RESUMO

O presente trabalho objetiva analisar a problemática das lacunas, sendo necessário, para isso, fazer uma análise breve do tema nos vários conceitos de sistema jurídico, assim como determinar se o ordenamento jurídico é ou não incompleto. Sendo ele determinado incompleto, cabe analisar a atuação do juiz frente às lacunas que o ordenamento jurídico apresenta. Posteriormente, deve-se salientar as características que o juiz deve ter para que possa completar essas lacunas deixadas pelo legislador ou mesmo em face do próprio Direito. Ainda se faz necessário demonstrar de que forma o juiz poderá completar essas lacunas. Essas formas são as chamadas fontes de integração do Direito, que estão expressas no Art. 4º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, e são elas a analogia, os costumes, os princípios gerais do Direito, e vale referir também a equidade, que, embora não expressa, está implícita na lei, de forma que é possível aplicá-la. Por fim, importante referir que a atuação do juiz, na aplicação e interpretação da lei no caso onde haja uma ausência de norma, deve ocorrer conforme preconiza a Constituição Federal, ou seja, o juiz deve estar atrelado a ela para que possa obter uma decisão o mais justa possível para o caso concreto, respeitando, assim, os Direitos fundamentais assegurados na Constituição. Desse modo, o presente trabalho é dividido em três partes: na primeira parte, são abordadas as implicações inerentes ao assunto no que diz respeito ao sistema jurídico; na segunda, trata-se das características jurisdicionais relevantes para uma satisfatória atuação do juiz frente às lacunas; e, ao final, traz-se o tema central da pesquisa, qual seja, o da complementação das lacunas.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho se propõe a abordar a problemática das lacunas, explorando, inicialmente, sua natureza, sob o ponto de vista de sua existência e situação dentro do ordenamento jurídico.

         

           Para isso, faz-se, inicialmente, uma breve abordagem sobre a completude ou incompletude do ordenamento jurídico, o que é indispensável para que seja definida a existência ou inexistência de lacunas.

Ultrapassado este impasse inicial, passa-se a analisar a estrutura do ordenamento jurídico per se, a fim de situar a atividade jurisdicional, que vem a ter vital importância ao tratar-se deste assunto.

Ao abordar as características do Poder Judiciário, tem-se a intenção de demonstrar a estrutura existente ao mesmo tempo à disposição do juiz, e que deve ser por ele respeitada. Assim, trata-se de conceitos como a competência do juiz, bem como a independência do Poder Judiciário e do juiz.

Ainda, e não menos relevante, será abordada a questão da imparcialidade do juiz, visto que ela poderá ser afetada, ou, no mínimo, questionada, ao verificar-se a presença de lacunas e a necessidade ou não de colmatá-las.

Ao se determinar tais características inerentes à atividade jurisdicional, pode-se esclarecer de que forma o juiz deverá atuar a fim de complementar eventuais lacunas.

Superadas as questões iniciais de constatação da existência ou não de lacunas, bem como da atuação do juiz frente a elas, faz-se necessária uma análise das formas previstas em lei para colmatá-las.

Nesse sentido, busca-se analisar essas formas, as quais são previstas em lei, mais especificamente, no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, que determina como deverá o juiz agir nos casos em que houver omissão, sendo elas a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito.

Finalmente, faz-se uma breve exposição sobre a importância da atividade do juiz ser vinculada à Constituição. O juiz, assim, ao preencher uma lacuna, deverá respeitar a Constituição, pois ela é o pilar do estado democrático de Direito, contendo normas, regras, valores e princípios que são a base dos Direitos Fundamentais.

1 O SISTEMA JURÍDICO E AS LACUNAS DA LEI

1.1 A incompletude ou completude do sistema jurídico

A fim de expor a questão da incompletude ou completude do sistema jurídico, é necessário partir de uma definição de sistema jurídico per se. A corrente dominante trata disso de forma teórico-analítica. Essa teoria foi exposta por Tércio Sampaio Ferraz Junior[1] e a faceta teórica deste modelo refere-se às normas de Direito. Estas são organizadas de forma lógica, no entanto, nem sempre exatas, sendo, portanto, suscetíveis a mudanças constantes.

