Segundo Kelsen direito é norma, e apenas norma do ponto de vista da mera formalidade, dotado em si de próprias faculdades de validade, sendo estas responsáveis pela sua aplicabilidade imediata, sem elementos intermediadores que lhe revistam de validade, posto que sua validade advém da sua própria existência, cabendo à capacidade coativa estatal auferir-lhe o requisito da eficácia.

Nesta vertente em que o ilustre mestre de Viena apresenta o direito, não faz ele distinção entre “norma” e “faculdade”, ambos mediados pelo valor que é dado ao evento a ser abrangido pelo direito, de tal modo que, para Kelsen, direito é o pressuposto que deve ser aplicado pelos juízes, tal e qual uma realidade que opera por seus próprios meios, gerando, no mundo fático, através da intervenção coercitiva do Estado.

Via de conseqüência, o doutrinador vienense busca um reducionismo axiológico entre o objeto e sua essência, posto que para ele basta apenas e tão-somente a existência da norma (do ponto de vista metodológico) para que exista no mundo fático a necessidade de aplicá-lo, sendo certo que uma interação entre ambas seria desnecessária, já que cabe ao Estado aferir se as postulações suficientes e necessárias para a aplicabilidade imediata desta norma.

Pois bem. É aí que se nos apresenta uma questão um tanto quanto nebulosa: para Kelsen o direito pode (dever/ser) válido, sem no entanto ser justo, já que justiça é um elemento sensorial de ordem subjetiva e irracional e não se coaduna com a lógica exigível pela ciência.

Assim, o ser e o dever ser confundem-se, para Kelsen, em uma mesma tipologia e o direito posto é o direito do soberano, valendo dizer que é o direito do mais forte – daquele que detém o poder pela força – e com ele institui o conjunto normativo necessário para perpetuação da condição soberana de quem controla o poder, inclusive com a validação que este sistema normativo lhe proporciona.

Todavia, os juízes não podem sentir-se atrelados a este pressuposto em comento, até porque ao dizerem o direito o fazem sob a forma de manifestação livre de suas consciências em consonância com a norma vigente. É a jurisprudência que exsurge como elemento válido do direito pressuposto face ao direito posto, com a intervenção dos elementos de cognição que se impõe ao magistrado na sua tarefa de dizer o direito e, por via de conseqüência, operar a “justiça” em consonância com o sistema vigente.

Não se trata, portanto, de um mero trabalho de comparação entre o que existe e os elementos que a jurisprudência dispõe ao juiz, mas sim um juízo de valor que condiciona o fato (evento) ao direito, objetivando a concretização não apenas do sistema normativo, mas também ao controle social que pressupõe que seja feita justiça de forma concreta.

O reverso da medalha propõe que este direito positivado pelo poder encontra o seu próprio reflexo no direito imposto pela força ou mesmo pelo estabelecimento social existente, posto que não exige qualquer resquício de moralidade excessiva ou de falso pudor que o intimide de alguma forma (ainda também porque pode ser considerada subjetiva e irracional, conforme nos mostra Norberto Bobbio), e faz, por seus próprios fundamentos razão de ser e de existir, eliminando a possibilidade de acreditar-se no enunciado do Contrato Social proposto por Jean Jacques Rousseau e, de outra forma, validando a possibilidade de existência de sistema totalizantes, opressores, violentos ou mesmo ditatoriais.

Ademais, os perigos iminentes da neutralidade axiológica, bem como o abuso da dogmática na sistematização do direito geram um formalismo excessivo, criando uma norma impositiva de comportamento obrigatório, engessando o ordenamento jurídico que se torna única e exclusivamente coerção e não faculdade do indivíduo, que se curva ante a vontade emanada pelo legislador, cuja base é o princípio dinâmico da própria norma do qual emana todo o ordenamento jurídico.

Via de conseqüência, temos uma limitação dada pelo ordenamento jurídico às ações, liberdades e garantias inerentes ao indivíduo, limitação essa que se confunde com a própria e devida limitação do Estado que acaba por se revestir de poder excessivo e assegura a conservação no poder do grupo social dominante (estabelecimento), invertendo a função estatal em seu próprio benefício, em qualquer preocupação com os demais integrantes da nação, servindo esta como instrumento de controle social.

