O adequado dimensionamento do sistema elétrico – tema com o qual se acha envolto o regime de remuneração dos serviços públicos concedidos - depende não só da quantidade de energia consumida, mas também da intensidade em que ela é consumida, denominada demanda de potência, que é a soma das cargas dos equipamentos elétricos a serem atendidas.

 

Assim, quanto maior a potência de um aparelho ou equipamento elétrico, maior é a potência elétrica exigida para entrar em funcionamento e quanto mais intenso é o consumo da energia em dado espaço de tempo, maior é a potência utilizada e, consequentemente, mais intenso o fluxo da energia, o que exige a disponibilidade de uma rede de alta potência, com linhas de transmissão dotadas de condutores com grandes bitolas, para que a concessionária possa suprir adequadamente as necessidades dos consumidores intensivos, como indústrias, "shopping centers" e alguns edifícios comerciais, atendidos em alta tensão.

Entretanto, como a rede de distribuição de energia elétrica não é aparelhada para suportar um fluxo intenso de energia, mesmo porque as curvas de carga das plantas industriais variam em função do ciclo de operação previsto para os diferentes setores de produção e do período de funcionamento diário estipulado, o consumidor intensivo vê-se, então, obrigado a contratar com a concessionária o fornecimento de energia elétrica com a intensidade requerida pela soma das cargas dos aparelhos elétricos a serem atendidos, expressa em "quilowatts", convindo com a concessionária no valor do componente tarifário, por cujo pagamento deverá responder.

A construção ou a ampliação da capacidade da rede de distribuição, até certo ponto irreversível, constitui, assim, elemento instrumental para prestação do serviço solicitado, pelo que, visto sob tal perspectiva, o fornecimento da energia elétrica, com as características estabelecidas em contrato, envolve, como componentes seus, a infraestrutura colocada à disposição do consumidor e a energia elétrica gerada, nos quais encontra sustentação.

Sabendo-se que a tarifa é meio pelo qual se remunera a concessionária pela pres¬tação do serviço público, natural, então, que a concessionária pretenda ver-se ressarcida dos elevados investimentos realizados e dos dispendiosos custos incorridos com a manutenção da demanda contratada colocada à disposição do consumidor, mediante cobrança de uma tarifa específica, dado que, ao “acréscimo de encargos ou mutação de condições de funcionamento do serviço que se reflitam sobre a equação patrimonial hão de corresponder as compensações pecuniárias restauradoras do equilíbrio inicial”, segundo ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (“Curso de Direito Administrativo”, 21ª Ed., p. 702).

Tomando-se por empréstimo seu magistério, externado a propósito de hipótese de todo assemelhada, também as inversões feitas para o fornecimento de energia elétrica com as características solicitadas pelo consumidor computam-se no valor da tarifa, pois, a ser de outro modo, ficaria desassistida a justa remuneração do capital e desabrigados também os melhoramentos introduzidos no sistema elétrico. Ou, em outras palavras, a tarifa não estaria incor¬porando todos os componentes integrantes de sua formação, uma vez que as despesas necessárias com obras pertinentes com o fornecimento da energia necessitam abrigar-se na tarifa, pois assim se compõe normalmente o regime tarifário, segundo colhe-se das lições do administrativista.

Em contrapartida, ao contratar a disponibilidade de uma determinada potência elétrica para atender às cargas instaladas, o consumidor tem a garantia de que a concessionária estará aparelhada para suprir a demanda estabelecida no contrato, eis que o componente tarifário está vocacionado a garantir precisamente a cobertura dos custos incorridos para atender às necessidades de um específico segmento de consumidores, integrando assim o preço da energia elétrica fornecida.

Diante disso, é fácil entender porque a contratação de uma determinada demanda de potência implica uma tarifação distinta, pois, se o consumo intensivo requisita demanda de potência maior, que, para ser atendida, exige da concessionária a assunção de elevados encargos com a disponibilização da infraestrutura necessária, o valor devido será naturalmente superior ao daquele que não exigiu maiores inversões de capital. É inquestionável, por conseguinte, a legitimidade da tarifa que inclui, em seu valor, o componente necessário para enfrentar tais encargos.

