Resumo: Introdução; 1. O Estado Social: condicionamentos históricos e formulação doutrinária; 1.1 O desafio histórico; 1.2 A formulação da idéia e a sua constitucionalização; 2. Características do Estado Social; 3. O Estado Social como Estado distribuidor; 4. O Estado Social e o sistema econômico; 4.1 Objetivos e requisitos do sistema neocapitalista;  5. A crise do Estado Social; 6. O Estado espanhol como Estado Social; 6.1. Projeção da cláusula do “Estado Social” na Constituição espanhola;  7. O Estado Social na Constituição brasileira de 1988; 8. Conclusão; 9. Referências bibliográficas.

Palavras-chave: Estado Social. Estado do Bem-estar Social.

INTRODUÇÃO

Em principio, e como ponto de partida, pode-se afirmar que o Estado social representa historicamente o intento de adaptação do Estado tradicional – Estado liberal-burgués – às condições sociais da civilização industrial e pós-industrial, com os seus novos e complexos problemas, mas também com suas grandes possibilidades técnicas, econômicas e organizativas.

 O Estado social é, pois, uma fase, ou o resultado de uma longa transformação por que passou o Estado Liberal clássico e, conseqüentemente, é parte do histórico Estado de Direito, quando incorpora os direitos sociais para além dos direitos civis.

“El Estado social se define como modelo de organización política que remonta su separación con respecto a la sociedad civil, separación pregonada por los partidarios del laisser faire, y que predominó, al menos como arquetipo dogmático, desde el comienzo de la época moderna, hasta al final del Siglo XIX y las primeras décadas del Siglo XX. El Estado Social es el producto de la simbiosis entre el Estado y la sociedad, o como especifica el tópico, es el resultado de la estatalización de la sociedad y de la socialización del Estado”[1].

Lembra Paulo Bonavides[2] que o Estado social representa uma transformação superestrutural porque passou o antigo Estado Liberal.

De fato, na medida em que o Estado tende a desprender-se do controle burguês de classe, termina por enfraquecer este, passando ele a ser, como pretendia Lorenz von Stein, o Estado de todas as classes, o Estado fator de conciliação, ou mitigador de conflitos sociais e, ao mesmo tempo, pacificador indispensável entre o trabalho e o capital.  Foi nesse momento, em que buscou superar a contradição entre a igualdade política e a desigualdade social – que ocorre, sob distintos regimes políticos – que aconteceu uma importante transformação: nasce aí a noção contemporânea do Estado social[3].

Levando-se em conta os elementos sócio-históricos que propiciaram a passagem do Estado liberal ao Estado social – com os antecedentes nas Constituições do México, de 1917, e da República de Weimar, de 1919 – pode-se afirmar que ele se fundamenta na luta pela colocação em marcha de direitos que garantissem ou tornassem possível uma participação política igualitária, e, por conseguinte, uma participação concreta da classe trabalhadora na configuração de uma nova geração de direitos fundamentais – como o direito de associação e ao sufrágio universal – de modo a garantir a solidariedade e a igualdade[4].

Esses novos direitos terminam por permitir a incorporação pelo Parlamento de representantes dos partidos obreiros que defendem seus interesses trazendo para discussão problemas alheios aos que tradicionalmente interessavam à burguesia. Por conta dessa nova realidade, dessa dinâmica, que inclusive levou a formação de governos socialistas, o Direito passou a adquirir uma nova função, qual seja, a função promocional que terminará influindo nos textos constitucionais provocando uma outra e positiva atuação dos poderes públicos, sobretudo por meio da ação do Direito administrativo e do Direito do Trabalho.

Essa nova realidade igualmente contribuiu para a formulação de novos direitos: os chamados direitos econômicos, sociais e culturais, que têm como fundamento a igualdade material e a solidariedade, cujo escopo é precisamente satisfazer as necessidades básicas que não eram cobertas através dos direitos civis e políticos, por meio da função promocional do Direito e dos poderes públicos[5].

Assim, a igualdade passou a ser utilizada como fator de diferenciação, como método para que a igualdade como equiparação fosse alcançada no campo da realidade prática, vale dizer: essa isonomia deve ser alcançada no ponto de chegada, enquanto que nos direitos clássicos, individuais e civis, bem como nos políticos, com o sufrágio universal, a igualdade passa a existir desde o ponto de partida, ou seja, igualdade como equiparação desde o início.

Após a Segunda Guerra Mundial se coloca doutrinária (W. Beveridge, T.H. Marshall) e normativamente, a necessidade do reconhecimento dos direitos sociais, de maneira que o Estado torna-se o garantidor de um mínimo de bem-estar social redistribuindo os recursos econômicos, sociais e culturais. Ao conjunto de políticas que desenhe o modelo de Estado de Direito Social e Democrático nas possibilidades reais, se denomina Estado de Bem-estar, ou Estado Social que no Ocidente, tem como princípio cardial a adesão à ordem capitalista a qual jamais renunciou[6].