No tocante ao componente analítico desta teoria, este ocorre quando o sistema é visto como uma problemática entre conflitos e decisões, e tem como ponto de partida as possibilidades de decisões para um possível conflito[2].

Ao se deparar com o sistema jurídico visto de forma analítica, a relação intranorma torna-se mais relevante, o que leva à problemática da completude ou incompletude do ordenamento jurídico, e, por consequência, à existência ou não de lacunas no sistema jurídico.

          Esta relação intranormas fica ainda mais evidente ao analisar-se a definição de sistema jurídico do jurista italiano Norberto Bobbio[3], o qual trabalha com a concepção de que as normas não existem isoladamente, mas estão em um contexto no qual ocorrem relações particulares entre si.

Cabe ressaltar,  a definição de sistema jurídico exposta por Juarez Freitas[4]:

Entende-se apropriado conceituar o sistema jurídico como uma rede axiológica e hierarquizada topicamente de princípios fundamentais, de normas estritas (ou regras) e de valores jurídicos cuja função é a de, evitando ou superando as antinomias em sentido latu, dar cumprimento aos objetivos justificadores do Estado Democrático, assim como se encontram consubstanciados, expressa e implicitamente na constituição [grifos dos autor].

 

A partir da definição de sistema, surgem duas abordagens. A primeira vê o sistema como um conjunto fechado de normas. Assim, a introdução de um novo elemento o obriga a mudar o conjunto das regras, isto é, o obriga a fazer uma regra nova[5]. Dessa forma, entende-se que o sistema fechado já é completo, uma vez que o seu conjunto de normas abrange todos os casos possíveis, levando em consideração que estes já ocorreram.

            Tércio Sampaio Ferraz Junior[6] explica que ver o sistema jurídico de forma fechada é perceber o ordenamento de forma tradicional. Um sistema fechado condiciona a experiência jurídica de tal modo que, se uma situação não se encaixa nas normas previstas, esta seria antijurídica. Trata-se de um sistema que estabelece limites.

      Já Norberto Bobbio[7] expõe essa mesma questão de maneira diferente, dizendo que “um caso ou está regulado pelo Direito, e então é um caso jurídico, ou juridicamente relevante, ou não está regulado pelo Direito, e então pertence aquela esfera da atividade humana, que é a esfera do juridicamente irrelevante”.

            Como forma de explicitar as várias teorias negadoras da incompletude do ordenamento jurídico, Norberto Bobbio[8] ainda expôs a teoria sustentada por Zitelmman, segundo a qual uma norma que regula um comportamento não só limita a regulamentação e, portanto, as consequências jurídicas que desta regulamentação derivam para aquele comportamento, mas, ao mesmo tempo, exclui daquela regulamentação todos os outros comportamentos.

Ainda no que tange à norma geral exclusiva, e, como forma de explicitar o conceito de lacunas, disciplina Juarez Freitas[9]:

Em suma, a lacuna nada mais é do que uma espécie de antinomia entre norma geral exclusiva e norma geral inclusiva, havendo solução jurídica de completabilidade por meio do processo sistemático de hierarquização. Neste diapasão, entende-se, em profundidade, que interpretar o Direito na sua exuberância axiológica e pluralista consiste em hierarquizar, preferencialmente executando a exegese racionalmente dialógica e consciente dos mais eminentes compromissos [grifos do autor].

A segunda forma de abordar o sistema jurídico defende que o sistema é aberto, ou seja, quando se pode inserir um elemento novo, sem que a estrutura seja afetada. O sistema aberto abrange aquilo que está por vir, mostrando certa flexibilidade, e, assim, passando por adaptações de acordo com um ordenamento que reflete as necessidades de uma sociedade em constante transformação.

