Resumo

 

A positivação dos direitos e garantias fundamentais na Constituição Federal de 1988 foi a consagração de uma travessia de um Estado controlado pela ditadura militar a uma nação plural e democrática. Os direitos fundamentais, todavia, em determinados casos colocados sob a apreciação do Judiciário, mostram-se conflitantes, uma vez que ambos poderão ser aplicados aquela situação. Quando isso ocorre, necessário se faz invocar a técnica de ponderação, pela qual o Magistrado, mediante um processo cognitivo valorativo, resolve o conflito aparente de direitos tutelados pela Carta da República, atribuindo, por conseguinte, uma solução que mais se aproxima aos anseios sociais e em consonância com toda ordem jurídica.

Palavras-chave: Colisão de direitos constitucionais. Admissibilidade. Prova ilícita. Ponderação. Proporcionalidade. Liberdade.

Abstract

After more than 20 years of enactment of the Federal Constitution, intended to govern relations in a pluralistic society without prejudices and egalitarian, it has become a consecration of fundamental rights and guarantees guiding the powers of the republic when the solution of social conflicts and when the implementation of public policies aiming to enforce those rights. However, we found in our times the collisions between these rights enshrined by the Supreme Court, guardian of the Constitution, is constantly being invoked to manifest itself about the verification of conflicts of fundamental rights. It is used in turn called the technique of weighting values to clarify potential conflicts and give a just and harmonious with the public policy of the nation of a given historical moment. We will in this article that concerns the collision of rights and illustrate how is this balance of values in the light of systematic criminal procedure.

Key-words: Collision of constitutional rights. Admissibility. Illegal evidence. Weighting. Proportionality. Freedom.

1 INTRODUÇÃO

Decorrido mais de 20 anos da promulgação da Constituição Federal Brasileira, destinada a reger as relações de uma sociedade pluralista, sem preconceitos e igualitária, firmou-se uma consagração de direitos e garantias fundamentais norteando os poderes da república quando da solução de conflitos sociais e quando da “implementação” de políticas públicas objetivando a observância desses direitos. Todavia, verificamos hodiernamente as colisões entre esses direitos consagrados, pelo que o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, vem constantemente sendo invocado a se manifestar acerca da verificação dos conflitos de direitos fundamentais. Utiliza-se por seu turno a denominada técnica de ponderação dos valores para sanar possíveis conflitos e atribuir uma solução justa e harmônica com a ordem pública da nação de um dado momento histórico. Trataremos neste artigo o que concerne à colisão de direitos e ilustraremos como se dá essa ponderação de valores à luz da sistemática processual penal.

2 O CONFLITO DE DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS

A Constituição Federal de 1988 consagrou em seus dispositivos um rol de direitos e garantias individuais inerentes aos cidadãos que compõe o Estado Brasileiro Democrático de Direito, objetivando limitar as eventuais arbitrariedades dos entes Estatais e também impulsioná-lo a efetivar tais direitos tendo em vista as omissões Legislativas.

Tais garantias individuais são dotadas de igual potencialidade de eficácia e encontram-se no mesmo plano hierárquico. É dizer que se encontram abstratamente em pé de igualdade, sendo vedado ao aplicador da lei escolher arbitrariamente qual dos dispositivos deverá ser aplicado ao caso “sub judice” quando duas ou mais regras conflitarem entre si no momento da subsunção do fato à norma, haja vista a possibilidade da aplicação de dois ou mais dispositivos ao caso concreto resultando soluções divergentes. Nesse trilhar, preleciona Barroso (2009), in verbis:

“Por força do Princípio instrumental da unidade da Constituição, o intérprete não pode simplesmente optar por uma norma e desprezar outra em tese também aplicável, como se houvesse hierarquia entre elas (...). A constituição é um documento dialético – que tutela valores e interesses potencialmente conflitantes – e que os princípios nela consagrados frequentemente entram em rota de colisão”

Logo, verificamos que “os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna” .

Haja vista a real possibilidade de conflitos entre normas constitucionais, podendo ambas ser aplicadas ao caso concreto, necessário se faz delinear mecanismos de decisão que devem nortear o Magistrado nos momentos em que a solução de determinado caso submetido à apreciação judicial depender da sobreposição de um dispositivo em face do outro, isto é, havendo antinomia aparente entre normas aplicáveis ao mesmo caso, o próprio ordenamento jurídico deve estipular uma técnica-legal para sanar a eventual incoerência, isso por que “o direito não tolera antinomias” •.

Antinomia é, segundo Bobbio (1996), “aquela situação que se verifica entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e tendo o mesmo âmbito de validade” . Desse modo, a resolução dessa antinomia deve-se operar por meio de critérios próprios da jurisdição constitucional, uma vez que o critério hierárquico, cronológico e o da especialidade não satisfazem a solução de normas constitucionais conflitantes. Isso por que os dispositivos da Carta Magna encontram-se no mesmo plano hierárquico e foram positivados a um só tempo pelo Constituinte originário.

