O ordenamento jurídico abarca uma multiplicidade de subsistemas legais que recebem do entorno sócio-cultural distintas formas de vínculos sociais relacionais sobre os quais tratam de disciplinar normativamente, chegando às vezes a proposições contraditórias e dando lugar a conflitos valorativos no que se refere a uma adequada consecução da justiça. Um exemplo parece ser a situação dos enunciados normativos que regulam as relações familiares , em que convivem as aspirações sociais por um tratamento mais igualitário e a sombra de uma perversa e por vezes dissimulada discriminação que em alguns casos (como o que tratamos aqui) caracteriza este tipo de relação.

Tendemos hoje a ver essas relações como puramente privadas, porque o liberalismo do XIX – não há liberalismo propriamente dito antes do XIX – nos acostumou a ver a esfera privada como esfera completamente despolitizada, isto é, como uma esfera na qual não se dão relações de poder de nenhum tipo. Mas é precisamente isso o que está agora de novo em disputa, isto é, que a relação entre os cônjuges, entre companheiros do mesmo sexo, entre o empregador e o empregado, entre o consumidor e as empresas, etc., seja efetivamente relações puramente privadas em sentido liberal, quer dizer, vazias de poder e, portanto, apolíticas, insuscetíveis de transformação, proteção e intervenção político-estatal.

Uma concepção republicano-democrática distingue, claro está, a esfera privada da pública (afinal, foi o republicanismo que inventou a institucionalização dessa distinção e forjou os primeiros instrumentos jurídicos para defendê-la e promovê-la), mas não admite que a esfera privada esteja livre de política, nem sequer, inclusive, de algumas de suas mais dignificantes esferas: a da entidade familiar.

Desde esta perspectiva pode-se perceber, em seu sentido mais radical, o significado mais profundo da celebríssima sentença de Aristóteles, trivializada até tornar-se praticamente incompreensível: que o homem é um “animal político” quer dizer que todas as suas relações sociais – incluídas as relações consigo próprio – são potencialmente políticas, são relações de poder, de autoridade, de governo. Quer dizer que o homem é um animal social, que só socialmente se constitui como indivíduo separado e autônomo, e que a vida social – em qualquer de suas esferas – está repleta de assimetrias e desigualdades, de relações de poder.(Atahualpa Fernandez, 2002).

Assim que a liberdade política de governar e ser governado, a liberdade – “política” também – de governar a própria vida, são condições necessárias da individualidade, de um existir separado e autônomo. Dizendo de outro modo, se parece razoável supor que podemos dispor conscientemente sobre nossas vidas ao menos em alguns aspectos, a garantia da liberdade para controlar as condições dos vínculos sociais familiares que estabelecemos ao longo de nossa existência tenderá a incrementar a formação da própria individualidade e, conseqüentemente, de nossa liberdade plena e de uma razoável igualdade material. Se, ao contrário, permitimos que sejam os demais que controlem tudo, desperdiçamos a oportunidade de ser nós mesmos e de atuar com autonomia segundo nossas melhores preferências e desejos.

Esta última parece ser a atual situação das relações familiares no panorama sócio-cultural nacional, em especial o relacionado com os homossexuais.

Neste particular, a garantia de uma adequada igualdade material nas relações familiares passa, antes de tudo, pela necessidade de ir mais além, não só da denominada liberdade negativa, senão também da positiva: se necessita de um aparato normativo e institucional que imponha ao Estado e a cada agente social em particular a obrigação de assegurar e de promover a (plena) liberdade dos cidadãos (no caso, os homossexuais), a fim de possam dispor dos meios indispensáveis para se autoconstituirem como entidade separada e autônoma, e que , em igual medida, garanta-lhes a plena capacidade para resistir a toda e qualquer interferência arbitrária em seus planos e oportunidades de vida.

Em realidade, já faz algum tempo que, sobre essa delicada questão, se rebaixou o nível do social, do ético e do esteticamente tolerável. A extrema e dissimulada discriminação de que padecem esses indivíduos está fazendo com que os vínculos sociais relacionais familiares que estabelecem pareçam uma situação instável, pervertida, reprovável e feia. E isso é mau ao menos pelas seguintes razões de conseqüência: primeiro, porque torna extremamente vulnerável, e em grau diverso, essa amplíssima capa subalterna da sociedade. E com a vulnerabilidade vem a dependência, com a dependência a falta de liberdade e com a falta de liberdade, em grau diverso, a condição servil e a perda do auto-respeito.

Segundo, porque põe em mãos de uns poucos agentes sociais poderes e recursos desmedidos que podem direcionar e condicionar as escassas garantias legais do lado de seus interesses privilegiados, socavando assim toda esperança de democracia real e quebrando a igualdade social e política que deve cimentar o ideal de cidadania. Finalmente, a discriminação e a desigualdade extrema de que ainda padecem esses indivíduos no âmbito familiar quebra a comunidade, rompe os laços de fraternidade e desata, de um lado, a cobiça de uns poucos e, de outro, quando não a inveja e o ressentimento, sempre ao menos a frustração, e muitas, muitas vezes, a angústia e o desespero de muitos.

