RESUMO

O presente trabalho foi desenvolvido a partir dos estudos desenvolvidos pelos filósofos brasileiros João Cruz Costa e Antonio Paim. Ambos são considerados um dos maiores estudiosos em matéria de história das idéias filosóficas no Brasil. Pretendemos com este trabalho contribuir para os estudos de História do Direito no Brasil. O objetivo deste trabalho é apresentar uma visão interdisciplinar sobre a escolástica e o processo civilizatório no Brasil. Para tanto, nas reflexões do tema ora em análise, abordaremos as três grandes áreas do pensamento humano: direito, filosofia e educação. Queremos demonstrar que o espírito cultural brasileiro, que foi se emancipando aos poucos da Metrópole, foi herdado de Portugal. Assim, vamos demonstrar que o Brasil, no início do processo civilizatório, herdou o pensamento escolástico de Portugal, já que a Colônia era uma “extensão” da Metrópole: o que se produzia em Portugal era simplesmente reproduzido no Brasil.

INTRODUÇÃO

O trabalho é dividido em quatro partes. Na primeira, vamos abordar a Escolástica enquanto centro de produção intelectual e jusfilosófica. Na segunda, vamos cuidar do processo civilizatório no Brasil Colonial e nossas origens portuguesas. Na terceira, vamos tratar da organização social no Brasil Colonial. E na quarta, falaremos sobre o período escolástico iluminista (De 1773 até o final do período colonial), onde temos Marques de Pombal como o maior incentivador das idéias iluministas.

1 SOBRE A ESCOLÁSTICA: centro de produção jusfilosófica.

A Escolástica pode ser entendida como o conjunto de doutrinas filosófico-teológicas[1] cultivadas nas escolas e universidades medievais. Os traços característicos da escolástica são os seguintes: a) pensamento dos gregos subordinado à teologia (o direito era pensado a partir da teologia, pois Deus é o seu fundamento); b) defesa da Igreja contra as instituições seculares; c) método lógico-formal.

Para os neoplatônicos do período de formação da Escolástica, tanto a vontade, como a razão de Deus, determinavam o justo, pois só “Deus é criador do Justo”. Daí serem chamados de voluntaristas.

Já a linha tomista é não-voluntarista, pois o que determina a justiça é a natureza das coisas e a natureza racional do homem. Nesse sentido, Deus é apenas conselheiro e guia do Justo. Esta visão é importante porque lança as sementes da secularização do direito natural.

Convém apontar as fases da Escolástica. Na primeira fase temos a escola franciscana antiga de São Boaventura, de interpretação neoplatônica e de cunho voluntarista agostiniana; na segunda fase, temos a nova escolástica dominicana de Tomas de Aquino, de interpretação aristotélica, que abandona a interpretação voluntarista, restabelecendo a Teoria de Aristóteles sobre a Justiça e valendo-se dos ensinamentos do Direito Romano. Na terceira, temos a nova escolástica franciscana de Duns Scoto (precursor do nominalismo). Esta última fase trata-se do período decadente da escolástica ou período de dissolução do escolaticismo. Tal período nasce junto com a Reforma e alcança principalmente os países que aderiram ao protestantismo.

Guilherme de Ockam, por exemplo, filósofo nominalista, abre as portas para uma concepção jurídica individualista, priorizando o indivíduo sobre o coletivo. Na visão ockaminiana o Estado e a Sociedade não existem de modo independente, pois dependem dos indivíduos para sua composição. Separa fé do conhecimento científico, pois algo pode ser cientificamente falso, mas teologicamente verdadeiro. Deus não se pode demonstrar através de meios científicos, sendo apenas uma questão de fé. Com isso Ockam lança as sementes para a construção do contratualismo e para o jusnaturalismo antropocêntrico de Grotius, Rousseau e Hobbes.

Na fase renovatória da escolástica temos a Escola Ibérica Renovada, com destaque para Francisco de Vitória, Francisco Suarez, Domingo de Soto, Luiz de Molina, Juan de Mariana, Gabriel Vazquez.

Este movimento de renovação da filosofia escolástica surgiu no séc. XVI em Portugal e Espanha como reação à reforma protestante. No campo político manifestou-se através o Concílio de Trento (1545-1563) e com a Fundação da Companhia de Jesus (1534-1540). No campo filosófico retomou as teses fundamentais da escolástica e buscou a restauração dos princípios do tomismo nas Universidades de Coimbra[2] e Salamanca, mediante os estudos e comentários das obras de Santo Tomás.