Vista, então, sob a ótica que presidiu sua instituição, a tarifa de demanda de potência reflete os custos dos investimentos realizados pela concessionária com a infraestrutura colocada à disposição do consumidor, enquanto a tarifa de energia elétrica destina-se a suportar os custos de sua geração, segundo Walter T. Álvares (“Instituições de Direito de Eletricidade”, Ed. Bernardo Álvares, 1962, p. 449). Assim, a destinação desses componentes tarifários constitui parte integrante da própria estrutura da obrigação assumida pelo consumidor.

A tarifa binômia, que o consumidor intensivo vê-se obrigado a satisfazer, assim conhecida por abrigar valores distintos para a potência contratada e para a energia consumida, atende à necessidade de ratear os custos de forma proporcional ao impacto que cada consumidor causa ao sistema elétrico e, ao mesmo tempo, permite diferenciar o preço da energia consumida em grande intensidade (alta potência) daquela consumida em pequena quantidade (baixa potência), refletindo, por último, a composição dos custos de geração da energia e de disponibilização do sistema de distribuição para viabilizar um determinado consumo.

É o que dispõe o Decreto nº 62.724/68, ao estabelecer normas gerais de tarifação para as empresas concessionárias de serviços públicos de energia elétrica:

"Art. 11. As tarifas a serem aplicadas aos consumidores do Grupo A serão estruturadas sob forma binômia, com uma componente de demanda de potência e outra de consumo de energia.

Art. 12. A demanda de potência faturável para as unidades consumidoras do Grupo A será a maior dentre as seguintes:

I - a maior demanda medida, integralizada no intervalo de quinze minutos durante o período de faturamento;

II - a demanda contratada, observado o disposto no art. 18 deste Decreto e no art. 3º do Decreto n. 86.463, de 13 de outubro de 1981".

É o chamado "custo de disponibilidade", presente na generalidade das tarifas de serviços públicos concedidos, com o que se preserva a equação financeira do contrato, visto que, sem a garantia de uma retribuição mínima, que assegurasse a amortização dos investimentos realizados para atendimento de necessidades específicas do consumidor intensivo, ninguém assumiria a onerosa responsabilidade pela prestação de um serviço adequado de suprimento da energia, nas condições desejadas pelo consumidor (REsp nº 609.332, Relatora Min. Eliana Calmon).

Ademais disso, essa modalidade tarifária impõe a cada grupo ou classe de consumidores a obrigação de responder pela fração dos custos a que der causa, tal como estabelece o art. 14, do Decreto nº 86.463/81, pois, se assim não fosse, os pequenos consumidores estariam também arcando com os custos dos investimentos realizados pela concessionária para atender a um específico segmento dos consumidores intensivos.

Como as condições de fornecimento da energia elétrica para os edifícios residenciais, residências, lojas, agências bancárias, pequenas oficinas e boa parte dos edifícios comerciais, atendidos que são em baixa tensão, não causam maior preocupação ao setor elétrico, esse segmento de consumidores arca com o pagamento de uma tarifa monômia, que exprime apenas o consumo medido.

Não obstante esse quadro, embora de fácil compreensão, a linguagem judiciária, pouco afeita à terminologia do setor elétrico, muitas vezes se confunde, empregando indistintamente as expressões "demanda contratada" e "energia consumida", fora de seu significado técnico, e ao empregar uma única expressão para designar duas realidades distintas deixa à amostra a falta de melhor compreensão dos aspectos técnicos da matéria, muito embora a adequada prestação da jurisdição dependa, substancialmente, da propriedade da linguagem empregada, pois, “em Direito, descabe confundir institutos, expressões e vocábulos” (RE 199.147).

Base de cálculo do ICMS

Importa verificar, então, se o componente tarifário de que se cuida, e em que medida, em caso positivo, deve concorrer para a determinação da base de cálculo do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias – ICMS.

A exemplo do tratamento dispensado à definição do contribuinte do imposto nela discriminado, a Constituição de 1988 confiou ao domínio normativo de lei complementar a disciplina jurídica da definição da base de cálculo do ICMS, com o que deixou antever o legislador constituinte seu propósito de imprimir um tratamento homogêneo, de âmbito nacional, às matérias elencadas no art. 146, III, "a", da CF e, especificamente, no que concerne ao imposto de competência estadual, à definição da sua base de cálculo (CF, art. 155, § 2º, "i").