No entanto, Aldemiro Dantas[10] mostra a mesma questão vista de um outro ângulo, a partir da teoria de Savigny[11]:

O Direito, dada a sua força orgânica, sempre completaria a si mesmo, por já conter, explicita ou implicitamente, a solução de todas as relações sociais possíveis presentes ou futuras. A concepção de Savigny, contudo, logo revelou sua falha, pois se é verdade que o sistema jurídico sempre comporta um elastecimento para abranger hipóteses não expressamente previstas, por outro lado esse elastecimento não chega a ponto de abarcar todas as situações possíveis.

Aldemiro Dantas[12] expõe ainda  a seguinte ideia:

Se o Direito é produto da sociedade, e, se o fenômeno social tem múltiplas facetas, em incessante mutação, cabe ao juiz, ao decidir um caso concreto, deduzir quais as normas adequadas às novas necessidades sociais. O juiz, pois, não pode ficar amarrado ao Direito estatal, formado por regras que ficam cristalizadas e mortais nas leis, e perder de vista a dinâmica das relações entre as forças sociais. A escola de Direito livre via nos códigos um engessamento, um obstáculo para a adaptação do Direito às exigências sociais.

 

 

Isto posto, pode-se concluir que o sistema jurídico não é simplesmente um agrupamento organizado de normas, mas reflete uma realidade que faz uso deste conjunto de normas, juntamente com sua aplicação e interpretação, a fim de dar sentido aos casos concretos.

Ao tomar-se o sistema por aberto e incompleto, percebe-se que existem várias dimensões que vão além da normativa, como a dimensão fática, e também a axiológica. Complementando, Juarez Freitas[13] expõe que vê o sistema “como um sistema genericamente aberto e, pois, como potencialmente contraditório, normativa e axiologicamente”. Desse modo, percebe-se que há um entrelaçamento entre as normas e os fatos presentes na realidade da sociedade, sendo que essas normas estão presas, ou diretamente relacionadas aos fatos, valores e momento social onde estão inseridas. 

No entanto, pode-se afirmar que sempre existirão situações ainda não previstas no sistema jurídico, justamente por ele ser incompleto, vez que nossa realidade está em constante transformação, e nem sempre o Direito acompanha as mudanças socioeconômicas e culturais da sociedade.

       A questão das lacunas pode ser vista sob dois aspectos. O primeiro deles não admite a incompletude do ordenamento jurídico, conforme ensina Orlando de Almeida Secco. Nesse sentido, o autor expõe que o ordenamento jurídico não se faz incompleto na medida em que supre as suas omissões por meio de princípios destinados a este fim, ou, ainda, antecipa-se ao surgimento eventual de hipóteses não previstas, tomando medidas acautelatórias, que se suprem automaticamente.

            Orlando de Almeida Secco[14] defende que, ao passo que não existam lacunas no Direito, é possível que existam lacunas na lei, as quais são também chamadas de lacunas formais. De acordo com o autor:

Não é difícil se conceber a omissão de uma lei acerca de hipóteses que possam surgir em decorrência do acelerado ritmo com que evolui a sociedade nos dias atuais. A cada dia surgem novas situações, desafiando a argúcia do legislador.

 

 

            O autor usa, ainda, a fim de justificar sua opinião, o elemento textual presente no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro:

Quando a lei for omissa […]. admite-se, pois, textualmente, que possa haver omissão na lei, o que, em última análise, são as suas lacunas. Assim, pode-se inferir que não há lacuna material, mas pode haver lacuna formal; não há lacuna no Direito, mas pode haver lacuna na lei[15].

            O autor Tércio Sampaio Ferraz Junior[16] encara a questão da seguinte forma:

O problema das lacunas foi concebido, inicialmente, como restrito ao ordenamento legal. A expressão lacunas da lei reconhece, salvo quando assimilamos todo o Direito à lei, que, se o ordenamento legal é lacunoso, não o seria, eventualmente, o Direito como um todo.

 

 

            Assim, depara-se com a questão da integração do Direito, o que concerne à possibilidade de o jurista ultrapassar os limites das normas jurídicas, quando estas são previstas de modo deficiente, ou ainda, quando não são previstas. Nesse sentido, a integração do Direito só é admitida ao passo que também é reconhecida a existência de lacunas.