No campo jurídico tivemos a produção de juristas-filósofos, todos inspirados na autoridade de Santo Tomás de Aquino. Eles foram importantes para o Direito porque deram um tratamento inovador ao direito natural tomista; este direito natural tomista assumiu forma sistemática de uma teoria jurídico-teológica.

Francisco Suarez foi o principal sistematizador, pois dizia que o direito natural é, em princípio, imutável, podendo variar conforme as situações históricas diferentes. Criou a figura do Direito Natural preceptivo (formado pelas determinações imutáveis e eternas, independentes da decisão humana) e do Direito Natural dominativo, aquele que tem aspecto mais variável do que fixo e depende da decisão humana (livre arbítrio).

2 O PROCESSO CIVILIZATÓRIO NO BRASIL COLONIAL E NOSSAS ORIGENS PORTUGUESAS

Agora que sabemos o que é a escolástica e o que ela representava na época, vamos abordá-la no processo civilizatório colonial brasileiro. O termo processo pode ser entendido como seqüência de acontecimentos culturais promovidos no tempo e em dada civilização. O pensamento escolástico colonial apresenta, de acordo com a literatura mais exponencial, as seguintes etapas: a) período escolástico: do descobrimento até 1773 (“Instituições de lógica”); b) período escolástico iluminista: das “Instituições de lógica” até o final do período colonial.

Neste segundo período, o Brasil, de certa forma, afastou-se timidamente da tutela intelectual de Portugal. O espírito da sociedade colonial, a visão de mundo do homem, valores e sentimentos começam apresentar algumas alterações.

2.1. A cultura intelectual portuguesa

De certa forma o pensamento português dos Séculos XIII ao início do séc. XVI era um pensamento mais ligado à ação, do que à especulação e se diferenciava do pensamento dos demais países da Europa. Os Descobrimentos Marítimos aproximou o homem à natureza. Na era dos descobrimentos o pragmatismo e o cientificismo foi determinante para que Portugal se lançasse além mar. No entanto, com a contra-reforma o espírito pragmático fora substituído pelo ideal contemplativo e de aspirações extraterrenas (metafísica).

No reinado de D. João III – início da colonização do Brasil e do processo civilizatório na Colônia de Exploração - os Jesuítas foram chamados para a Universidade de Coimbra.

Portugal se afasta do movimento científico europeu do XVII, porque, como já foi mencionado, reagiu face à eclosão da reforma protestante.

O ensino dos Jesuítas quebrou com a tradição científica em Portugal (de espírito pragmático e empírico), o que produziu uma regressão no ensino. Os jesuítas tornaram-se os “donos do saber”, e este se converteu em erudição livresca, isto é, em mera imitação servil do classicismo.

Na parte especulativa, propagavam de modo autoritário as doutrinas de Aristóteles e as humanidades clássicas.

O humanismo renascentista foi abafado, o que representou um retrocesso para Portugal e Espanha, já que ele trazia consigo a possibilidade de novas concepções da filosofia natural.

Com os jesuítas no comando a cultura filosófica portuguesa adormeceu no comentário teológico e a influência jesuítica fechou Portugal à revovação científica. O ensino dos jesuítas era um ensino que prezava pela retórica, pelo gramaticismo, pelo formalismo e pela erudição livresca.

Transmitiram ao Brasil Colonial um humanismo anacrônico, de base erudita e de tendência dogmática. Os métodos de ensino não foram renovados, sendo que as questões eram reduzidas na obrigatoriedade do texto e na escravização ao já conhecido.

Assim, os jesuítas afastaram Portugal das correntes modernas e toda preocupação do séc. XVII volta-se para a renovação da escolástica.

No campo do Direito, no início do processo civilizatório, o Brasil herdou o pensamento jurídico da escolástica ibérica. Não “importamos” as idéias nominalistas de um Scoto ou de um Guilherme de Ockam, pois elas representavam uma ameaça à igreja católica apostólica romana. Também não herdamos o espírito do humanismo renascentista, que trazia consigo a possibilidade de desenvolvimento de novas concepções baseadas na filosofia natural.