Nesse contexto, segundo já se anotou, os conceitos de operação relativa à circulação de mercadorias, de prestação de serviços tributados pelo ICMS, de contribuinte e de sua base de cálculo, estão diretamente relacionados com diplomas normativos de âmbito nacional, válidos, por mecanismos de integração, para todo o território nacional, sendo vinculantes, por conseguinte, para o legislador ordinário e para o aplicador da lei, porque defluentes do próprio texto constitucional.

A exigência de lei complementar se explica, uma vez que, "sendo um imposto nacional de competência dos Estados, com implicações várias decorrentes do princípio da não-cumulatividade, à evidência, teria que possuir um regramento supra-ordinário maior que o dos outros impostos, a fim de evitar conflitos desnecessários e violações à estabilidade do sistema. Esta é a razão pela qual pormenorizou o constituinte as áreas maiores de atuação da lei complementar no que diz respeito ao ICMS", segundo o autorizado magistério doutrinário de Ives Gandra da Silva Martins ("O Sistema Tributário na Constituição", Saraiva, 6ª edição, p. 632).

No mesmo sentido, Geraldo Ataliba ("Normas Gerais na Constituição – Leis Nacionais, Leis Federais e seu Regime Jurídico", in Estudos e Pareceres de Direito Tributário - Vol. 3. São Paulo. RT, 1980, p. 15/16) e Sacha Calmon Navarro Coelho (“Curso de Direito Tributário Brasileiro”, 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 105), entre outros.

Do encargo, desincumbiu-se a Lei Complementar nº 87/96, que, em seu art. 13, I, dispõe que a base de cálculo do ICMS é o valor da operação, deixando expresso, em face do que se contém em seu § 1º, II, "a" e "b", que a base imponível do ICMS não se reduz apenas ao valor da mercadoria. Sua extensão é maior, alcançando o valor da operação e o que integra a operação passa também a integrar a sua respectiva base tributável, de tal modo que deve compreender também todas as demais despesas imputadas ao adquirente da mercadoria, além daquelas ali expressamente arroladas.

Portanto, a expressão financeira da operação, a que alude o art. 155, II, da CF, compreende, para fins de cálculo do imposto devido, todas as despesas debitadas ao consumidor final, ainda que lançadas na nota fiscal sob diferentes rubricas, pois, a despeito de genéricos os termos da lei, integra o valor da operação, além do preço da energia elétrica, também o que mais for pago à concessionária por efeito da própria venda realizada. Não há, por conseguinte, como furtar-se à aplicação do art. 13, § 1º, II, "a" e "b", da LC 87/96.

Nesse contexto, parece significativo que, quando pretendeu excluir algum elemento da base de cálculo do imposto, a própria Constituição o fez (CF, art. 155, § 2º, XI), não deixando assim qualquer espaço para atuação do intérprete ou para o aplicador da lei.

No caso, em que se cuida de operações com energia elétrica - de incidência monofásica – o art. 9º, § 1º, II, além de autorizar o legislador ordinário a atribuir às empresas distribuidoras de energia elétrica a condição de responsáveis, por substituição tributária, pelo pagamento do imposto devido desde a produção até a última operação, dispõe expressamente que o seu cálculo deve ser efetuado sobre o preço praticado na operação final.

Por outro lado, é inegável a simetria existente entre as despesas acrescidas ao preço das mercadorias vendidas e os custos da demanda contratada, no fornecimento da energia elétrica, uma vez que, decorrentes de um negócio jurídico único, concorrem para a formação do preço final.

Pelo visto, é de rigor a observância, no particular, da norma inscrita na lei complementar, mesmo porque, para a jurisprudência da Suprema Corte, revela-se inconstitucional a previsão em Constituição do Estado-membro que exclua os juros devidos nas vendas a prazo da base de cálculo do ICMS, pois tal iniciativa, à falta de previsão em lei complementar, equivaleria à concessão de benefício fiscal sem a observância do procedimento previsto no art. 155, § 2º, XII, "g", da CF, rompendo, segundo o que decidido no julgamento da ADI/MG 84, a uniformidade tributária.

