in the penumbral situation judges must necessarily legislate[1]” (HART, H.L.A., Positivism and the Separation of Law and Morals. Harvard Law Review, v. 71, 1958, p. 593.

O presente artigo foi elaborado a partir da leitura dos pós-escritos do livro Conceito de Direito de Hart e do Império do Direito de Dworkin. Nos pós-escritos Hart procura defender sua teoria das investidas de Dworkin, de forma que seus debates merecem reflexão por serem atuais.

Os manuais de filosofia, em sua maioria, não trazem explicações sobre a obra e contribuição filosófica de Hart, o que dificultou o entendimento da obra[2], uma vez que a leitura foi realizada basicamente somente através do livro do próprio Hart. Neste ponto, falham os manuais filosóficos a suprimir e ignorar a importância de Hart para o Direito. Especulamos que existe um pouco de discriminação por Hart ser rotulado neopositivista.

Haja vista a multifacetada sociedade em que vivemos definir justiça e direito é extremamente complexo. E qualquer conceito a que se chegue será insuficiente perante a constante mutabilidade de necessidades e valores que a sociedade alberga em seu âmago.

A globalização, na sua vertente mais atual, tem-se mostrado um fator de desequilíbrio e até mesmo um empecilho à concretização da democracia, porque retira a soberania dos Estados e utiliza-se de formas sofisticadas de desmantelo das estruturas que permitem a soberania popular, base do modelo democrático.

É possível notar claramente que na obra de Hart existe uma forte preocupação entre separar Direito e Moral. Esta preocupação é apresentada como um avanço na análise do fenômeno jurídico de formação da justiça a partir da observância do Direito Positivado. Neste ponto a teoria encontra seu “calcanhar de Aquiles”, porque a distinção não se consubstancia clara e enfrenta dificuldades na apreciação dos aspectos elementares da questão que se encontram fora da apreciação normativa.

Hart dá muita ênfase a importância do direito regrado ou positivado, minimizando a essencialidade da compreensão principiológica do Direito. Esta é o ponto mais criticado da doutrina de Hart. Assim como Kelsen, Hart é um neopositivista, ou seja, ou as regras se aplicam ao caso ou não se aplicam, visão dualista criticada, principalmente diante dos chamados “hard cases” de Ronald Dworkin[3], crítico da obra de Hart justamente por observar e defender a preponderância dos princípios sobre as regras positivadas. Pensamento hoje adotado na maioria dos manuais de Direito Constitucional e Hermenêutica jurídica.

A teoria de Hart é fundamentada na existência de uma regra de conhecimento. Esta seria a aceitação por parte da sociedade que determinada regra jurídica existe em função de determinada prática social. Esta seria uma das condições de validade e seria diferente em cada sistema jurídico, justificando a fundamentação nela. A teoria hartiana ainda propõe o conceito de predigree, seria se a norma tem reconhecimento de validez social de acordo com a regra de conhecimento, porque é desta que todas as outras normas derivam. O juízes aceitam a regra de conhecimento de Hart quando aplicam o direito válido, mas como definir isto não ficou claramente explicado, parece que baseia-se apenas na vontade do juiz em acatar ou não a regra de conhecimento.

Para Hart o direito normativado deve responder a todas as questões juridicamente suscitadas. Se não puder resolver, o magistrado usa seu poder discricionário e cria o direito aplicável ao caso. Esta criação, na visão de Hart, seria oriunda de uma fonte externa e alheia ao Direito. Essa liberdade de criação é muito criticada na teoria de Hart e justamente neste ponto a teoria do Ronald Dworkin surge como forma de resgate do direito no sentido de trazer de volta seu conteúdo de alcance às normas não positivadas, através da compreensão que existem princípios e dentre a análise destes é que deve surgir o direito a ser aplicado, estando a solução interna ao direito.

A teoria do Dworkin mostra-se falha porquanto não demonstra qual o critério lógico ou racional que justifica a adoção de um princípio ou outro diante dos casos difíceis não regulamentados. Poderia-se dizer que isto também culmina numa “discricionariedade” do juiz, pois lhe resta escolher fundamentadamente, pois estamos num Estado Democrático, mas mesmo assim seria uma escolha baseada em pensamentos próprios. A fundamentação, por si só, não afasta critérios irracionais e sem obediência da lógica. Como se pode observar é um ponto de estrangulamento das duas teorias (Hart e Dworkin).

Para Hart o uso da analogia é reconhecer a importância das bases normativadas para a formação de um juízo não positivado, reforçando a validade de sua teoria e justificando que a discricionariedade existe de fato. Para ele, ao meu ver, existe a criação do direito após o fato ser praticado, o que hoje é tido como injusto. Afirmamos isto porque no Direito Penal Brasileiro existe a norma “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

A concepção positivista tem a visão do direito enquanto conjunto de normas, no qual existem situações não reguladas, cuja solução localiza-se fora do plano jurídico. A discricionariedade que surge para o juiz, segundo Hart, não pode ser arbitrária e tem limites substanciais, pois só pode ocorrer em casos não regulados pela norma-regra e se localizar dentro do que seria admitido pelos usos e costumes, ou seja, pelo que seria socialmente aceitável. A discricionariedade seria então como uma espécie de espaço delimitado para o juiz atuar. Entretanto, em nosso entendimento, o autor não mostra claramente como seria essa delimitação, é vago no explicar de onde virão especificamente os valores sociais que inspiraram o juiz na criação da lei, se é que se observarão os valores sociais.

