1. DO CONCEITO DE DOAÇÃO

            O artigo 538 do Código Civil preceitua, in verbis: “considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”.

Analisando o referido dispositivo, já é possível notar, conforme muito bem observa Fábio Ulhoa, uma imprecisão legal (“contrato em que (...) transfere do seu patrimônio” – grifo nosso) porque a doação, de per si, não transfere o domínio da coisa; é sim, a tradição que o faz. Para ele, o texto do Código Civil dá a entender que a doação é um contrato real, quando, na realidade, é consensual (vide classificação do contrato de doação a seguir). Sugere o referido autor, então, que o contrato de doação é o “negócio bilateral em que um sujeito se obriga graciosamente a transferir o domínio do bem” 1 .

De igual forma, pondera o professor Sílvio Venosa: “apesar de a lei expressar que o contrato de doação transfere o patrimônio, não existe exceção ao sistema geral, consoante o qual a transcrição imobiliária e a tradição são os meios de aquisição de propriedade”2 .

2. DOS ELEMENTOS:

 

São imprescindíveis para a composição do contrato de doação a presença de certos elementos, quais sejam: o animus donandi, a transferência de propriedade do bem em favor do donatário e a aceitação deste.

O primeiro diz respeito à vontade de doar; é a intenção do doador de diminuir o seu patrimônio em favor do donatário. Deve haver a vontade de transferir o domínio da coisa, sob pena de ser caracterizado contrato diverso da doação (comodato, p.ex.).

É importante destacar que, a intenção de doar e a motivação do doador são absolutamente distintas. Esta é irrelevante para o mundo jurídico. Se o motivo ensejador da doação foi unicamente beneficiar a outra parte ou satisfazer vontade pessoal (vaidade, receber honrarias, alcançar prestígio), isso é indiferente.  Ainda que o doador obtenha proveito indireto do contrato não estaria descaracterizada a liberalidade3. Agostinho Alvim, em obra sobre doação, de semelhante forma, explica que o motivo não é levado em consideração como elemento contratual no nosso ordenamento jurídico. E vai mais além: chega a afirmar que existem casos em que a doação é fruto de uma “obrigação moral” do doador (p.ex. doar um bem a um parente enfermo e necessitado), e que, se neste caso fosse levado em consideração o motivo determinante da doação, esta perderia o caráter de liberalidade por ter sido um ato quase “à força” (as circunstâncias obrigaram); mas tal não ocorre. 4

O segundo elemento corresponde ao objeto da doação: a transferência de propriedade, de domínio do bem do doador para o donatário.

O terceiro, conforme mencionado, também é indispensável para a concretização do contrato; enquanto o donatário não exteriorizar o seu interesse pelo bem, não se completará a doação. A aceitação pode ser de três modalidades: expressa (manifestação escrita ou verbal do donatário), tácita (manifestação indireta através de atos compatíveis com a aceitação) e presumida (se o doador determinar um prazo para o donatário se manifestar e este silencia, presume-se aceita a doação; exceto se se tratar de doação com encargo – art. 539, CC).

3. DAS CARACTERÍSTICAS

            As principais características apontadas pela doutrina são: a gratuidade, a unilateralidade, a consensualidade e a solenidade. Acrescemos, ainda, a interpretação restritiva do instrumento contratual, prevista no artigo 114 do Código Civil.

Contratos gratuitos são aqueles que proporcionam vantagem econômica apenas para uma das partes; a outra é a única sobre a qual vai haver diminuição patrimonial.

A doação é unilateral porque somente um dos contratantes possui obrigação perante o outro: o doador é obrigado a entregar o bem ao donatário. O donatário, a princípio, não possui obrigações perante o doador.

Cabe aqui fazer a necessária distinção entre o negócio jurídico unilateral e contrato unilateral. Aquele, consoante Ulhoa 5, sequer é contrato, tendo em vista que se refere à declaração de vontade de somente um dos contratantes (p. ex., o testamento). Já o contrato unilateral, ao contrário, refere-se à obrigação imposta a somente um dos contraentes; contudo, neste, existe convergência de duas vontades (doador e donatário) – ninguém é obrigado a diminuir o seu patrimônio em detrimento do de outrem; assim como a aceitação da doação é facultativa.

A doação é contrato consensual porque se perfaz com o simples assentimento das partes; a tradição da coisa somente tem a função de transferir a propriedade do bem.