Segundo o entendimento dominante no Supremo Tribunal, como a legislação do ICMS não diferencia as operações de venda à vista ou a prazo, mostra-se legítima a inclusão dos juros na base de cálculo do ICMS (AI 807.613, Rel. Min. Joaquim Barbosa; AI 805.951, Rel. Min. Celso de Mello; AgRg no Ag 488.717, Rel. Min. Gilmar Mendes; AgR-AI 453.995, Rel. Ricardo Lewandowski; RE 363.539, Rel. Min. Carlos Britto; AgRg -AI 289.724, Rel. Min. Néri da Silveira e AgRg -AI 228.242, Rel. Min. Carlos Velloso, inter plures).

Do mesmo modo, o imposto incide sobre o valor total da operação, quando mercadorias são fornecidas com serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios (CF, art. 155, § 2º, IX, "b" e LC 87/96, art. 2º, IV), tal como decidido no RE 282.310 (Rel. Min. Moreira Alves) e AI 166.079-AgR (Relator Min. Marco Aurélio), entre outros.

Parece intuitivo, pelo que precede, que o delineamento do campo impositivo do ICMS traduz emanação que resulta, primariamente, da própria Constituição Federal, razão pela qual deve existir uma correlação lógica entre o fato gerador enunciado no art. 155, II, da CF e o montante sobre o qual deve incidir o imposto, pois, “a base de cálculo não pode estar dissociada do aspecto material do fato gerador, havendo de consistir numa perspectiva dimensional apta à redução desse aspecto material a uma expressão numérica” (STF, Pleno, RE 167.992).

Diante disso, a inclusão do valor do componente tarifário na base de cálculo do ICMS deve-se dar, então, por coerência normativa, na exata medida com que, como parcela do preço, concorre para a determinação do valor da fatura de energia elétrica.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, não discrepa, pois, também para o tutor do direito federal, a venda a prazo revela modalidade de negócio jurídico único, no qual o vendedor oferece ao comprador o pagamento parcelado do produto, acrescendo-lhe um plus ao preço final, razão pela qual o valor desta operação integra a base de cálculo do ICMS, que compreende, assim, o preço da mercadoria (preço de venda à vista) e o acréscimo decorrente do parcelamento (REsp 1.106.462; Ag 1.303.763; AI 289.724-AgR; AI 228.242-AgR e AI 364.281, entre outros).

Idêntico tratamento dispensa ao valor do frete, quando incluído no preço da mercadoria ou quando efetuado pelo próprio remetente ou por sua conta e ordem (LC 87/96, art. 13, § 1º, II, "b”), parecendo natural que assim seja, pois, se o comerciante vende com a obrigação de entregar o produto (preço CIF, custo, seguro e frete), óbvio que o preço será superior ao da modalidade FOB ("free on board" ou livre a bordo), razão pela qual o seu custo deve ser levado em conta para fins de cálculo e pagamento do imposto (REsp nº 884.705 e REsp nº 596.873).

Ainda segundo sua jurisprudência, também o valor cobrado pela concessionária dos serviços de comunicação, sob a rubrica de assinatura básica de telefonia, deve ser incluído na base de cálculo do imposto (REsp 1.004.817; REsp 1.002.257 e REsp 1.10.706, inter plures), – ainda que o usuário não utilize todos os pulsos abrigados na franquia - sendo a tarifa exigida então pela mera disponibilidade do serviço, encontrando o fundamento para sua cobrança na necessidade de garantir-se a viabilidade econômica do serviço - princípio informador da formação das demais tarifas dos serviços públicos concedidos.

Diante dessas situações assemelhadas, inexistiria qualquer razão lógica ou jurídica para que idêntico tratamento não fosse dispensado ao valor da demanda contratada, visto que, diante do que dispõe o art. 12, do Decreto nº 62.724/68, o componente tarifário devido pelo valor mínimo estipulado em cláusula contratual também abriga uma franquia de demanda de potência, expressa em KW, o que torna exigível seu pagamento pelo consumidor, ainda que da infra-estrutura colocada á sua disposição, no período do faturamento, não tenha se utilizado, de forma contínua ou no montante e intensidade contratados, circunstância que recomenda a aplicação do princípio segundo o qual "ubi eadem ratio ibi eadem legis dispositio".