            Sob um segundo aspecto, o problema das lacunas é visto como uma questão de ordem processual, uma vez que somente fica evidenciado no momento em que é necessária a aplicação de normas jurídicas a um caso concreto para o qual não existe norma.

            Já sob o ponto de vista específico da integração do Direito, na hermenêutica jurídica, fica clara a existência de lacunas, porém, há uma dificuldade em definir o que é uma lacuna propriamente dita.

            Nesse sentido, a lacuna deve ser tida como uma ausência de norma para o caso concreto. Nas palavras de Norberto Bobbio[17],

o caso de lacuna, no entanto, é um caso em que há menos normas do que deveria haver, fato que registramos com as duas conjunções nem... nem, onde o dever do intérprete é, ao contrário, acrescentar aquilo que falta.

Quando não existe solução para um caso concreto, nem da maneira que está exposta na lei, nem daquela que a norma posta acaba excluindo a conduta oposta, então pode se dizer que existe a lacuna. De acordo com Norberto Bobbio[18], “o fato de a solução não ser mais óbvia, isto é, de não se poder tirar do sistema nem a solução oposta, revela a lacuna, isto é, revela a incompletude do ordenamento jurídico”.

De acordo com Tércio Sampaio Ferraz Junior[19], é possível distinguir as lacunas de outros casos como, por exemplo, o das normas abertas ou o dos conceitos valorativos. Uma vez aceita a existência de lacunas no Direito, é óbvio que elas deverão ser completadas, eis que não é possível admitir que o juiz deixe situações concretas sem resolução.

             Onde há lacuna, deve haver uma possibilidade de o juiz completá-la. Esse preenchimento não se dá pela interpretação ou pela aplicação, mas pela integração do Direito.

            De acordo com Miguel Reale[20], o termo integração do Direito é reservado para o preenchimento dos vazios existentes na lei, o que não deve ser confundido com aplicação e nem mesmo interpretação. O termo aplicação diz respeito à imposição da diretriz resultante da norma, feita pelo órgão ou autoridade que se acha investido da competência para fazê-lo. Antes da aplicação, é necessária a interpretação do Direito, que consiste em uma prévia escolha, de natureza axiológica, entre várias interpretações possíveis.

         A partir da ideia de que existem efetivas lacunas no sistema jurídico, é de vital importância compreender a função do juiz nas decisões judiciais. O Judiciário é o órgão responsável por dar respostas às incompletudes presentes no Direito à sociedade. Ao Judiciário pertence a tarefa de ser o guardião das garantias fundamentais dos cidadãos.

2 CARACTERÍSTICAS DA JURISDIÇÃO[21] NO ORDENAMENTO JURIDICO NACIONAL

                                                    

2.1 Competência

A competência é outro ponto importante a ser explorado, uma vez que é por meio dela que se cria a possibilidade de o juiz dirimir conflitos de forma correta e organizada.

        Essa organização faz-se necessária ante a multiplicidade de demandas que foram sendo criadas e que, por isso, precisam de resolução. A grande quantidade de ações levou o Estado a encontrar uma forma de organizar as várias provocações feitas à jurisdição, para que essas fossem devidamente resolvidas pelos juízes.

           Para Athos Gusmão Carneiro[22],

 

todos os Juízes exercem a jurisdição, mas a exercem em uma certa medida, dentro de certos limites. São, pois, “competentes” somente para processar e julgar determinadas causas. A “competência”, assim, é a medida da jurisdição, ou ainda, é a jurisdição na medida em que pode e deve ser exercida pelo juiz.

 

O juiz competente deve ser aquele considerado apto para processar e julgar determinada demanda, de acordo com critérios e/ou características que integram a competência. Tais critérios podem ser encontrados, por exemplo, na legislação constitucional e na legislação processual civil.

     De acordo com Humberto Theodoro Júnior[23], os critérios legais levam em conta a soberania nacional, o espaço territorial, a hierarquia de órgãos jurisdicionais, a natureza ou o valor das causas, as pessoas envolvidas no litígio.