Em razão da impossibilidade de solucionar as antinomias constitucionais por meio dos critérios clássicos, a jurisdição constitucional desenvolveu uma técnica que mais se aproxima à realidade social hodierna caracterizada pela vasta complexidade de relações sociais. É a chamada “técnica da ponderação” , pela qual o Magistrado deverá analisar o caso por meio de um processo cognitivo mais complexo, ponderando os interesses tutelados por ambas as normas conflitantes, bem como, ponderando os “bens e valores” insurgentes acerca do caso concreto. O intérprete, valendo-se da dita técnica “fará concessões recíprocas, procurando preservar o máximo possível de cada um dos interesses em disputa ou, no limite, procederá a escolha do direito que irá prevalecer, em concreto, por realizar mais adequadamente a vontade constitucional”

Sobredita técnica de ponderação decorre da irradiação de dois princípios que devem ser invocados à solução de conflitos de direitos fundamentais, quais seja o Princípio da Proporcionalidade e Razoabilidade, os quais informam o Magistrado qual direito deve prevalecer em face do outro, sendo “razoável o que seja conforme à razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia” aos “valores vigentes em dado momento ou lugar” .

Portanto, havendo a colisão entre dois direitos tutelados pela Carta Magna, há de se iniciar um processo cognitivo valorativo complexo, sopesando os valores intrínsecos à situação concreta proposta à apreciação judicial, objetivando o cumprimento do valor maior do direito, a Justiça, respeitando por óbvio os limites impostos pela inviolabilidade da dignidade da pessoa humana.

3. LIBERDADE vs. PROVA ILÍCITA NO ÂMBITO PROCESSUAL PENAL

Dentre os direitos individuais previstos no art. 5º da CF, passamos a analisar a norma-princípio insculpida no inciso LVI , no qual veda à utilização de provas ilícitas no processo, seja na esfera cível seja na esfera penal. Portanto, a regra é a inadmissibilidade da utilização da prova ilícita como elemento capaz de motivar o convencimento do Magistrado acerca de determinada situação submetida ao crivo decisório do Judiciário. Tal princípio foi positivado expressamente em legislação infraconstitucional por meios de regras dispostas no diploma processual penal.

Entende-se como provas ilícitas “aquelas obtidas com infringência às normas de direito material” . As provas ilegítimas “são as obtidas com desrespeito ao direito processual” . É dizer que, mediante um ato ilegal, violando a esfera de direito de outrem, chega-se a colheita de um elemento probatório. Portanto, a prova decorre de uma conduta ilícita daquele que a colheu.

Por esses motivos, o Juiz deve desconsiderá-las na formação do seu convencimento acerca do delito, objeto da demanda penal, conforme se extrai dos artigos 157, caput do Código Processual Penal . Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF):

“Ilicitude da prova. Inadmissibilidade de sua produção em juízo (ou perante qualquer instância de poder) – Indoneidade jurídica da prova resultante de transgressão estatal ao regime constitucional dos direitos e garantias individuais. A ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de poder perante a qual se instaure, para revertir-se de legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa à garantia constitucional do due process of law, que tem , no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo.”

Dessa forma, à luz do Estado Democrático de Direito, no qual tem como pilar a dignidade da pessoa humana, a prova obtida mediante violação de direito individual, em regra, não deve ser admissível “ainda que em prejuízo da apuração da verdade, no prol do ideal maior de um processo justo, condizente com o respeito devido a direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, valor que se sobreleva, em muito, ao que é representado pelo interesse que tem a sociedade numa eficaz repressão aos delitos”

Inobstante a acertada vedação à prova ilícita, vislumbram-se casos excepcionais em que a norma proibitiva inserta no art. 5º inciso LVI da Carta Magna, deverá ceder quando da ponderação dos valores emergentes do caso concreto, haja vista as peculiaridades de cada caso posto em apreciação Judicial.

Em alguns casos, sopesando-se os valores conflitantes, na medida em que, observar a risca a impossibilidade do Magistrado valorar seu decisum em provas oriundas de atos de legalidade duvidosa poderia resultar em decisões absurdas e injustas.

A título ilustrativo invocamos a doutrina de Norberto Avena, quando exemplifica na hipótese em que por meio de uma interceptação telefônica realizada as escusas das formalidades legais, venha a ser descoberta a única prova capaz de inocentar o réu . Ora, de um lado impõe-se a proibição da utilização de provas ilícitas no processo e de outro se têm o direito à liberdade conflitando com aquele. Nesse ponto, como dito alhures, “partindo de uma consideração de que nenhum direito reconhecido pela Constituição pode revertir-se de caráter absoluto, possibilita que se analise, na hipótese de colisão de direitos fundamentais, qual deve, efetivamente ser protegido” .