O Estado social constitui-se, pois, uma reação ao Estado liberal e à economia de mercado no início do século XX com a Constituição de Weimar caracterizando-se pela intervenção estatal, pela proteção à classe trabalhadora – dentro e fora da produção, como no caso dos seguros sociais –, pela intervenção no mercado – limitando-o – e pela geração de emprego. É, pois, um estado prévio e subjacente ao Estado do bem-estar, enquanto o Welfere State, segundo o pensamento de Antonio Baylos Grau, citado por Zeno Simm[7], “constitui uma resposta que veio após a Segunda Guerra, com a constitucionalização dos direitos sociais, caracterizando-se pela expansão progressiva dos serviços públicos destinados a garantir a cidadania, pela institucionalização da proteção do trabalho (num caráter coletivo), pela redistribuição da renda, pela instituição de instrumentos de substituição do salário (previdência social) e pela realização do objeto do pleno emprego (por meio de políticas públicas); gera uma tensão entre o público e o coletivo”.

Assim, e em que pese a doutrina costumar empregar as expressões “Estado social” e “Estado do bem-estar” (Welfere State) como o modelo de Estado voltado para a satisfação das necessidades individuais e coletivas dos cidadãos, há uma diferença entre aquele e este modelo, na medida em que o conceito de Welfere State se refere nomeadamente a uma dimensão da política estatal, ou seja, a das finalidades de bem-estar social, vale dizer: é um conceito mensurável em função da distribuição das cifras pressupostas destinadas aos serviços sociais e de outros índices, e dos problemas que coloca, tais como seus custos, suas possíveis contradições e sua capacidade de reprodução, podem também ser medidas quantitativamente, ou em outras palavras, se refere a um aspecto da ação estatal, não exclusiva em nosso tempo, já que o Estado do absolutismo tardio também foi qualificado como “Estado do bem-estar”, enquanto o Estado social se refere a aspectos totais de uma configuração estatal típica de nossa época.

1. O Estado social: condicionamentos históricos e formulação doutrinária

1.1 O desafio histórico

No que toca aos elementos sócio-históricos que propiciaram a passagem do Estado liberal ao Estado social, pode-se citar principalmente dois, a saber:

Em primeiro lugar, a necessidade de dá solução aos problemas e as disfunções causadas pelo Estado liberal.

Com efeito, a profunda crise econômica e o acirramento da luta de classes, presentes no período entre guerra, repercutiram de forma decisiva na estabilidade das instituições políticas. Aliado a esse fato, as experiências totalitárias européias e o desastre da Segunda Guerra Mundial levaram as potências ocidentais a um objetivo histórico de evitar a volta do sistema anterior e também a lutar para impedir a caída em um socialismo de inspiração soviético.

Esse duplo propósito terminou por provocar o surgimento da política proposta por Keynes, em 1936, segundo a qual era possível chagar por métodos democráticos, sem alterar fundamentalmente a economia capitalista, a extinção do desemprego mediante o aumento da produção, e, por conseguinte, da oferta de emprego. Todavia, para conseguir esse objetivo, fazia-se necessário que o Estado assumisse a função de orientação e do processo econômico ainda que não chegasse a adquirir a propriedade dos meios de produção.

“El elemento más importante de la evolución en la época de entreguerras fue la asunción paulatina por el Estado de una cierta responsabilidad de carácter general en el mercado de trabajo. Esta responsabilidad se puso de manifiesto en la lucha activa contra el desempleo, en los años treinta sobre tudo, mediante programas estatales de creación de empleo y activación de la economía – fue el caso de Suecia y, con menos éxito, el de Estados Unidos – o en la concesión de subsidios a los desempleados – como ocurrió en Inglaterra y Alemania en los años veinte”.[8]

De outra parte, também contribuiu para o desenvolvimento e para a atual complexidade das funções estatais as possibilidades oferecidas pelo desenvolvimento tecnológico, na medida em que, de um lado, terminou por facilitar a onipresença da ação do Estado e, de outra parte, esse mesmo desenvolvimento, com os riscos que leva e que lhe são inerentes, exige que a função de direção do mesmo fique em mãos do próprio Estado.

Assim, o Estado social é a resposta histórica ao desafio colocado pelas disfunções sociais e econômicas do Estado liberal, mas é, ao mesmo tempo e acima de tudo, um objetivo de adaptação da sociedade industrial e pré-industrial a uma nova realidade e a novos desafios que a crise trazida pela Segunda Guerra provocou em praticamente todas as nações. É, pois, o resultado de uma longa transformação por que passou o Estado liberal clássico e, consequentemente, faz parte do curso histórico do Estado de direito, na medida em que incorpora os direitos sociais para além dos direitos civis. Historicamente, portanto, o Estado social é um modelo que nasce em meio à contradição histórica, pois se afirma em três experiências políticas e institucionais diferentes (dissoantes ou até mesmo opostas): a Revolução Russa de 1917, a reconstrução da Alemanha após a Primeira Guerra e a Revolução Mexicana e suas conseqüências, como por exemplo, a fundação do Partido Revolucionário Institucional, das quais nascem três documentos de suma importância: a Constituição do Weimar, de 1919, uma espécie de ícone social-democrático; a Constituição do México, de 1917 e a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado da Rússia revolucionária, socialista, de 1918.

Esses documentos definem, assim, constitucionalmente, os direitos sociais como direitos fundamentais da pessoa humana, sob proteção estatal. A partir desse momento, pode-se dizer, estavam fincadas as bases para o garantismo social, vale dizer: o Estado como provedor de garantias institucionais aos direitos sociais trabalhistas, marcados por um forte protecionismo social.