Pese a estas razões – que por si já seriam bastante para se insistir em uma estratégia de combate contra toda e qualquer forma de discriminação relativa a preferência sexual de cada um - não faltam as dissimuladas justificações da desigualdade. Trataremos apenas de duas. A primeira delas vem a dizer que a gente tem o que merece. Assim, por exemplo, como o heterossexual merece sua família estável e legalmente regulamentada, prêmio por sua natureza “normal”, o homossexual – por sua condição “contra natura” – merece o seu oposto destino social. Afinal, não cabe à sociedade tolerar e ao Estado regular situaçoes “patológicas” que agridem a “natureza humana”.

Esta justificação meritocrática da desigualdade é tão demagogicamente falsa como certo é o fato de que ninguém merece moralmente nem seu azar genético nem seu azar social, de por si muito desigualmente distribuídos. Ninguém merece moralmente a família que lhe tocou, por sorte, nascer (rica ou pobre, decente ou depravada) e nem, tão pouco, as oportunidades – favoráveis ou não – que essa família possa vir a brindar-lhe. E o mesmo cabe dizer dos traços pessoais ou dos talentos – poucos ou muitos - com que um determinado indivíduo vem ao mundo: ninguém os merece moralmente. Se é verdade que a justiça aspira a contra-arrestar os caprichos do azar – social e genético –, pouco justo será permitir que os indivíduos gozem sem regras nem freios de seus imerecidos diferenciais de oportunidade que esse azar lhes põe de bandeja. A distribuição das dotações sociais e genéticas – como não deixou de advertir John Rawls – correspondem a um ativo comum da sociedade, ainda que somente seja porque é a sociedade quem as premia e valora ou porque somente em seu seio podem ser exercidas.

A outra mais comum justificação desse tipo discriminação e desigualdade a converte no necessário preço da liberdade. Em um mundo regido pelo livre mercado e assentado no sacrossanto princípio da liberdade de eleição, um Estado intervencionista poderia impor políticas redistributivas e regulamentações igualitaristas, mas somente o lograria a base de cercear essa mesma liberdade individual, a base de recortar e limitar a opções sobre as que se pode exercer essa “intocável” liberdade contratual e de eleição.

Este argumento é tão demagogicamente falso como certo é o fato de que a desigualdade e a discriminação implicam elas mesmas uma falta de liberdade, tanto mais profunda quanto mais dramática seja essa desigualdade e discriminação. Porque falta de liberdade – de decidir, de fazer e ainda de rechaçar e resistir – é a que (ainda) padece o homossexual que suporta o estigma social da dependência de valores arcaicos e paroquianamente espúrios. Falta de liberdade, enfim, é o que padece aquele que vive (ou sobrevive) com a permissão de outro. Por onde se vê, o mundo da família no contexto sócio-cultural brasileiro, porque distribuí de forma tão grosseiramente desigual as opções e as oportunidades que deveriam ser asseguradas ao coletivo homossexual, padece ainda de um profundo e crônico problema de falta de liberdade.

Por certo que a discriminação e a desigualdade têm muitas causas, mas a principal seguramente há de buscá-la no atual modelo normativo-institucional no qual ainda seguem imperando entre as altas instâncias da hierarquia dominante brasileira os esquemas que relacionam de maneira estreita as consequências civis do matrimonio às religiosas. Daí que a batalha - até agora duramente perdida - contra essa extrema e perversa forma de desigualdade social e discriminação passa por buscar-lhe alternativas a este tipo de vínculo social relacional vigente, alternativas de tipo social-republicano, alternativas que permitam a esses discriminados cidadãos recuperar o controle democrático sobre as decisões que se referem aos direitos e deveres que decorrem de suas relações sociais e, dessa forma, e em igual medida, recuperar o controle sobre suas próprias vidas, isto é, sua verdadeira autonomia.

Neste particular, como se verá a seguir, parece-nos que a melhor maneira de se viabilizar uma postura ético-crítica verdadeiramente transformadora do status quo dessa forma de desigualdade e perversa discriminação deve começar por um juízo formulado a partir de uma adequada interpretação dos princípios, valores e normas consagrados na Constituição da República, adotando a perspectiva das próprias vítimas sociais dessa forma de discriminação, isto é, daqueles que ainda se encontram nesta parte mais escura da vida, “no pior de todos os mundos possíveis”, para usar a expressão de Schopenhauer. É que quando a injustiça não é oportunamente eliminada pelo legislador, corresponde ao operador do direito o dever e a coragem de deixar de efetivá-la em sua tarefa de dar “vida hermenêutica” ao direito positivo.

