais normativas deveriam fazer-nos reflexionar vivamente sobre o ponto de estancamento ao que estas chegaram: um conjunto de hipóteses escritas na areia.

A filosofia e a ciência do direito não podem oferecer uma explicação ou uma descrição do “direito real”, do fenômeno jurídico ou da racionalidade jurídica, nem menos esgotar-se nelas, porque sua perspectiva não é primordialmente explicativa nem descritiva, senão normativa. Podem e devem aprender coisas da biologia evolutiva, da psicologia evolucionista, da primatologia, da antropologia evolutiva, da neurociência e das ciências cognitivas, na medida em que somente uma compreensão realista da natureza humana, considerada sob uma ótica muito mais empírica e respeitosa com os métodos científicos, poderá levar-nos a reconstruir as melhores e mais profundas teorias acerca do direito e de sua função na constituição da sociedade.

Dito de outro modo, o direito adquirirá um grau maior de rigor enquanto se reconheçam e se explorem suas relações naturais com um panorama científico mais amplo (um novo panorama intelectual que antes parecia distante, estranho e pouco pertinente). Os mecanismos cognitivos são adaptações que se produziram ao longo da evolução através do funcionamento da seleção natural e que adquiriram formas particulares para solucionar problemas adaptativos de larga duração relacionados com a complexidade de uma existência, de uma vida, essencialmente social.

Resumindo: que não mais parece lícito e razoável construir-se castelos normativos “no ar” acerca da boa ontologia , da boa metodologia, da boa sociedade ou do direito justo. Porque uma teoria jurídica (o mesmo que uma teoria normativa da sociedade justa , ou uma teoria normativa e metodológica da adequada realização do direito), para que suas propostas programáticas e pragmáticas sejam reputadas “aceitáveis”, têm antes que conseguir o nihil obstat, o certificado de legitimidade, das ciências mais sólidas dedicadas a aportar uma explicação científica da mente, do cérebro e da natureza humana que os mitos aos que estão chamadas (e destinadas) a substituir.

E o mais curioso de tudo é o fato de que sabemos que isso, embora incoveniente, é verdadeiro, mas insistimos em arquivar naquela pasta mental em que todos nós guardamos as verdades inegáveis que não se ajustam aos nossos sistemas de crenças.

 

Como citar o texto:

FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Marly et al..O problema da interdisciplinaridade no Direito. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 190. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/teoria-geral-do-direito/1443/o-problema-interdisciplinaridade-direito. Acesso em 6 ago. 2006.

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