Acertada, pois, a afirmação de Paulo Bonavides[9] no sentido de que quando o Estado “coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional e fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode com justiça receber a denominação de Estado social”.

Em resumo, o surgimento do Estado social se justifica, historicamente, com o escopo de remediar as desigualdades materiais dos cidadãos, submetidos às leis do mercado, geradoras de profundas diferenças e desigualdades sociais. E nesse contexto, o Estado deve comprometer sua atividade objetivando conseguir que a liberdade e a igualdade do indivíduo e dos grupos em que se integra sejam reais e efetivas, de modo a facilitar e permitir a participação de todos os cidadãos na vida política, econômica, cultura e social.   

1.2 A formulação da idéia e a sua constitucionalização

O conceito de Estado social remete, na Alemanha, a Lorenz von Stein, que em meados do século XIX utilizou o termo “democracia social”, e posteriormente o de “Estado social”, ao defender, em 1850, que havia terminado a época das revoluções e das reformas políticas para começar a das revoluções e reformas sociais. Para ele, o Estado tem que manter com seu poder, para cada pessoa individual auto-determinada, a igualdade jurídica absoluta frente a todas as diferenças (de classe), e neste sentido ele chamou Estado de direito. Todavia, tem que promover com seu poder o progresso social e econômico de todos seus membros, porque o desenvolvimento de um constitui a condição e, ao mesmo tempo, a conseqüência do desenvolvimento do outro. E nesse sentido, é que, segundo referido autor, se fala em Estado social (gesellschaftlich ou sozial)[10].

Entretanto, dentro da história da idéia do Estado social devem também ser mencionadas certas tendências do pensamento social democrata clássico, iniciadas por Lassalle que tiveram prosseguimento mutatis mutandis pelas direções marxistas revisionistas inclusive centristas.

“Al Estado social se refieren los teóricos del socialismo revolucionario, incluso en contra del postulado antiestatalista propio de al ortodoxia marxista; su dimensión originaria es establecida desde al óptica del socialismo moderado de Lassale; el reformismo social le confiere lo que durante décadas serán sus indiscutidos perfiles, en las teorías de Lorenz von Stein sobre el papel de al monarquía constitucional; se llega a utilizar en la calificación de dos de las forma de Estado autoritario más importantes de siglo XX, el nacional-socialismo alemán y el fascismo italiano; y, por último, está en la base misma de las doctrinas neocapitalistas que han progresado hacia la fórmula del Estado de bienestar, llegando incluso a institucionalizarse en las calificaciones generales con que la mayor parte de las actuales Constituciones europeas definen su sistema político”.[11] 

O Estado tem sido e é, certamente, um instrumento de dominação de classes, mas é ao mesmo tempo, uma instituição que, sob pressão dos partidos políticos e das organizações sindicais de trabalhadores, pode também conseguir constantes melhoras para as classes obreiras que por isso têm interesse na sua existência e na manutenção do um Estado forte, eficaz, não-opressivo e socialmente orientado. Por conseguinte, sua importância cresce na medida em que avança para a modernidade e objetiva o progresso da sociedade. Portanto, a luta não é nem pode ser, contra o Estado, pois sem se negar que a democracia política formal seja uma forma de dominação de classes, se considera, todavia, como uma valiosa e definitiva conquista da civilização, sob a qual se poderá avançar para a democracia social. Sob essa perspectiva, a democracia tem dois momentos: o político e o social. O momento político é sempre pressuposto inafastável para se conseguir o segundo e este, por sua vez, é a plena realização dos valores da liberdade e da igualdade proclamadas por aquela.

Mas a formulação da idéia do Estado social – de Direito – é devida a Hermann Heller, militante social democrata, que enfrenta o problema concreto da crise da democracia e do Estado de Direito o que considera que é necessário para salvar não apenas da ditadura fascista, mas também, da degeneração que havia conduzido o positivismo jurídico e os interesses dos estratos dominantes. Para ele não é preciso renunciar o Estado de Direito, bastando apenas dar-lhe um conteúdo econômico e social, na medida em que somente o Estado Social de Direito pode se constituir uma alternativa válida frente a anarquia econômica e face a ditadura fascista e, por conseguinte, só ele pode ser a via política para salvar os valores da civilização.

Essa idéia do Estado social foi constitucionalizada pela primeira vez em 1949 pela Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, ao mencionar, no art. 20, “um Estado federal, democrático e social” e no art. 28 definindo “um Estado democrático e social de Direito”.

A Constituição alemã de 1949, logo na introdução, seria muito específica (explícita) em suas intenções e por isso afirmou logo no início que o Estado de Direito seria democrático e social:

“A Lei Fundamental constitui a base para o desenvolvimento pacífico e livre do Estado alemão. Os elementos fundamentais do novo estado estão inequivocamente definidos na constituição: - A República Federal da Alemanha é um Estado de direito, democrático e social; todo o poder estatal emana do povo (...) Os autores da Constituição, depois da nefasta experiência com que as violações do direito pelo Estado nacional-socialista, emprenharam-se particularmente em salientar as características dum Estado de direito” [12]

E o mesmo espírito do Estado de Direito do pós-guerra, ou seja, da necessidade do controle democrático, continuaria presente nas décadas subseqüentes. Tanto assim, que depois no seu artigo primeiro a Constituição veio positivar de forma expressa o princípio da dignidade humana, estabelecendo:

“Artigo 1 (Proteção da dignidade do homem) (1) A dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público. (2) O Provo Alemão reconhece, portanto os direitos invioláveis e inalienáveis como fundamentos de qualquer comunidade humana, da paz e da justiça no mundo. (3) Os direitos fundamentais a seguir discriminados constituem direito diretamente aplicável para os poderes legislativo, executivo e judicial”.[13]

Após a Constituição alemã, e mais modernamente vários países terminaram por consagrar, em suas Constituições, o modelo social do respectivo Estado.