Portanto, com a Reforma Protestante, Portugal se fechou para o movimento científico europeu.

Os portugueses tinham medo dos possíveis abismos que o nominalismo e a revolução científica poderiam abrir. Já vimos que a visão de mundo do homem Português da Era dos Descobrimentos era pragmática. O homem português era movido pelo sentimento do útil e do imediato, pois se buscava mais o fato do que a sua interpretação, o que era natural face ao espírito de aventura e da “sede” do descobrimento de outros mundos além mar. Assim, antes da contra-reforma, o pensamento português foi marcado por um espírito “terra-a-terra”. Contudo, com a contra-reforma tudo mudou!

Vale registrar que o homem português da Contra-Reforma, por sua vez, era contraditório; uma batalha havia no seu interior: entre o homem do espírito crítico e o homem da Idade Média, entre a idéia do livre exame e a idéia da autoridade; entre as obras dos criadores e as obras dos comentadores. Era confuso, cheio de incertezas, ser em conflito. Diferente da visão de mundo renascentista-racionalista onde tudo era mais estático e equilibrado.

Toda a instabilidade fora repercutida na literatura da época. Enfocava-se o sobrenatural; a morte, como expressão máxima da efemeridade das coisas; a fugacidade da vida e das coisas; castigo; heroísmo; o tempo, visto como agente da morte e da dissolução das coisas; misticismo; cenas trágicas e pessimismo.

No Século XVII, temos a obra de Diácono Lotario de Segni em O Desprezo do mundo (De contemptu mundi) como prova disso. Nesta obra, Lotario revela total desprezo pela condição humana, colocando o homem abaixo dos vegetais[1]. Já o Renascimento reivindica a dignidade e a excelência do homem.

3 ORGANIZAÇÃO SOCIAL E AS ORDENS RELIGIOSAS: questões pedagógicas

No Rio de Janeiro, no Pará, na Bahia, em São Paulo, as ordens religiosas estabeleceram suas instalações desde os primeiros anos da história colonial. Desses estabelecimentos saíam os primeiros letrados brasileiros, aqueles que, à janela do Atlântico, esperavam pelo navio que lhes traria livros e idéias da Europa.

No começo do século XVII o Brasil tinha 50 mil habitantes. Em 1780, 3 milhões. Não havia Universidades. Contudo, no século XVII (final) e XVIII o Brasil já era dotado de centros urbanos e com iniciante vida intelectual.

Os jesuítas, até a sua expulsão, mantinham 17 instituições de ensinos, afora escolas para meninos; os cursos eram de ensino médio de tipo clássico. Forneciam razoável formação cultural (razoável porque defesada face às inovações científicas que eclodiam na Europa).

Apenas na Bahia e no Rio de Janeiro ministrava-se o Curso de Artes (intermediário entre humanidades e superiores); a carreira eclesiástica exigia curso superior de Teologia – Colégio Central da Bahia.

Para aqueles que não se destinavam ao sacerdócio, não havia outra opção: o caminho era ir para as Universidades da Europa.

Desde o século XVII, muitos estudantes da colônia partiam para Coimbra. Portanto, os jesuítas lançaram os fundamentos do ensino no Brasil.

No Brasil Colonial havia além dos nativos, os proprietários e os herdeiros das terras doadas pelo Reino de Portugal: as Sesmarias. Com a evolução no campo da economia, o Brasil no séc. XVII tornou-se o maior fornecedor de açúcar do mundo, enriquecendo os Senhores dos Engenhos.

Nos fins do século XVII e início do século XVIII, a Colônia começa a apresentar uma imberbe estrutura burocrática nos moldes da estrutura do Reino, sendo que quem comandava a aparelho institucional eram os filhos dos Funcionários do Reino de Portugal. No ciclo do ouro, a estrutura já estava bem melhor estruturada.

A primeira manifestação de cultura intelectual no Brasil, portanto, foi marcada pelo humanismo jesuítico. O que se pensava em Portugal (nos Colégios), pensava-se da mesma forma no Brasil.

Assim, nossa cultura filosófica era simples reprodução daquilo que se pensava em Lisboa, já que o Brasil era uma extensão de Portugal. No Rio de Janeiro, na Bahia, no Pará, a Companhia de Jesus manteve imitações do Colégio das Artes de Coimbra, onde se ensinava filosofia, teologia, humanidades e direito canônico.