Ao falar em competência, faz-se necessário tratar do princípio do juiz natural. Sobre o assunto, Athos Gusmão Carneiro menciona[24]: “A atividade jurisdicional é indeclinável, e somente pode ser exercida, caso a caso, pelo juiz natural”.

A Constituição Federal dispõe em seu artigo 92 as hipóteses de competencia referente aos órgão do poder judiciário. Assim, o sistema brasileiro somente admite órgãos jurisdicionais previamente estabelecidos, com caráter de generalidade, sem que seja possível a criação de tribunais e juízos de exceção para o julgamento de causas individualizadas[25].

       Em suma, os juízes competentes são aqueles indivíduos que foram, mediante lei, investidos na função de julgadores das lides e devem exercer sua função jurisdicional, respeitando o devido processo legal e as garantias fundamentais asseguradas na Constituição Federal, assim como toda a lei processual.

2.2 Independência do poder judiciário e do juiz

Ainda como característica da jurisdição no ordenamento jurídico brasileiro, há de ser mencionada a independência do Poder Judiciário e, por consequência, a independência do juiz. É justamente a partir desta premissa que se torna possível a atuação do juiz perante o processo de forma legítima e imparcial.

O surgimento da independência judiciária tem origem na teoria da separação de poderes, segundo a qual os poderes executivo, legislativo e judicial constituem três poderes públicos autônomos que se equilibram e controlam mutuamente a fim de prevenir a ocorrência de abusos de poder prejudiciais a uma sociedade livre.[26]

             Nesse sentido, Moacyr Amaral[27] expõe que

a independência do poder judiciário se reveste de características especiais, porque nela está a sua própria força. Sendo sua função específica a de compor conflitos de interesses pela aplicação da lei aos casos concretos, ou seja, julgar, fazer justiça.

Não somente o Poder Judiciário, enquanto instituição, mas também os juízes individualmente considerados que decidem sobre casos concretos devem partilhar desta característica da jurisdição, pois assim poderão ser capazes de exercer as suas responsabilidades na medida de sua competência, sem interferências do poder executivo ou legislativo, ou de outras origens inadequadas.

A independência é, então, uma conduta a ser adotada pelos juízes ao exercerem a função jurisdicional. Além disso, ela é necessária para garantir a imparcialidade do juiz, e assim conceitua Ernani Fidelis:

Para assegurar a imparcialidade do juiz, é ele dotado de completa independência a ponto de não ficar sujeito, no julgamento, a nenhuma autoridade superior. No exercício da sua jurisdição, o juiz é soberano[28].

Complementando a ideia anterior, Athos Gusmão Carneiro refere que “a jurisdição, monopólio do Poder Judiciário, é exercida pelos juízes independentes, imparciais e desinteressados[29]”.

Finalmente, deve-se ressaltar que a independência dos juízes não foi criada para benefício pessoal dos próprios juízes, mas para proteger os seres humanos contra os abusos de poder. Daqui decorre que os juízes não podem agir arbitrariamente de forma alguma, decidindo os casos em função das suas preferências pessoas, e devem ter, isto sim, o dever de aplicar a lei.[30]

2.3 Imparcialidade do Juiz no ordenamento jurídico

O juiz é parte integrante do processo, tendo como função dizer o Direito àqueles que vem buscar a jurisdição, e, por isso, deve ficar distanciado das partes, pois somente assim poderá verificar com mais clareza qual delas é mais verossímil em suas alegações e capacidade probatória.

Considerando a função praticada pelo juiz, sob a óptica do Professor Ovídio A. Baptista da Silva[31], como sendo um ato ou atividade que leva a lei, nos patamares constitucionais, como objeto de seu agir, vale dizer que o objetivo que se alcança com a aplicação dessa norma é somente garantir que o Direito alegado, subjetivo, portanto, seja cumprido e efetivado. Para isso, o Juiz deve ser considerado um sujeito imparcial na relação processual apresentada, ou seja, seu único interesse deve ser aplicar o ordenamento jurídico a partir do horizonte constitucional, de modo que se encontre, assim, um estado de bem estar social, assegurando-se o Direito ao tutelado.