Ora bem, cabe ao Magistrado esta valoração, não de forma arbitrária, mas sob o prisma da prudência de seu exercício jurisdicional e da utilização dos poderes a ele conferidos, no qual se deve pautar-se pela ordem pública, pelos anseios sociais e pelo sentimento de justiça, pois, não é digno assistir o cidadão sofrer a pena descrita no tipo incriminador por fato que não cometeu, sendo, portanto, sujeito ilegítimo para figurar naquela demanda, tendo sua liberdade cerceada por que o Juiz, naquele caso, interpretou de forma gramatical, resultado na vedação à utilização da prova ilícita, sem nenhuma ponderação de valores previamente exercitada.

É nesse interim que se faz necessário a técnica de ponderação dos valores, sopesando os direitos conflitantes por meio de uma atividade cognitiva aguçada, na medida em que deverá o Magistrado harmonizar os pontos conflitantes, na busca de uma solução justa, e, no tocante ao caso ora em exame, na lição de Avena (2011), “havendo a prevalência da liberdade sobre a intimidade, impõe-se, nesta linha de pensamento, a admissão, em prol do réu, da prova ilicitamente obtida” .

Admite-se, em caráter excepcional, a utilização da prova ilícita como fundamento de sentença absolutória em favor do acusado. Aqui vale destacar que é permitida ao Magistrado essa valoração quando a finalidade for a benefício do querelado. Pois, se o contrário fosse, ou seja, a possibilidade de admitir-se prova ilícita objetivando a reprimenda do acusado, poderíamos a chegar ao ápice arbitral, na medida em que a conduta ilícita empregada na obtenção da verdade real implicaria muitas vezes em atos mais delituosos do que aquele no qual objetivasse reprimir.

Nessa linha de raciocínio, vale a transcrição da doutrina de Amelung – colacionada por Costa Andrade, vejamos:

“ O Estado cairá em contradição normativa e comprometerá a legitimação da própria pena, se, para impor o direito, tiver de recorrer, ele próprio, ao ilícito criminal. Pois, o fim da pena é a confirmação das normas do mínimo ético, cristalizado nas leis penais. Esta demonstração será frustrada se o próprio estado violar o mínimo ético para lograr a aplicação de uma pena. Desse modo, ele mostra que pode valer a pena violar qualquer norma fundamental cuja vigência o direito penal se propõe precisamente assegurar”

Por outro lado, visualizando o permissivo da ilicitude da prova na esfera processual penal a favor do acusado, manifestou o STF, in verbis:

“(...) Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. (...) ”.

Acertadamente, o constituinte originário andou bem na vedação à utilização das provas ilícitas, objetivando a proteção a intimidade, ao direito de silêncio, à dignidade da pessoa humana, todos tutelados pela Carta da República. Portanto, em face as mutações sociais ocorridas no seio da população, necessário se faz que a Constituição também acompanhe essa evolução, cedendo espaço à interpretações que mais se adeque a realidade viva da vida, admitindo, portanto, a ponderação de valores igualmente tutelados, de modo que em determinados casos, a eficácia de um direito possa sobrepor-se à outro no intuito de justiça, desapegando-se dessa forma à letra fria da lei, na qual muitas vezes manifesta-se injusta.

Portanto, observando os vários dispositivos constitucionais nos quais, grosso modo, impõe a liberdade como regra e a sanção penal como “ultima ratio”, uma solução que não seja a concessão da liberdade do acusado motivada em prova ilícita decorrente de violação de intimidade, revela-se contra o espírito do sistema jurídico brasileiro.

4 CONCLUSÃO

Do estudo, observa-se a mitigação dos direitos Constitucionais quando se confrontam entre si, fenômeno constantemente verificável hodiernamente, cabendo ao Magistrado, valendo-se da técnica de ponderação, estender a eficácia de um preceito assegurador de direito sobre o outro, ambos tutelados pela Constituição e gozando de mesma hierarquia. Uma valoração que requer um processo cognitivo mais denso, observando os valores e as peculiaridades que emerge de cada caso concreto.

5 REFERÊNCIAS

ANDRADE, C. As proibições de prova em Processo penal. Coimbra, Ed. 1992

AVENA, N. C. P. Processo Penal: esquematizado. – 3ª edição. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011

BARROSO, L. R. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. – 7ª edição. – São Paulo: Saraiva, 2009.

BARROSO, L. R. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do direito Acesso em março 2012. Pg. 15

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição e o Supremo. – 3ª edição. – Brasília, 2010

BOBBIO, N. Teoria do Ordenamento Jurídico. Apresentação: Tércio Sampaio Ferraz Júnior, trad. Maria Celeste C. J. Santos; revi. Tec. Cláudio de Cicco. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 6ª edição, 1996

Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: Acesso em abr. 2012

DECRETO-LEI Nº 3.689, de 3 de Outubro de 1941. Disponível em: Acesso em abr. 2012

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. – 27ª edição. Ed. – São Paulo: Atlas, 2011

 

Data de elaboração: março/2012

 

Como citar o texto:

NASCIMENTO, Vinícius Marques do..A ponderação dos direitos fundamentais e a admissibilidade da prova ilícita no processo penal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 18, nº 986. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/2510/a-ponderacao-direitos-fundamentais-admissibilidade-prova-ilicita-processo-penal. Acesso em 2 jun. 2012.

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