Com efeito, ainda que inexistente fosse disposição legal expressa, mesmo assim deveria ser dispensado ao componente tarifário da conta de energia igual tratamento assegurado às operações equiparadas, mesmo porque são essencialmente iguais os supostos fáticos em que repousam, mostrando-se, então, oportuna a aplicação da figura do precedente judicial, que, mercê de timbrar a interpretação dos sistemas do "civil law" e do "common law", consubstancia técnica de aprimoramento da aplicação isonômica do Direito, a recomendar, portanto, que, para "casos iguais", "soluções iguais" (RE 433.896, Min. Cármen Lúcia).

Não obstante tudo isso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sempre mostrou-se refratária em conferir idêntico tratamento tributário à tarifa destinada a remunerar os investimentos feitos pela concessionária para assegurar a disponibilidade da demanda, pelo que seguramente se presume, à falta de melhor compreensão dos aspectos técnicos com que envolvido o tratamento jurídico da matéria.

De fato, ainda hoje perdura o entendimento, fixado no julgamento do Resp 222.810/MG, segundo o qual - ao que se pode inferir da leitura do teor do acórdão - a demanda contratada de potência constituiria um compromisso assumido pelo consumidor intensivo de pagar permanentemente o preço da energia elétrica, independentemente do consumo verificado, para prevenir-se contra a eventual insuficiência de seu suprimento. Se correta a premissa, estaria então o fisco exigindo um imposto tão só pelo fato da celebração do contrato de fornecimento de energia elétrica, no que assistiria inteira razão ao voto condutor do acórdão, pois o ICMS, sabidamente, não é um imposto sobre negócios jurídicos.

Coerentemente com a premissa assentada, concluiu-se, na oportunidade, que, como “a só formalização desse tipo de contrato de compra ou fornecimento futuro de energia elétrica não caracteriza circulação de mercadoria”, “não há hipótese de incidência do ICMS sobre o valor do contrato referente à garantia de demanda reservada de potência".

Consolidou-se, então, a jurisprudência do STJ no sentido de que não incide o ICMS sobre o componente tarifário, formada que foi, entretanto, sob o influxo de considerações estranhas ao próprio núcleo da materialidade da hipótese de incidência do imposto, parecendo distanciar-se até mesmo da formulação constitucional do fato gerador do ICMS (CF, art. 155, II), que, como é ressabido, tem por objeto as operações que promovem a mudança de titularidade da mercadoria, nisso se esgotando, não perquirindo, tanto o texto constitucional, quanto a lei complementar aditada para disciplinar a instituição e cobrança do imposto, sobre a destinação a ela dada por seu adquirente ou sobre qualquer outra circunstância alheia à materialidade de sua hipótese de incidência.

Vê-se que a natureza jurídica da demanda contratada ainda não teria sido suficientemente apreendida, pois, para alguns acórdãos, não se legitimaria a incidência do imposto sobre a mera aquisição de energia elétrica para formação de uma reserva, contratada que seria pelo consumidor com o único propósito de prevenir-se do risco de ser surpreendido pela eventual insuficiência de energia (REsp nº 343.952), como equivocadamente já se afirmou alhures, no pressuposto talvez de que a energia elétrica pudesse ser adquirida para ser armazenada.

Essa orientação jurisprudencial, que longe fica dos fatos da causa, ainda hoje persiste, uma vez que o acórdão tomado no REsp 960.476, embora tenha formulado a necessária distinção entre demanda de potência e consumo de energia elétrica, ao reafirmar as premissas adotadas na decisão que lhe antecedeu, manteve, no particular, a anterior compreensão formada em torno do tema, ao assentar que o consumo constitui pressuposto da incidência do imposto, visto que, para o voto condutor do acórdão, “há hipótese de incidência do ICMS sobre a demanda de potência elétrica efetivamente utilizada pelo consumidor. Assim, para feito de base de cálculo de ICMS (tributo cujo fato gerador supõe o efetivo consumo de energia), o valor da tarifa a ser levado em conta é o correspondente à demanda de potência efetivamente utilizada no período de faturamento, como tal considerada a demanda medida, segundo os métodos de medição a que se refere o art. 2º, XII, da Resolução ANEEL 456/2000, independentemente de ser ela menor, igual ou maior que a demanda contratada.”