No tocante à atividade de aplicação da lei, ou, na falta dela, de outras formas integradoras do Direito ao caso concreto, o princípio da imparcialidade[32] é de vital importância.

A imparcialidade,  é um dever de função do juiz, no sentido de que este tem o dever, enquanto magistrado e operador do Direito, de não ter nenhuma relação com a lide sob a qual está exercendo sua jurisdição. Mais ainda, enquanto juiz, ele não pode e não deve ter nenhum interesse particular na demanda.

               O conceito de imparcialidade está inteiramente relacionado à distância que o juiz deve manter das partes, como expõe Rui Portanova[33]:

 

O juiz deve submeter-se ao governo das leis e agir como um guardião do sistema jurídico, mantendo-se equidistante dos interessados. Sua atividade subordina-se exclusivamente à lei.

 

 

               O autor ainda expõe:

A dificuldade na concretização de elementos conceituais deve-se, por certo, à grande extensão de fatores, inclusive inconscientes, que afastam as condições psicológicas de se julgar com isenção. Desses fatores não está a salvo o juiz honesto, probo e honrado, o qual deve ser primeiro a suspeitar, não de sua integridade moral, mas de seu estado d alma[34].

Nesse contexto, à luz dos estudos acima, podemos perceber que a imparcialidade do juiz é um dever inerente à atividade jurisdicional, a fim de que esta dê segurança jurídica a quem vem postular perante o Poder Judiciário.

Portanto é por meio da imparcialidade que o postulante vem a ter seu Direito garantido, que é assegurado ao cidadão em qualquer hipótese, ainda que não haja previsão legal específica para o caso concreto. Além da aplicação da lei, o que implica também a sua interpretação, existem outras formas que garantem que o juiz exerça a sua atividade de forma segura e satisfatória.

3 A COMPLEMENTAÇÃO DAS LACUNAS

 

 

3.1 A integração do sistema jurídico

Admitindo-se a existência de lacunas, é necessário que haja uma complementação delas pelo intérprete da lei, o que ocorre a partir da integração do sistema jurídico.

Segundo Gustavo Felipe Barbosa Garcia[35], “a integração do Direito significa a tarefa de completar o ordenamento jurídico, por meios dos métodos ou processos de integração”.

As formas de integração do sistema jurídico podem ser classificadas como sendo de autointegração ou de heterointegração. Para Maria Helena Diniz[36], a integração das lacunas

é a técnica mais difícil para aplicar o Direito, requerendo, maior sagacidade dos juízes. No nosso Direito, dois são os mecanismos por meio dos quais se completa, dinamicamente, um ordenamento: autointegração e heterointegração.

De acordo com Miguel Reale[37], verificamos a autointegração quando a integração do ordenamento jurídico ocorre aplicando recursos internos a ele, ou recorrendo ao próprio âmbito da mesma fonte de Direito dominante. O exemplo típico de autointegração é a analogia.

             Para Norberto Bobbio[38], a autointegração

consiste na integração cumprida através do mesmo ordenamento, no âmbito da mesma fonte dominante, sem recorrência a outros ordenamentos e com o mínimo recurso a fontes diversas da dominante.

Com relação à heterointegração, comenta Miguel Reale[39], esta de dá quando a integração do ordenamento jurídico ocorre aplicando recursos auridos fora dele, como seria o caso de aplicar norma de ordenamento jurídico de outro país.

Segundo Norberto Bobbio[40], “a heterointegração é operada através de ordenamentos diversos, recursos e fontes diversas daquela que é dominante (identificada, nos ordenamentos que temos sob os olhos, com a lei)”.

Como instrumentos integradores, temos, em síntese, a analogia, os costumes e os princípios, conforme dispõe o Art. 4° da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito”.