Beatriz Gonzáles Moreno[14] cita como exemplos, a Espanha que no art. 1º da Constituição de 1978 diz que a Espanha tratar-se de “um Estado social y democrático de Derecho, que propugna como valores superiores de su ordenamiento jurídico la liberdad, la justicia, la igualdad y el pluralismo político”; a Italiana, de 1947, que no art. 1 qualifica a Itália como uma República democrática, fundada no trabalho; a França, cuja carta de 1946 define, no art. 1, o pais como uma República indivisível, laica e social e a Alemanha que como acima se viu, no art. 20.1 afirma que o Pais se constitui em um Estado federal, democrático o social.  

2. Características do Estado Social

O Estado social é a resposta a crescente necessidade de que exista uma regulação das relações sociais e econômicas, cada vez mais complexas, que acompanham a industrialização e ao processo de urbanização. Constitui, pois, a resposta a menor significação que vão tomando as forma tradicionais de assistência ou ajuda social, sobretudo na família, e o agravamento da oposição entre as classes sociais. Seu objetivo, portanto, é integrar a população através da assistência e da seguridade social, de uma igualdade acrescentada e duma co-gestão político-social objetivando estabilizar o sistema político, social e econômico existente mediante um processo de adaptação continua, e transformá-lo, ao mesmo tempo, de uma maneira evolutiva[15].

Assim, o Estado social para alcançar esses seus escopos, pressupõe um amplo sistema de comunicações tendente à igualação das condições de vida, a centralização e a uniformidade. Todavia, isso não exclui que nos Estados federais, como a República da Alemanha ou os Estados Unidos, algumas prestações básicas possam ser realizadas pelos Estados federados e nem impede que Municípios possam assumir até mesmo com bastante freqüência tarefas ou atribuições sociais consideráveis nem tampouco que associações beneficentes venham contribuir de forma significativa para a seguridade social.

Pode-se, assim, afirmar, com base na doutrina espanhola[16] que o Estado social é caracterizado pelos seguintes traços:

a) é fundamentado em um pacto social-liberal em que implica a compatibilidade com o que se poderia denominar capitalismo intervencionista ou estado neocapitalista;

b) o poder público proporciona segurança e certeza econômica aos indivíduos através da garantia de um mínimo bem-estar. Isso, é claro, pressupõe desenho e implementação de políticas públicas orientadas a garantir um alto nível de ocupação tendentes a alcançar o pleno emprego, bem como políticas distributivas das rendas e de proteção social que permitam proporcionar a cobertura das necessidades básicas e fundamentais dos cidadãos através de uma ampla rede de serviços sociais (seguridade social, emprego, habitação, etc..);

c) reforço da intervenção estatal nos âmbito social, econômico e laboral;

d) estabelecimento de um grande convênio global implícito de estabilidade econômica ou pacto Keynesiano, através do qual uma redistribuição da renda e dos excedentes por meio de um sistema fiscal progressivo e o crescimento do gasto público, que permita obter pleno emprego, uma rede de seguridade para todos os cidadãos, assim como integrar a classe trabalhadora diminuindo os conflitos sociais. Para isso, contribuirá um excepcional crescimento econômico e a estabilidade do comércio internacional;

e) extensão dos direitos sociais sobre amplas camadas da população e a colocação em prática de políticas redistributivas de rendas;

f) criação de bases institucionais necessárias para proporcionar o diálogo, a negociação e a concentração entre as forças sociais e, por conseguinte, a recondução, em relação a isto, dos conflitos sociais ou a confrontação de interesses pela distribuição da rendas;

g) institucionalização do que se poderia denominar salário social: garantia de um mínimo vital que eliminaria as situações de extrema pobreza, mediante a ampliação de formas de salário indireto, como provisão de bens, serviços prestacionais aos recebedores de rendas baixas para satisfação de necessidades básicas.

É possível, assim dizer-se, que: 1) o Estado social tem como função assegurar os fundamentos básicos do status quo econômico e social adaptando-o as exigências do tempo atual e excluindo de forma permanente os distúrbios para seu bom funcionamento, e desse modo, encontra-se vocacionado a garantir o sistema de interesses da seguridade social atual, vale dizer: da sociedade neocapitalista; 2) o Estado social significa uma correção não superficial, mas de fundo, não parcial, mas sistemática e, portanto, total do status quo, cujo efeito cumulativo conduz a uma estrutura e estratificação social nova, e concretamente para um socialismo democrático.

Assim, o Estado social nasce e se desenvolve em intima convivência com o progresso técnico, na medida em que este proporcionou toda sua capacidade para garantir ao cidadão aquilo que Dahrendorf chamou de “oportunidades vitais”, mas também condiciona ou pode condicionar o  próprio processo político.