E é, em algumas hipóteses, contrato solene, porque, nas doações de bens imóveis ou que não sejam “bens de pequeno valor” (art. 541, parágrafo único, CC) dependem de forma escrita. Quando à abrangência conceitual de “bem de pequeno valor”, Ulhoa afirma que será determinada em relação ao patrimônio do doador, ou seja, não é um conceito objetivo, mas sim, variável, relativo.

Quanto à interpretação do contrato de doação, dispõe o artigo supracitado: “os negócios jurídicos benéficos (...) interpretam-se restritivamente” (destaque nosso). Logo, não será aplicada interpretação extensiva ou qualquer outra que prejudique o doador, tendo em vista que ele praticou um ato para, unicamente, beneficiar o outro contratante em detrimento do seu patrimônio.

4. DA DOAÇÃO ONEROSA (donatione sub modo)

            O Código Civil, assim como a doutrina, adota certas expressões que demonstram existir algumas formas de doação. São elas: doação pura e simples, em contemplação de merecimento, remuneratória, condicional, meritória, conjuntiva, onerosa ou gravada, dentre outras.

Por ser o objeto de estudo da presente monografia, ater-nos-emos à análise da doação com encargo (ou onerosa, ou gravada).

 

4.1. CONCEITO:

A doação onerosa é o negócio jurídico no qual, o donatário, para ter direito ao bem doado, deve cumprir a contraprestação imposta pelo doador. Não basta, simplesmente, aquele aceitar a doação (acordo de vontades); ele deve cumprir o encargo contratual. Neste sentido, prevê o artigo 553 do diploma civil: “o donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação (...)”.

Consoante Agostinho Alvim, a doação com encargo é a “obrigação imposta ao gratificado”6 , e cita, ainda, Emílio Betti, o qual conceitua: “é a macha de onerosidade na atribuição gratuita 7”.

4.2. CLASSIFICAÇÃO

Surgem várias correntes, com opiniões bastante distintas, quando o tema é a caracterização da doação onerosa. Prender-nos-emos a analisar apenas algumas delas, tendo em vista a grandiosidade da questão e o imperativo de brevidade desta monografia.

Fábio Ulhoa, ao analisar o contrato em epígrafe, classificou-o como “bilateral díspar”, ou seja, é um negócio jurídico de obrigações mútuas e desproporcionais, contrapondo-o, portanto, aos contratos bilaterais sinalagmáticos (obrigações proporcionais para ambos os contraentes). Para ele, o encargo descaracteriza a unilateralidade (obrigação para uma das partes). De igual modo, pondera que a liberalidade (doação strictu sensu) fica limitada ao que exceder o valor do bem (conforme a inteligência do art. 540 do CC)8 .

O doutrinador Sílvio Venosa observa que, no contrato em epígrafe, “não há ônus, contudo, se o interesse é exclusivamente do donatário ou se o doador se limita a dar conselho, sugestão ou exortação ao donatário”. Por exemplo: a doação de um terreno em que se exige do donatário a construção de uma casa para ele e sua família morarem (do donatário). Portanto, neste caso, não estaria caracterizada a doação onerosa, e sim, a pura e simples9 .

Para Agostinho Alvim, ainda que presente o encargo no contrato de doação, ele não retira deste o caráter de liberalidade 10.

Concordamos com este último ilustre autor, no sentido que a doação com encargo é, sim, contrato gratuito. Entretanto, é necessário observar até que ponto o modo se tornaria tão excessivo que desconfiguraria a gratuidade e passaria a ser um pagamento (contrato oneroso).

            4.3. ELEMENTOS ESPECÍFICOS

No contrato de doação onerosa, aparece uma figura importantíssima para a sua caracterização, que é o próprio encargo ou modo.

Existe uma grande divergência doutrinária em definir o encargo: se possui caráter de obrigação ou se seria, somente, uma prestação sem peculiaridades obrigacionais. Em linhas gerais, podemos dizer que o estudo está, grosso modo, dividido em duas correntes:

Para a primeira, por ser o encargo imposto ao donatário uma obrigação, a doação onerosa não seria unilateral, e sim, bilateral (obrigações para as duas partes), ainda que essas obrigações sejam extremamente descomedidas, desproporcionais.

Já a segunda pondera que o encargo nada tem a ver com uma contraprestação própria do vínculo obrigacional, sendo uma contrapartida para o recebimento do bem.