Percebe-se que Hart tentou explicar como se formam as decisões judiciais nos casos onde existem lacunas no conteúdo normativo das leis, analisando minuciosamente todos os aspectos que envolvem a formação da decisão judicial, levando em conta interferências internas e externas, assim como elementos internos e externos às normas. Esse esforço possibilitou se estudar mais a fundo formas de controle da margem de discrição que possa haver nos julgados, e, de certa forma, há[4]. De modo que a investigação dos critérios usados serve para aprimoramento do sistema. Nisto a teoria hartiana consubstancia-se num importante passo rumo a uma teoria de direito e justiça adequada ao modelo do estado democrático de direito.

O livro além de apresentar a teoria hartiana destina-se a defendê-la das muitas críticas, destacando-se as de Ronald Dworkin. Arrisco a relatar que a teoria hartiana e a de Dworkin tem fortes pontos convergentes, e as duas abraçam uma forma de discricionariedade, embora em doses diferentes. Isso se comprova ao observar que o próprio Dworkin já admitiu que as normas positivadas devem ser observadas por todos[5], ficando os demais casos, chamados por ele “hard cases – casos difíceis ou árduos” à mercê dos princípios e do complexo sistema de análise e aplicação destes descrito e esmiuçado em sua teoria.

Parece-nos que Hart, revestindo-se de característica pragmática, tem a seu favor o argumento prático e substancioso de que, mesmo nos hard cases, o juiz poderia utilizar-se de qualquer dos princípios possíveis, escolhendo, de certa forma, o que melhor parecer adequado ao caso, mesmo diante da existência de critérios. A discricionariedade permanece então como único modo de evitar outros meios mais agressivos de chegar-se ao deslinde da questão: como o reenvio ao legislativo da matéria, por exemplo – exemplo de Hart.

Uma questão que me ocorreu durante a leitura de Hart foi justamente as conseqüências desta discricionariedade, e nem sempre podem ser tão nefastas, uma vez que o Legislativo pode lançar mão de sua prerrogativa de legislar e modificar a situação para relações jurídicas futuras. Não é a melhor solução, mas isto não ocorre com atos feitos de modo errôneo pelo Executivo e Legislativo, tendo posteriormente seus atos revistos pelo nosso modelo de pesos e contrapesos, ao qual confiamos o equilíbrio do poder? Parece-nos que sim.

A teoria do Hart mostra-se extremamente atual se formos analisar as súmulas vinculantes, introduzidas na Constituição Federal pela Emenda 45 – Reforma do Judiciário. O poder de legislar estaria ou não sendo invadido pelo Judiciário quando este impõe uma forma única de interpretar e verticaliza suas decisões a ponto de torná-las semelhantes a leis a serem seguidas? Teriam os tribunais superiores poder de criação sobre o direito de forma discricionária? Estes são questionamentos pertinentes com relação à teoria de Hart que seriam interessantes de se abordar em sala de aula pela atualidade do tema.

Neste aspecto da emenda 45, a teoria de Hart enfrenta a mesma crítica: não se está usurpando a função legislativa. Pode o juiz pretender criar direito sem afetar o princípio da separação dos poderes? Parece-me que a teoria de Hart não é capaz de explicar onde começa a função criativa do juiz, por ele preconizada, e onde termina a função do legislador.

Embora a teoria de Hart hoje não seja a melhor fundamentação para o Direito, contribuiu para a formação das mais modernas teorias filosóficas sobre o que é direito e o que é justiça. Pode-se afirmar, sem exagero que é um dos passos necessários até para a formação da teoria discursiva de Jünger Habermas e de outras teorias como as de Kant, Rawls, Apple e outros.

A filosofia é um processo de acúmulo de teorias e experimentações, todas falhas em alguns pontos, de forma que não há verdade absoluta a ser descoberta. Como podemos ver o neopositivismo ainda tem forte apelo filosófico e nos colocam questões de conteúdo sério a serem enfrentadas.

A pergunta lançada no título do texto consiste num convite a reflexão. Não há resposta completamente fechada, mas existe uma forte tendência em negar esta discricionariedade, ou então aceitá-la em casos especialíssimos.

Referências Bibliográficas

DWORKIN, Ronald. O império do direito: O que é o direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

HART, Herbert L.A. Positivism and the Separation of Law and Morals. Harvard Law Review, v. 71, 1958

___. Conceito de Direito. 2. ed, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

[1] Tradução livre de minha autoria: em situações difíceis ou em que haja penumbra sobre a melhor solução os juízes são obrigados a legislar.

[2] HART, Herbert L A. Conceito de Direito. Trad. Armindo Ribeiro Mendes, 2. ed, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

[3]Dworkin formula crítica à teoria de Hebert Hart aduzindo que: “sua idéia fundamental de que a verdade das proposições jurídicas depende essencialmente de padrões convencionais de reconhecimento conquistou um amplo assentimento”. Trecho extraído da obra DWORKIN, Ronald. O império do direito: O que é o direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999,  p. 43.

[4]  “a lei freqüentemente se torna aquilo que o juiz afirma”. DWORKIN, Ronald. O império do direito: O que é o direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 4.

[5]  Op. Cit. p. 54 “Significa alguma coisa afirmar que os juízes devem aplicar a lei, ao invés de ignorá-la, que o cidadão deve obedecer à lei, a não ser em casos muito raros, e que os funcionários públicos são regidos por suas normas. Parece estúpido negar tudo isso simplesmente porque às vezes divergimos sobre o verdadeiro conteúdo do direito” .

 

Como citar o texto:

ALMEIDA, Dayse Coelho de..Herbert Hart versus Ronald Dworkin: existe discricionariedade para o magistrado na solução dos casos não disciplinados no arcabouço normativo?. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 136. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/teoria-geral-do-direito/704/herbert-hart-versus-ronald-dworkin-existe-discricionariedade-magistrado-solucao-casos-nao-disciplinados-arcabouco-normativo. Acesso em 25 jul. 2005.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.