Não pretende, portanto, o Estado social negar os valores e os fins do Estado liberal, ou seja, a liberdade e a igualdade dos indivíduos, ao contrário, os assume tratando de fazê-los mais efetivos na proporção em que lhes dá uma base e um conteúdo material partindo do suposto de que o individuo e a sociedade não são categorias isoladas e contraditórias, mas dois termos em implicação recíproca de tal forma que não se pode realizar um sem o outro. Por conseguinte, enquanto o Estado tradicional se sustentava na justiça comutativa, o Estado social se baseia e se sustenta na justiça distributiva, ou seja, o primeiro assinava direitos sem menção de conteúdo, o segundo distribui bens jurídicos de conteúdo material, enquanto aquele era fundamentalmente um Estado legislador, este é um Estado gestor a cujas condições terão se submeter às modalidades da legislação mesma, aqui predominando os decretos-leis, as leis-medidas, ou, como no Brasil prevê o art. 62 da Constituição de 88, a medida provisória, tão e abusivamente usada pelo executivo, muitas vezes, inclusive, para criar ou aumentar tributos[17].

Ademais, enquanto o Estado liberal se limitava a assegurar a justiça formal, o Estado social pretende concretizar a justiça legal material, ou seja, efetiva. Por conseguinte, o Estado social é um Estado que assume a responsabilidade de que os cidadãos contem com “um mínimo vital” a partir do qual podem exercer a sua liberdade. Enquanto o Estado liberal quis ser um Estado “mínimo”, o Estado Social pretende ter a pretensão de estabelecer bases econômicas e sociais para que o individuo, desde uns mínimos garantidos, possa desenvolver-se, ou como os alemães haviam definido: o Estado social como aquele que se responsabiliza da “procura existencial” (Daseinvorsorge).

Em síntese, o Estado social representa uma resposta as novas questões sociais surgidas a partir da Revolução Industrial, frente a manifesta incapacidade do Estado liberal para solucionar os novos problemas gerados pela transformação do sistema capitalista, ou seja, uma tentativa de adaptar o Estado tradicional – liberal burguês – à nova sociedade industrial e, posteriormente, pós-industrial. 

3. O Estado Social como Estado distribuidor

O Estado do nosso tempo – o Estado contemporâneo – é, fundamentalmente, Estado implementador de políticas públicas. Ainda que se possa encontrar os primeiros traços do esboço de seu perfil em momentos históricos anteriores, o Estado moderno nasce e se afirma como produto do capitalismo. Cumpre as funções de instalação das condições indispensáveis à produção capitalista e de produção de normas jurídicas necessárias à fluência das relações econômicas (segurança e certeza jurídicas) e de arbitragem dos conflitos individuais e sociais (ordem e segurança)[18].

Esse modelo de Estado evolui até aquele que se identifica como Estado social ou Estado do Bem-estar (Welfare Stato), hoje, segundo o discurso neoliberal, em declínio.

Entretanto, como nos lembra Eros Roberto Grau, devemos ainda insistir na afirmação de que o Estado contemporâneo é, fundamentalmente, Estado implementador de políticas públicas como, aliás, aqui no Brasil, se pode constatar do contido nos arts. 1º, incisos III e IV; 3º, incisos I, II, III, IV; 170, incisos III, VI, VII, VIII e IX, 193 e 194 da Constituição de 1988.

Assim, uma das características do Estado de nossos tempos, mais ou menos presente segundo o ordenamento jurídico de cada país, é a sua conversão em empresário, seja mediante a estabilização das empresas, seja ainda participando com o capital privado em empresas mistas, ou como no Brasil, em sociedades de economia mista, ou mesmo como possuidor exclusivo, ainda que submetido à forma jurídico privada[19].

Pode-se mencionar entre as várias razões para a assunção da função empresarial do Estado: realização de programas socialistas; sanção política da atitude de certas empresas durante a Segunda Guerra Mundial; defesa da capacidade de autodeterminação por parte do Estado frente aos poderes econômicos privados capazes de desafiá-lo; controle das atividades econômicas básicas para a economia nacional; desenvolvimento de indústrias de tecnologia avançada que exigem investimentos pesados e que, ao menos no momento, produzem escassa rentabilidade; conveniência de manter em exploração indústrias em situação financeira de insolvência, cujos trabalhadores não encontram fácil acomodação, e, sem se pretender aqui ser exaustivo, ocasionalmente, a necessidade de o Estado resgatar propriedades confiscadas por inimigo como indenização de guerra. Todavia, o que é importante registrar é que o Estado social não está centrado tanto na titularidade dos meios de produção, mas na distribuição do que foi produzido.

Pode-se, pois, considerar o Estado social como a forma histórica superior da função distribuidora que sempre tem uma das características essenciais do Estado, na medida em que agora não mais se trata de distribuir potestades ou direitos formais, prêmios e castigos, nem tampouco de criar o marco geral da distribuição dos meios de produção, mas se trata também de um Estado de prestações que assume a responsabilidade da distribuição de bens e serviços econômicos através da implementação de políticas públicas[20].