Os instrumentos integradores têm grande importância no que tange à complementação do ordenamento jurídico, pois é através desses que ao juiz é dada a possibilidade de prestar a jurisdição, de forma concreta e respeitado os preceitos reguladores do Direito.

Nesse âmbito, o Judiciário não pode ficar inerte a um caso posto à jurisdição, ou seja, ao juiz não é autorizado deixar de prestar a jurisdição, conforme disciplina o Art. 126 do Código de Processo Civil.

3.1.1 Fontes de autointegração do sistema jurídico aplicadas à solução das lacunas

       A analogia é o exemplo clássico de autointegração, apresentada pelo legislador, conforme mencionado anteriormente, no Artigo 4º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, para a colmatação das lacunas. Ela pode ser aplicada nos casos em que o juiz percebe uma semelhança entre um caso previsto e o que está sendo decidido ou analisado.

Nesse sentido, Maria Helena Diniz refere que[41]

(..) o Direito expresso ou literal não abrange analogia; esta dilata a aplicação da lei a casos por ela não declarados e que, por identidade de razão, devem submeter-se a ela. A analogia compara e, da semelhança, conclui pela aplicação da norma ao caso em tela, sendo, portanto, um processo mental.

A autora[42] ainda aduz:

[...] O elemento de identidade entre os casos não seja qualquer um, mas sim fundamental ou de fato que levou o legislador a elaborar o dispositivo que estabelece a situação a qual se quer comparar a norma não contemplada. Terá que haver uma verdadeira e real semelhança e a mesma razão entre ambas as situações. Meras semelhanças aparentes, afinidades formais ou identidades relativas a pontos secundários não justificam o emprego da argumentação analógica.

 

 

A analogia, consoante Miguel Reale[43] é definida como um processo analógico, o qual é, no fundo,

 

um raciocínio baseado em razões relevantes de similitude. Quando encontramos uma forma de conduta não disciplinada especificamente por normas ou regras que lhe sejam próprias, consideramos razoável subordiná-la aos preceitos que regem relações semelhantes, mas cuja similitude coincida em pontos essências.

 

 

A analogia pode ser classificada em analogia legal, ou analogia legis, e analogia jurídica, também chamada de analogia juris. A primeira é conceituada por Gustavo Felipe Barbosa Garcia[44] como quando se aplica uma norma legal para regular a situação não prevista em lei. A segunda é, de acordo com o autor, quando a lacuna da lei é suprida aplicando-se os princípios gerais de Direito ou se obtém a regra, a ser aplicada ao caso não previsto especificamente na lei, com base em um complexo de normas presentes no ordenamento.

Nesse diapasão, a analogia legis encontra fundamento em um dispositivo legal existente, que é aplicável a uma hipótese parecida, constituindo-se, portanto, em uma nova construção normativa, uma decisão com argumentos lógicos, o que proporciona ao tutelado uma espécie de segurança e estabilidade jurídica, sendo que esta só é possível devido ao caráter de flexibilidade do Direito.

Para Miguel Reale, a analogia juris nada mais é do que o aproveitamento dos princípios gerais de Direito, e portanto, sairia do campo da analogia para adentrar no campo próprio dos princípios.

Necessário frisar que a analogia não deve ser confundida com a interpretação extensiva, embora ambas se destinem a implementar e cobrir a vontade da lei. Norberto Bobbio[45] diferencia esses dois preceitos de forma mais simples, aludindo:

 

Foram elaborados vários critérios para justificar a distinção. Creio que o único critério aceitável seja aquele que busca colher a diferença com respeito aos diversos efeitos, respectivamente, da extensão analógica e da interpretação extensiva: o efeito da primeira é a criação de uma nova norma jurídica; o efeito da segunda é a extensão de uma norma para casos não previstos por esta.

 

 

3.1.2 Fontes de heterointegração do sistema jurídico aplicadas à solução das lacunas

Conforme determinado no Art. 4º da Lei de Introdução às Normas de Direito, o costume é uma das formas de complementação em caso de lacuna, e, seguindo-se a conceituação apresentada anteriormente, considera-se uma fonte de heterointegração. Nesse sentido, os costumes poderão ser utilizados pelo aplicador da norma como fontes de expressão do Direito, visto que eles retratam uma realidade recorrente na sociedade.