Desde então passou-se a considerar legitima a incidência do imposto sobre a tarifa de demanda, mas circunscrevendo a base de cálculo do imposto à “demanda utilizada” - que não reflete necessariamente o valor da tarifa cobrada - ao fundamento de que, a exemplo do que se passa com a energia elétrica, cuja quantidade consumida pode ser quantificada, o valor unitário da demanda de potência também experimentaria variações, passíveis de medição, segundo as condições de sua utilização, em ordem a influenciar a determinação da base de cálculo do ICMS.

Há sérias e fundadas dúvidas sobre o acerto das premissas que presidiram a formação da orientação jurisprudencial, uma vez que parecem destoar do texto constitucional, para o qual o consumo da mercadoria vendida, que pode se seguir á ocorrência do fato gerador, é um fato irrelevante para fins de incidência do imposto.

Com efeito, a hipótese de incidência do imposto consiste, ao teor do art. 155, II, da CF, na realização de uma operação, vale dizer, na celebração, de um negócio jurídico, de que resulte a transferência da titularidade de uma mercadoria, mediante sua entrega ou colocação à disposição do adquirente, momento em que se aperfeiçoa o fato gerador do ICMS. Assim, a ocorrência do fato gerador do imposto prescinde do consumo e alcança apenas as operações que digam respeito à circulação de certa categoria de bens: as mercadorias.

Ademais disso, o consumo se acha associado à base de cálculo do imposto, que, por sua vez, aloja-se no prescritor (conseqüente) da norma, pois não cabendo no antecedente normativo a determinação ou a prescrição dos requisitos de aferição do quantum do tributo a ser pago, à hipótese de incidência incumbe apenas descrever os pressupostos fáticos necessários e suficientes para a incidência da norma tributária, a exemplo do enunciado que se contém no art. 2º, da LC nº 87/96. Não os seus requisitos legais de quantificação (de que, no caso, cuida o art. 13, I, da LC 87/96).

Com efeito, a base de cálculo de um imposto, segundo a lógica jurídica, não se integra na previsão de sua hipótese de incidência, pois a hipótese simplesmente descreve, não prescreve, ensina Souto Maior Borges.

Ademais, ao pretender substituir o valor mínimo devido pela disponibilidade da demanda de potência, estabelecido em cláusula contratual, por um valor que reflitisse supostas variações de sua utilização, o acórdão acabou por conferir aos dois componentes da tarifa de energia elétrica um tratamento igual com base em dessemelhanças essenciais, mesmo porque, ao contrário do que ocorre com a energia elétrica, bem móvel por equiparação legal, que pode então circular e ser objeto do comércio, o componente tarifário incluído na conta de energia reflete os custos da infraestrutura posta à disposição do consumidor, não sendo passível, por conseguinte, de constituir objeto de uma operação mercantil e nem de ter sua titularidade transferida, a exemplo das demais despesas debitadas ao consumidor final, inexistindo, de resto, qualquer regra jurídica que equipare a demanda contratada a uma mercadoria – objeto da tributação - tal como ocorre com a energia elétrica.

Por sua vez, enquanto a energia elétrica fornecida proporciona uma utilidade ao consumidor, as obras realizadas pela concessionária na rede elétrica são, em si mesmas, um produto estático, que se constitui em mero elemento instrumental para a oferta do serviço público de fornecimento de energia elétrica, a que servem. Por isso aderem a ele, constituindo-se em veículo de sua prestação, tendo os respectivos custos acobertados por um componente distinto daquele devido pela energia consumida. Segue daí que devem então ser afastadas eventuais semelhanças artificais entre demanda e consumo.

De comum entre os dois componentes apenas a circunstância de que, a partir de parâmetros próprios, mas distintos, concorrem para a determinação do preço da tarifa devida pelo fornecimento da energia elétrica. Enquanto um já tem o seu valor pré-fixado no contrato, estabelecido a partir do montante de quilowatts contratados, o outro, variável, segundo a quantidade de energia consumida e medida em kwh, é apurado somente ao cabo do período de faturamento, pelo que distintas são as unidades de medida de cada componente da tarifa de energia elétrica.