Assim, toda a atuação estatal é, neste sentido, expressiva de um ato de intervenção. Por conseguinte, o Estado contemporâneo atual, enquanto tal, intervém na ordem social. Alias, o Estado, como instituição somatório de instituições na sociedade inseridas, esteve sempre a “intervir” na ordem social, e, portanto, sempre desenvolveu políticas públicas. Todavia, o advento do chamado Estado “intervencionista” desencadeia um salto de qualidade, que informa, enriquecendo o conteúdo de suas atuações. Por isso, se levarmos em conta a amplitude dos recursos destinados a fazer efetiva essa atuação, podemos afirmar que o Estado do nosso tempo como um grande sistema de distribuição e redistribuição do produto social cuja atualização afeta a totalidade da economia nacional, a fim de compensar e equilibrar as desigualdades sociais. Por conseguinte, a atuação estatal compensadora das disfunções ainda se mostra indispensável o que leva a se concluir que, em que pese o discurso neoliberal postulando o rompimento da concepção do Estado do bem-estar, o Estado não se afastará ou não será afastado da sua missão reguladora ou regulamentar, se não em setores que possam efetivamente permanecer desregulamentados sem que haja o risco de comprometer o dinamismo dos mercados.

É essa uma realidade que não vejo como se possa negar.

4. O Estado Social e o sistema econômico

O Estado social não pode ser confundido com o Estado socialista, ainda que dentro de seus objetivos possa implementar políticas cuja acumulação e interação eventualmente levem a desembocar em um socialismo democrático.

Lembra Paulo Bonavides[21] que o Estado liberal e o Estado socialista, frutos de movimentos da sociedade, buscavam ajustar o corpo social a novas categorias de exercício do poder concebidas com o propósito de sustentar, desde as bases, um novo sistema econômico, porém adotado por meios revolucionários, enquanto o Estado social propriamente dito – não o figurino autoritário, como no caso do Estado social autoritário de Bismarck, na Prússia, por exemplo[22] –, deriva do consenso, das mutações pacíficas do elemento constitucional da sociedade, da força desenvolvida pela reflexão criativa, vale dizer: dos efeitos lentos, porém seguros, advindos da gradual acomodação dos interesses políticos e sociais, volvidos, de último, ao seu leito normal.

Todavia, sob o aspecto econômico, na realidade, o Estado social é uma forma estatal que historicamente se corresponde com a etapa do neocapitalismo tardio. Por isso, o neocapitalismo converge em alguns aspectos com a idéia e com a práxis do Estado social, mas em outras dialéticas, ambos terminam ou podem entrar em tensão, como se verá a seguir.

4.1 Objetivos e requisitos do sistema neocapitalista

Partindo-se da perspectiva de que os objetivos de um sistema devem ser entendidos como um estado ou uma situação das coisas cuja consecução é requisito para que o sistema possa se manter e reproduzir-se, pode-se afirmar, pelo menos para o escopo do presente estudo, que o sistema neocapitalista tem os seguintes objetivos:

a) o crescimento do consumo e do bem estar

Enquanto o capitalismo clássico se sustentava sobre a acumulação do capital necessário para o aumento da produção a custa de rigorosos sacrifícios do consumo e da maioria da população – a custa da exigüidade de salários, o que sob o ponto de vista social terminava por se transformar em exploração da classe trabalhadora em benefício de uma minoria de capitalista –, o neocapitalismo, ao contrário, tem por base o suposto keynesiano de que para haver crescimento da produção não se faz necessário diminuir o consumo dos trabalhadores, mas, fazer crescê-lo, na medida em que a produção está determinada pela demanda efetiva e esta, por sua vez, pela expansão das prestações sociais. Por conseguinte, não se trata tanto de explorar a massa dos assalariados quanto a massa dos consumidores por e no consumo, incitando-lhes, através de meios de propaganda, estimulando o consumo, mas a fim de que seja absorvida a maior produção possível.

O neocapitalismo exige, pois, bem-estar crescente, e, neste sentido, é correlativo com os fins do Estado social, uma vez que este, mediante sua função distribuidora e prestadora de serviços, contribui para o aumento do consumo.

b) o pleno emprego

No capitalismo clássico o desemprego ou “exército industrial de reserva”, era um dos riscos que, segundo Marx, um dos seus supostos fundamentais, na medida em que permitia a diminuição de salários ao nível mínimo gerando o processo de acumulação e reprodução do sistema, enquanto o  crescimento do consumo, típico do neocapitalismo, tem como suposto o pleno emprego.

Até mais ou menos 1975, os países desenvolvidos não apenas absorveram praticamente o desemprego, mas também, esgotadas suas forças de trabalho, tiverem que se valer da mão-de-obra estrangeira para tarefas mais penosas e que exigiam pouca instrução, com exceção dos Estados Unidos, que empregam para esse tipo de tarefa setores da população negra, pororriquenha e mexicana, e o Japão onde se constroem robots com capacidade de programação de acordo com as tarefas a serem levadas a efeito.

Assim, o desemprego era mais produto das condições conjunturais do que estruturais. Parece claro que a eliminação ou redução do desemprego constitui um ponto de incidência entre os objetivos do neocapitalismo e os do Estado social, e que a extensão dele pode aumentar os custos da política social estatal, ao tempo em que pára a recessão da demanda.

c) o crescimento constante

Outro elemento que caracteriza o neocapitalismo, ao lado do aumento permanente do consumo, é o crescimento constante da produção. As economias capitalistas, a partir de 1950 conseguiram taxas de crescimento anual até então desconhecidas, embora tenham, a partir de 1974, sofrido certa recessão. Mesmo assim, durante um determinado período se pode identificar os índices de bem-estar.