Vinculamo-nos a ambas as teorias, no seguinte aspecto: se o encargo for de valor absolutamente inferior ao do bem doado, estaria desconfigurada a onerosidade da prestação do donatário. Entretanto, em caso oposto, ou seja, se o modo tem valor relativamente alto ou até superior ao do bem doado, aí sim estaria caracterizada uma obrigação do donatário, ainda que ele se beneficiasse com o encargo, podendo, inclusive, chegar a uma descaracterização da doação (no caso de prestação de valor superior ao do bem doado).

Outro elemento específico da doação onerosa é a necessidade de dolo do donatário para o inadimplemento do encargo. É o que se infere do artigo 392 do CC: “nos contratos benéficos, responde por simples culpa o contratante, a quem o contrato aproveite, e por dolo aquele a quem não favoreça (...)”. (grifo nosso)

4.4. ENCARGO X LIMITAÇÃO DE PODER DE DISPOR

No contrato de doação, é possível que o doador imponha certas cláusulas restritivas ao donatário. Entretanto, mister se faz o esclarecimento sobre a diferença entre tais cláusulas e o encargo.

O encargo ou modo é a prestação imposta ao contratante que irá usufruir da liberalidade feita pelo outro contraente. Pontes de Miranda ensina que o modus ou encargo é uma categoria jurídica autônoma, distinta das condições resolutivas ou suspensivas. Representa um vínculo a cargo do onerado, é uma manifestação de vontade adjunta. Nele, incidem as regras jurídicas gerais sobre a capacidade, a forma e a validade dos negócios jurídicos11 .

Já com relação às cláusulas limitativas do poder de dispor (inalienabilidade, impenhorabilidade, incomunicabilidade), tem-se entendido que correspondem a figuras de natureza jurídica distinta do encargo, tendo em vista que é uma restrição que favorece o donatário (no caso da doação). Neste mesmo sentido, Pontes de Miranda explica que “não há modo se o interesse no cumprimento é exclusivamente do donatário12 ”.

De igual modo, Agostinho Alvim esclarece que “tais cláusulas não se consideram encargos, pois não são impostas em benefício do doador, nem de terceiro, nem da coletividade, sendo estas as três hipóteses da lei (art. 553, CC) em que há obrigatoriedade de cumprimento”. Por esse motivo, explica ainda que as doações com cláusulas restritivas “são consideradas puras, para os efeitos daí decorrentes. Ainda que se considere a inalienabilidade e suas variações como ônus real, ainda assim não estamos diante de uma obrigação” 13.

           

BIBLIOGRAFIA

ALVIM, Agostinho. Da doação. São Paulo: Saraiva, 1972.

BETTI, Emílio. Teoria Geral do Negócio jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 1969.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. Vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2005.

DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático dos contratos. São Paulo: Saraiva, 1993.

GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense.

MIRANDA, Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado. Tomo 5. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955.

_______. Tratado de Direito Privado. Tomo 46. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Contratos em espécie. Vol. 3. São Paulo: Atlas, 2005. 5a edição.

 

1 Coelho, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. Vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2005, pág. 221.

2 Venosa, Silvio de Salvo. Direito Civil – Contratos em espécie. Vol. 3. São Paulo: Atlas, 2005, 5a edição, pág. 124.

3 Borda, Guillermo. Manual de Contratos. 14a edição. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1989 – citado por Venosa, Silvio de Salvo. Op. cit. Pág. 125.

4 Alvim, Agostinho. Da doação. São Paulo: Saraiva. 1972, págs. 8 e ss.

5 Coelho, Fábio Ulhoa. Op. cit., págs. 40 e 41.

6 Alvim, Agostinho. Op. cit., pág. 232.

7 Betti, Emílio. Teoria Geral do Negócio jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 1969.

8 Coelho. Fábio Ulhoa. Op.cit., págs. 224 e 225.

9 Venosa, Sílvio de Salvo. Op. cit., pág. 133.

10 Alvim, Agostinho. Op. cit., pág. 236.

11 Miranda, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo 5. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, pág. 217.

12 Miranda, Pontes de Miranda. Op. cit. Tomo 46, pág. 206.

13 Alvim, Agostinho. Op. cit., págs. 223 e ss.

 

Data de elaboração: setembro/2006

 

Como citar o texto:

MOURA, Marina Pereira de..Da Doação com Encargo. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 9, nº 505. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil-obrigacoes-e-contratos/1938/da-doacao-com-encargo. Acesso em 12 jan. 2009.

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