Em 1572 já se conferia nos colégios o grau de bacharel e de mestre em artes. Em todos estes colégios, assim como nos seminários, ensinava-se, naturalmente, a filosofia escolástica.

4 O PERÍODO ESCOLÁSTICO ILUMINISTA (DE 1773 ATÉ O FINAL DO PERÍODO COLONIAL)

A notícia da Revolução Norte Americana e Francesa, com suas idéias políticas e filosóficas penetraram no Brasil. A censura Portuguesa, por conta da “invasão” das idéias liberais, em pleno século XVIII, levou o Governo Português, por pressão da Igreja, a tomar certas medidas drásticas contra aqueles que liam obras dos filósofos iluministas. Muitos leitores foram presos por praticarem o crime de enciclopedismo.

Ocorre que neste período a civilização brasileira passou a ter contornos mais regionais, já que o cenário cultural era até mais rico se comparado à Metrópole na visão de certos historiadores. A Colônia não apenas se diferenciava da Metrópole, como se tornava gradualmente mais rica. O desenvolvimento econômico da região mineira deu margem, depois de 1750, à edificação de uma civilização luxuosa, cujos restos monumentais ainda hoje se erguem. A rica Ouro Preto deixa vestígios deste período. Entre os traços mais altos e requintados da civilização mineira estavam a qualidade de sua vida intelectual, embora o pensamento não estivesse totalmente desvinculada da Metrópole.

Fato marcante na história, é que João V, a partir de seu reinado, começou a se opor aos jesuítas.

Convenceu-se de que da escola dos jesuítas não podia manar a fonte da verdadeira instrução; Estabeleceu um seminário de literatos e eclesiásticos, que na capital dos seus estados se ocupasse da instrução e da educação da mocidade. Apoiou a Congregação do Oratório (de São Felipe de Nery) que, diga-se de passagem, passou a combater à influência pedagógica e cultural dos jesuítas.

Os Colégios dos jesuítas eram o núcleo principal da intelectualidade colonial até as reformas empreendidas por Pombal. Quando foram expulsos, o pensamento nacional sofreu algumas mudanças. O interesse passou a ser voltado para a formação científica e para as idéias políticas trazidas à baila pelas Revoluções Americana e Francesa.

 Portanto, o período escolástico iluminista passou a ser marcado pela “revolução das idéias”, tendo Marques de Pombal como o maior incentivador das idéias do Iluminismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os jesuítas exerceram um importante papel na divulgação do ensino no início do processo civilizatório brasileiro. Contudo, o ensino que transmitiram aos primeiros letrados brasileiros era muito anacrônico e distante do movimento científico, já que com a contra reforma, Portugal praticamente se fechou para as inovações liberais e iluministas, enquanto que a Europa amadurecia cultural e filosoficamente. Logo, a contra-reforma afastou Portugal do movimento científico que agitava a Europa. No campo do direito, o Brasil Colonial recebeu toda a influência do pensamento jurídico escolástico português, e como prova disso, com o intuito de não desagradar a Metrópole, Tomás Antônio Gonzaga edita pela primeira vez na história brasileira o Tratado de Direito Natural, obra do século XVIII dedicada ao Marques de Pombal, que mistura elementos do pensamento jurídico escolástico com certas idéias do iluminismo. Há quem considere esta obra como inédita no campo da filosofia jurídica brasileira.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

COSTA, J. Cruz. Panorama da História da Filosofia no Brasil. 1ª edição. São Paulo: Cultrix, 1960.

PAIM, Antonio. História das Idéias Filosóficas no Brasil. 1ª edição. São Paulo: Grijalbo/Edusp, 1967.

Notas:

 

 

[1] PAIM, Antonio. História das Idéias Filosóficas no Brasil. 1ª edição. São Paulo: Grijalbo/Edusp, 1967, p. 35.

(Texto elaborado em novembro de 2005)

 

Como citar o texto:

BRAY, Renato Toller..O processo civilizatório no Brasil e a escolástica: questões de História do Direito. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 153. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/teoria-geral-do-direito/912/o-processo-civilizatorio-brasil-escolastica-questoes-historia-direito. Acesso em 21 nov. 2005.

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