Entretanto, se é certo que o aumento da produção com a conseqüente expansão dos níveis de bem estar de certa forma significa ter mais, não é menos verdadeiro afirmar que isso significa estar melhor, pois não se pode negar que o aumento do alto capitalismo também trouxe grande custos sociais e políticos, especialmente no que se refere a exploração dos trabalhadores, bem como a radicalização da polarização da luta de classes. Por conseguinte, o crescimento do neocapitalismo também provocou altos custos existenciais como o agravamento do conflito entre gerações que vieram de contextos econômicos e culturais diferentes, a crescente dependência do individuo de sistemas sobre os quais não mantém nenhuma espécie de controle, a erosão das cidades que tiveram, inclusive, que suportar mão-de-obra estrangeira que pode causar conflitos culturais com os padrões dominantes em países anfitriões, terminando por gerar fenômenos correlativos de discriminações, racismos, entre outros, sem contar a devastação do meio-ambiente provocando o decréscimo e até mesmo a extinção de recursos naturais não renováveis que estão provocando em todo o mundo catástrofes naturais como secas, enchentes, tufões e outros fenômenos que dizimam vidas preciosas[23].

Assim, se por um lado, o neocapitalismo gerou muitos benefícios para a sociedade, por outro também tem sido fonte de muitos conflitos, daí o cuidado que se deve ter com as novas e cada vez mais sofisticadas tecnologias que o modelo neocapitalista implementa para alcançar o crescimento econômico. Por isso, e especialmente no atual estágio, o Estado deve ter como uma das suas funções capitais não apenas o impulso, mas também o controle e a orientação do crescimento, de modo a causar os menores custos existenciais, sociais e econômicos possíveis. E para que isso ocorra, o Estado social deve regular o crescimento tendo em conta não apenas critérios e valores econômicos, mas também, e especialmente, os sociais, de modo a que todos os que contribuem para esse crescimento possam ser destinatários dos seus benefícios, especialmente as camadas mais débeis que constituem quase sempre a maioria, nomeadamente nos chamados país periféricos, em desenvolvimento como o Brasil e outros da América latina.

5. A crise do Estado Social

O Estado social assume a responsabilidade de evitar e diminuir os desequilíbrios sociais, albergando, assim, uma ingente tarefa de redistribuição de rendas. Por conseguinte, constitui um elo da legitimidade entre as massas, a quem pretende assegurar mínimos de subsistência e bem-estar, mas ao mesmo tempo, lhe impõe responsabilidade e riscos de que, a partir de agora, torna-se o ponto principal de mira dessas mesmas classes que dele passam a cobrar novas e melhores condições de bem estar o que o converte em um ente político-administrativo onipresente.

Esse protagonismo estatal na diminuição dos desequilíbrios e disfunções sociais originários do capitalismo avançado, tecnológico e sua direta intervenção na distribuição da renda e na prestação de serviços sociais, terminam por permitir que as exigências de bem-estar por parte dos indivíduos se dirijam, cada vez mais, para os poderes públicos, inclusive através de medidas judiciais que lhes possam assegurar na prática aquilo que as normas legais e constitucionais prometem no campo formal[24], e não raro essas medidas encontram-se completamente dependentes da existência de recursos financeiros, às vezes nem mesmo previstos nos orçamentos dos entes públicos responsáveis concretos pela implementação prática das políticas públicas tendentes a alcançar tais escopos. Por conseguinte, a ausência de recursos financeiros e crise econômica também levam a outra crise: a crise de atuação social do Estado e como conseqüência, a outra ainda mais grave: a crise de sua legitimação, ao ter se tornado não apenas o principal protagonista, mas também o mais importante ponto da mira de quem se exige e a quem se atribui os fracassos e a insuficiências do sistema.

Assim, enquanto há crescimento econômico e alta arrecadação tributária, o Estado pode sofisticar-se, com serviços públicos cada vez melhores. Todavia, os problemas inerentes à economia e os eventuais erros de uma administração cada vez mais incontrolável, aumentam e muito, os riscos de dissenso e podem gerar o problema da despolitização e como conseqüência, de deslegitimação do próprio Estado.

Vale lembrar que a partir da década de 1980 o Estado do Bem-estar vem passando por uma acentuada crise, que segundo os observadores é resultante em boa medida das condições do mercado de trabalho, especialmente em virtude do alto índice de desemprego e da precarização das relações laborais nas empresas privadas, o que afeta sobremaneira o sistema de garantia do pleno emprego propugnada pelo Estado social. Por conseguinte, durante a década dos anos 80 e 90 o Estado do Bem-estar foi submetido a diversas correções, mas apesar disso, se mantém de certa forma sua estrutura com um grau de legitimação social com que os defensores do neolibelismo certamente não contavam. Durante a década de 80, por exemplo, no governo de  Margareth Thatcher, se tentou sua drástica reformação na Inglaterra. Todavia, a escassa diminuição dos gastos públicos durante sua gestão está a indicar que no plano prático houve mais retórica do que realidade em seu intento de reforma. Exemplos de experiências mais interessantes de transformação do Estado de Bem-estar  são as da França e da Holanda, onde foram alcançadas importantes modificações com base em medidas mais audaciosas com a redução da jornada laboral (na França) e um histórico acordo entre trabalhadores e empresários no caso holandês.[25]

De todo modo, as contínuas alterações nas relações laborais, aliadas as transformações econômicas e tecnológicas, além de outros fatores como o fenômeno da globalização têm levado a uma nova visão da função do Estado do Bem-estar, demonstrando que esse modelo se encontra em crise e por isso, já não tem mais a capacidade de proporcionar os mesmos bens e serviços que vinha proporcionando.