A pior resultante que se poderia ter é a formação de Estados Totalitários, no qual o poder se concentra na figura de um líder absoluto que elabora, aplica e faz cumprir leis que somente interessam aos seus objetivos pessoais, objetivos esses que foram cuidadosamente cultivados por um extenso trabalho de convencimento da maioria que estará em seu favor sempre que este líder tomar uma decisão que lhe agrade ou atenda aos interesses que ele designa como gerais. O ilustre mestre de Viena, infelizmente, sentiu na própria carne o efeito mais funesto de sua teoria: a formação e fortalecimento de sistemas político-jurídicos cuja supremacia encontrava-se plenamente apoiada pela força; força esta que emana do próprio sistema e dele de alimenta, inexistindo quaisquer possibilidades de resistência, posto que eventuais manifestações contrárias são reprimidas pelo uso da força.

Ademais, a figura do próprio Estado se confunde com a figura – sempre carismática e idolatrada – do líder que com seu poder de convencimento, conduz o povo qual o pastor faz com suas ovelhas, de tal forma que o líder e o Estado são a mesma entidade, o que pouco se diferencia da figura do ditador, a não ser por uma mera questão de grau de aplicação e uso da força, sendo certo que o líder, diferentemente do ditador, consegue permanecer mais tempo no poder, já que sua enorme capacidade de convencimento resulta em efeitos mais duradouros que a força que emana do ditador.

Esta breve análise do sistema positivo do direito não quer ser pretensiosa ou mesmo tendenciosa, apenas busca evidenciar o que a experiência histórico-social já largamente demonstrou de forma lúcida e real. É a estrutura sócio-política que dita as regras aplicáveis ao sistema que deve manter-se em equilíbrio para o bem-estar da classe dominante; ressalte-se que esta afirmação não possui qualquer carga ideológica na exata medida em que se sabe muito bem que, desde o fim da idade média, com o advento da elevação da classe burguesa, os sistemas, político, social e ideológico foram orientados de forma a propiciar a manutenção do almejado equilíbrio de poder que sustenta uma oligarquia privilegiada como centro do poder. E assim não poderia ser diferente com relação ao sistema positivo que nada mais é que a confirmação dos interesses deste grupo que se mantém no controle indefinidamente, beneficiados por um sistema positivo que é por eles próprios alimentados.

Gostaríamos de enfatizar que o presente trabalho não possui qualquer vertente ideológica, ou mesmo política, pois seu objetivo primordial é apenas elaborar pequena digressão acerca das idéias estudadas pelo insigne mestre de Viena que, debruçando-se de forma dedicada e obsequiosa sobre o estudo da ciência do direito, formulou postulados que até hoje são a base mais larga para estudo e aplicação do direito positivo, de tal modo que os resultados que hoje temos como válidos foram fruto da própria evolução da raça humana e, diferentemente do que pensavam os jusnaturalistas do início do século, o direito não consiste apenas e tão somente em um fato socialmente considerado, mas sim uma ciência cuja exatidão depende unicamente do foco com que se analisa seu objeto.

O objeto da ciência do direito não é o fato jurídico em si considerado como querem os mais arraigados estudiosos do assunto; o verdadeiro objeto da ciência do direito é o comportamento e a alma humanas, que assim tomados não possuem uma estrutura definida, exata, mas variações, muitas vezes sutis, muitas vezes redundantes, muitas vezes inócuas, mas sempre revestidas de pleno sentido, requerendo de seu estudioso o afinco e a dedicação necessárias para entender, ou melhor compreender essas nuances e dela extrair não a melhor solução, mas sim aquela mais adequada ao caso concreto de forma a possibilitar a manutenção do sistema vigente, bem como responder de forma mais satisfatória ao anseio popular que nada mais é que o eco do próprio sistema.

Por derradeiro, mas sem tomar a ousadia de querer esgotar o tema, enfatizamos que o direito positivo precisa manter-se não por si próprio, posto que seria uma utopia sem qualquer sentido. O sistema positivo precisa manter-se para manter a sobrevivência do tecido social impossibilitando a ocorrência de rupturas que possam vir a tornar-se feridas incuráveis que nem mesmo o mais dedicado cientista poderia ser capaz de recuperar. As experiências recentes mostraram que tais rupturas acabam por desaguar na desconstituição do sistema com a conseqüente quebra do equilíbrio, cujas conseqüências são por demais desastrosas. O estudo do direito mostra-se, então, como realmente deve ser encarado: um trabalho hercúleo, sem fronteiras, com mais decepções do que sucessos e cujos resultados não podem ser medidos ou mesmo pontuados, apenas considerados como mais um dia que se vai e nos proporciona a oportunidade de continuar. O importante é que nunca desistimos.

(Elaborado em janeiro/2006)

 

Como citar o texto:

TROVÃO, Antônio de Jesus..Kelsen: uma breve análise das teorias do mestre de Viena. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 160. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/teoria-geral-do-direito/982/kelsen-breve-analise-teorias-mestre-viena. Acesso em 9 jan. 2006.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.