De forma abreviada, cabe ao Poder Judiciário o dever ético de elevar à categoria universal e incondicional de garantidor de uma igualdade material (ainda que aproximada) e de não discriminação o princípio ético segundo o qual se deve procurar atuar de tal maneira que as conseqüências de nossas ações sejam sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a miséria e a infelicidade humana: isto é, que não se produza sofrimento quando é possível preveni-lo, e aquele que é inevitável se minimize e grave com moderação aos membros individuais da sociedade, aos cidadãos.(Atahualpa Fernandez , 2006)

Afinal, viver bem, eticamente, significa estar e se preocupar com os outros, ser um entre os outros dentro de um quadro institucional que nos afirme na condição de cidadão: o homem completo, ética e responsavelmente comprometido com a igualdade social, é o cidadão virtuoso, que combina a procura da felicidade pessoal com a exigência interpessoal da amizade e da solidariedade social, sob a égide de instituições justas.

Assim, enquanto para uma consciência cúmplice do sistema, as vítimas são um momento necessário, inevitável, um aspecto funcional ou natural do contexto sócio-cultural, para uma consciência atuante crítica e responsável, que só pode existir a partir de uma posição ética comprometida, as vítimas são reconhecidas como sujeitos éticos, como seres humanos que não podem (de forma livre, inviolável, autônoma e digna) produzir, reproduzir ou desenvolver suas vidas em comunidade, que foram excluídos da participação na discussão democrática e que são afetados por alguma situação de intolerável morte existencial.

Antes do que buscar a “felicidade”, trata-se, simplesmente, de situar toda e qualquer atuação social ou institucional no sentido de impedir o sofrimento e a miséria da maior quantidade possível de indivíduos ou, de forma positiva, de saber ouvir a voz do discriminado ou de abraçar uma igualdade que abranja os homossexuais em suas relações familiares . E a infelicidade, mais exatamente a aspiração de todo ser humano de não se ver exposto ao sofrimento, não só pode ser universalizada - o que para todos os homens significa infelicidade se pode mencionar em concreto: enfermidade, padecimento físico, discriminação, dor, pobreza, fome, carência de oportunidades etc. - como somos os únicos seres viventes que estão cognitivamente dotados da capacidade para poder remover (consciente e intencionalmente) o sofrimento e as desvantagens evitáveis.

Com efeito, o êxito ou o fracasso de toda e qualquer política de combate à desigualdade social e discriminação na família depende em grande medida do modo como as instituições que governam a vida pública sejam capazes de incorporar esse princípio ético nas estratégias de suas respectivas atuações. Compreender a situação daquele que se encontra em condição menos favorável parece ser o melhor caminho para que se possa formular um desenho institucional e normativo que, reduzindo o sofrimento humano, permita a cada um viver com o outro na busca de uma humanidade comum.

Dizendo de outro modo, parece seguro afirmar que o mais alto mandamento de uma ordem justa (livre e igualitária) consiste na supressão ou redução do máximo possível de miséria e sofrimento desses indivíduos em seu conjunto. É necessário, na práxis jurídica, que nos situemos no lugar do outro para reconhecer que cada um de nós não é mais que um ser entre outros, todos os quais têm desejos e necessidades que lhes importam, o mesmo que a nós nos importam nossas necessidades e desejos. Que somente situando-se desde o ponto de vista dessas vítimas sociais será possível representar o sentido e a função da justa igualdade social como unidade de um contexto vital, ético e cultural: da vítima, ponto de partida e chegada da atuação institucional e social, desenhada para a cooperação, o diálogo e a emancipação.

Que é de todo legítimo o reconhecimento de direitos que até agora tem sido negados a um coletivo humano concreto de nossa sociedade. Mas antes de tudo, é um reconhecimento a um direito universal, ao direito à igualdade de todos os seres humanos para que possam fazer uso de sua liberdade e viver da forma que creiam mais conveniente , tendo como único limite a liberdade dos demais. Não se trata, pois, de um simples reconhecimento aos direitos de uma minoria senão da consolidação de um sistema de liberdades que se fundamenta no respeito e desenvolvimento dos direitos humanos como norma para a convivência social. Um sistema que, pouco a pouco, se vem reconquistando, ou implantando, nas sociedades modernas desde a recuperação da democracia.

Apenas assim essas vítimas sociais terão a oportunidade para emancipar a si mesma em uma sociedade “livre, justa e solidária”. Enquanto viverem na miséria, sob o manto perverso da mais bárbara e injustificada discriminação, dignidade humana, liberdade, igualdade e cultura, não são para elas sequer meras possibilidades humanas. E que nós tenhamos notícia, aos alienados e explorados, aos famintos e sedentos, aos discriminados e excluídos, direitos humanos somente pode aparecer-lhes em forma de discursos acomodados e maculados pela mais vil e dissimulada ineficácia. Por conseguinte, até que os “mais desiguais” não sejam liberados de sua miséria e sofrimento, todo e qualquer discurso sobre cidadania e justiça não passará de mera retórica dessorada e vazia de conteúdo.

Essa parece ser a “solução” ético-jurídica para a desigualdade social e a discriminação de que ainda padecem os homossexuais em suas relaçoes pessoais e familiares , para dizer o mínimo.

 

Como citar o texto:

FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Manuella..Homossexualismo, liberdade e discriminação. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 171. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/cronicas/1142/homossexualismo-liberdade-discriminacao. Acesso em 26 mar. 2006.

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