De acordo com a doutrina[26], as principais causas dessa crise são:

a) transformações na organização do trabalho: o pleno emprego e a estabilidade laboral deram lugar ao desemprego estrutural, e a precarização e a flexibilização das relações laborais. Suas causas se encontram, segundo essa corrente de pensamento, nos avanços tecnológicos, na globalização econômica e no incremento da competitividade, que provoca a diminuição das vantagens sociais, a flexibilidade organizativa em tempo e funções, e a diminuição dos direitos sociais adquiridos pela classe trabalhadora;

b) as mudanças demográficas, sobretudo pelas migrações e o envelhecimento da população, têm modificado as previsões entre cotizações, ingressos estatais, entre outros fatores, e demanda de necessidades sociais, sanitárias, educativas, culturais, etc;

c) os novos modelos de família, a incorporação da mulher ao mercado de trabalho, etc têm aumentado a demanda por prestações públicas e privadas suprindo as assistenciais familiares como o cuidado com crianças, enfermos, anciãos e outros;

d) a própria crise de legitimação do Estado incapaz de terminar com situações estruturais de pobreza ou exclusão, que em muitas ocasiões, costuma ser acusado de passividade e omissão ou ainda de manutenção de uma estrutura que perpetua estas desigualdades.

Além desses fatores, também se tem verificado uma crise fiscal, com um permanente e sempre crescente déficit econômico em face do aumento dos gastos em “políticas públicas” nem sempre eficazes, às vezes assistencialistas com objetivos eleitoreiros[27], que não são acompanhados do correspondente aumento da receita tornando o Estado ineficiente e ao mesmo tempo, dando ensejo a abertura de espaço à iniciativa privada resultando em processos de privatizações de algumas atividades que até então estavam sob a responsabilidade estatal, permitindo-se, a partir daí, uma espécie de desmonte do Estado com a assunção pela iniciativa privada de atividades e serviços que se encontravam sob a responsabilidade do poder público.

De acordo com Antonio Baylos Grau, citado por Zeno Simm[28], em razão do movimento neoliberal que sacode os dois lados do Atlântico nos anos 80, ocorreu uma mudança de orientação no sentido e na extensão dos direitos sociais, o que se verifica num contexto caracterizado “pela crise fiscal do Estado, o começo do desemprego em massa nos países industrializados e a crise dos mecanismos de intervenção estatal no mercado”, colocando o capitalismo numa escala mundial que alterou de forma fundamental o equilíbrio até então existente. Para ele, são usados, fundamentalmente, três argumentos para essa “reorientação ideológica” da questão:

a) a afirmação de que a derivação da proteção social da ação do Estado é incorreta e ineficiente;

b) prescindibilidade dos sindicatos e da própria lógica de ação coletiva para o funcionamento ordenado do sistema econômico-social e dos processos de desenvolvimento;

c) induzir uma crise na noção do Estado social que traz consigo uma reformulação das suas margens de atuação e das políticas de proteção social postas em prática.

Como se viu, muitos são os fatores da “crise do Estado social”, mas não parece haver dúvida que o fenômeno da globalização constitui um desses fatores, talvez o mais importante, na medida em que exigindo dos Estados a redução de seus gastos sociais com a conseqüente diminuição do Estado, termina por precarizar os investimentos em políticas públicas agravando o desemprego, flexibilizando e reduzindo os direitos sociais, especialmente os direitos laborais, o que termina por aumentar as desigualdades e a exclusão social.

Anota José Alberto Couto Maciel[29] que as conseqüências mais importantes de globalização são: a) evolução tecnológica e conseqüente desemprego; b) países com excesso de população, sem quase nenhum direito laboral; c) obtenção pelos conglomerados empresariais de redução de custos e aumento de produção com a exploração de mão-de-obra com reduzido valor salarial, quer pela crise de desemprego, quer pela crise populacional, ou seja, tem como pressupostos o favorecimento das empresas capazes investir, o que termina por priorizar o lucro, permitindo a livre importação, inclusive de supérfluos, com uma produção interna para exportação, protegendo o capital externo pelo país de origem. Com isso, produz inevitavelmente a redução dos postos de trabalho, precarizando as relações laborais e a seleção dos candidatos com discriminação em função da idade, raça, sexo, qualificação e submissão, com aviltamento do salário produzindo uma acirrada concorrência e, portanto, a melhoria da qualidade e da produtividade. Todavia, a concorrência e a produtividade exigem aumento do consumo e já não bastam apenas os apelos midiáticos porque dependem essencialmente do poder aquisitivo que vem dos salários e este, por sua vez do emprego que, desaparecendo, cria uma legião de excluídos aumentando a polarização entre ricos o pobres proporcionando levantes e lutas sociais em proporções jamais vistas, pelo menos na era moderna.

 

Como citar o texto:

LIMA FILHO, Francisco das C..O Estado Social: modelo espanhol e modelo brasileiro. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 150. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/teoria-geral-do-direito/866/o-estado-social-modelo-espanhol-modelo-brasileiro. Acesso em 31 out. 2005.

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