De resto, tendo em vista a alusão à medição da demanda contratada, como decisivo, embora precário, fundamento da solução ofertada, um esclarecimento sobre o papel por ela desempenhado se faz necessário.

Compreende-se que, por razões fundadas na necessidade de serem respeitados os níveis de segurança de operação do sistema elétrico como um todo, deva o consumidor intensivo, ao firmar o contrato, fazer um cálculo prudente da demanda de potência necessária para atender as cargas instaladas, em face do qual será dimensionada a rede elétrica, uma vez que solicitações muito acima das reais necessidades dos equipamentos instalados levam ao desperdício, onerando desnecessariamente a conta de energia; estimá-la muito abaixo, por outro lado, pode ensejar riscos de incêndio e quedas de fornecimento, que o subdimensionamento do porte do sistema às suas reais necessidades pode acarretar.

Exatamente por isso, a demanda utilizada é registrada, por sofisticado equipamento, a cada quinze minutos, e, constatada que seja a exigência do sistema elétrico em montantes superiores à capacidade da rede, tal como aparelhada, à vista da demanda de potência máxima estimada no contrato, o consumidor se sujeitará ao pagamento da tarifa de ultrapassagem, extremamente onerosa, cuja aplicação visa precisamente induzi-lo a dimensionar corretamente o uso que fará do sistema de distribuição. E essa é a única serventia da medição procedida.

Nesse contexto, o monitoramento da potência utilizada apresenta-se como mero mecanismo, embora fundamental, para administrar a segurança e a estabilidade do sistema elétrico, sem nenhum reflexo, entretanto, na determinação da base de cálculo do imposto, de que é uma destacada parcela.

Ademais, se o valor da tarifa é aquele fixado no contrato, este é então o valor que deverá ser considerado na determinação da base de cálculo do imposto, visto que não seria lícito ao aplicador da lei proceder à imposição de seus próprios critérios para, com isso, introduzir alterações no cálculo do imposto, que conduzem a um valor inferior ao que seria devido, se considerado o que, a propósito, dispõe a lei complementar: “se é certo que toda interpretação traz em si carga construtiva, não menos correta exsurge a vinculação à ordem jurídico-constitucional”, pelo que não se permite ao intérprete e ao aplicador da lei inserir na regra de direito o próprio juízo sobre a finalidade que “conviria” fosse por ela perseguida, uma vez que é tão ilegítimo se retirar algo que está escrito na lei quanto é adicionar algo que lá não se encontra e que desejaríamos que lá estivesse, já se afirmou alhures.

Em conclusão, como a tarifa devida pela demanda contratada integra o preço final da operação de que resulta o fornecimento da energia elétrica, a base de cálculo no ICMS deve corresponder ao valor da fatura emitida pela concessionária, que abriga naturalmente todos os custos incorridos desde a geração até a entrega do produto, mesmo porque, segundo a jurisprudência da Corte, "O ICMS deve incidir sobre o valor real da operação, descrito na nota fiscal de venda do produto ao consumidor" (AgRg/REsp nº 625.001, Relator Min. Castro Meira).

Finalmente, não guardando a matéria qualquer pertinência temática com a ocorrência do fato gerador do ICMS, conquanto mantenha com ele íntima relação, assumindo a delimitação da base de cálculo do ICMS, tema subjacente à controvérsia, contornos constitucionais - uma vez que destinada a dimensionar a expressão financeira do fato tributável delineado no art. 155, II, da CF (AI 767.105, Relatora Min. Cármen Lúcia) - a palavra final sobre a inclusão do componente tarifário referente à demanda contratada na base de cálculo do imposto será dada pela Suprema Corte, quando julgar o RE 593.824/SC, Relator Min. Ricardo Lewandowski, pois, para o Plenário virtual da Corte, a matéria é relevante e transcende os meros interesses subjetivos das partes envolvidas no litígio.

 

Data de elaboração: outubro/2011

 

Como citar o texto:

MIRANDA, José Benedito..Fornecimento de Energia Elétrica - Base de cálculo do ICMS. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 18, nº 955. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/cronicas/2436/fornecimento-energia-eletrica-base-calculo-icms. Acesso em 29 jan. 2012.

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