             De acordo com Gustavo Felipe Barbosa Garcia[46], o costume é a norma jurídica que resulta da prática uniforme, geral e reiterada de certo comportamento, com a convicção de que corresponde a uma necessidade jurídica e social.

Para Alysson Leandro Mascaro[47], o costume é definido como:

 

 [...] hábitos aos quais se dá a aura obrigatoriedade. Sua aplicação como fonte de integração em casos de lacunas também é problemática, por sua incerteza institucional. De qualquer modo, nas mãos do Estado também está o poder de aceitar ou não um costume como hábito que se deve aplicar a uma lacuna.

 

Nesse sentido, o costume é composto por alguns elementos, que o integram a fim de que se possa especificar e diferenciar os costumes dos demais instrumentos de integração do Direito, conforme menciona Maria Helena Diniz[48]:

 Resulta o costume da união de dois elementos: a consuetudo, que é o uso continuado (elemento externo ou objetivo) e a opinio juris et nessesitatis, que é a convicção de que a norma é necessária (elemento interno subjetivo). A consuetudo e a opinio são elementos integrantes do processo de formação do costume.

 

Por fim, a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro ainda menciona, em seu Artigo 4º, como fonte integradora, os Princípios Gerais de Direito. Portanto, de acordo com o artigo supracitado, há a possibilidade de invocar os princípios gerais como forma de heterointegração no caso de constatar-se a presença de uma lacuna.

Considera-se que os princípios gerais de Direito sejam uma forma de heterointegração, visto que não fazem parte do ordenamento jurídico per se, de seu repertório de normas.

        De forma a consolidar o exposto, vale mencionar o conceito trazido por Ronald Dworkin[49]:

 

Denomino princípio um padrão que deve ser observado, não por que vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas por que é uma exigência de justiça ou equidade, ou alguma outra dimensão da moralidade.

Norberto Bobbio[50] não considera os princípios gerais de Direito como forma de heterointegração, e conceitua-os como normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. Para o autor, os princípios gerais são normas como todas as outras, visto que, se são extraídos a partir de normas, devem ser considerados normas também. Ainda, os princípios são extraídos a partir das normas para cumprir a mesma função delas, ou seja, para regular um caso.

Consoante o autor[51], a finalidade de extrair princípios em casos de lacuna é regular um comportamento não regulamentado. Segundo ele, ainda, os princípios servem ao mesmo escopo a que servem as normas expressas.

Vale ainda mencionar o entendimento de Miguel Reale[52], que se pronuncia no sentido de que, “na realidade, a função integradora dos princípios gerais é bem mais ampla”. Sendo assim, pode-se concluir que os princípios gerais do Direito, além de serem forma de heterointegração em caso de verificação de lacunas, também têm efetividade na elaboração de novas normas.

Segue o autor expondo que

[...] alguns deles se revestem de tamanha importância que o legislador lhes confere força de lei, inclusive no plano constitucional, consoante dispõe a nossa Constituição sobre os princípios de isonomia (igualdade de todos perante a lei), de irretroatividade da lei para proteção dos Direitos adquiridos etc.

Os princípios gerais de Direito devem ser tomados, portanto, como base teórica ou as razões lógicas do ordenamento jurídico[53], podendo ser invocados como fonte de heterointegração no caso de lacunas.

           Os princípios podem ser definidos como também disciplina Luiz Guilherme Marinoni[54], referindo Alexi, como “normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídico e fáticas existentes”.

Sendo assim os princípios devem ser entendidos de forma mais ampla, como disciplina Luiz Guilherme Marinoni[55] amparado por Alexy:

Eles são, tanto quanto regras razões para juízos do dever ser. Os princípios recortam certas parcelas da realidade e colocam-nas sob seu âmbito de proteção. Consequentemente, a partir do momento em que se projetam a realidade, eles servem de fundamento para normas específicas que orientam concretamente a ação, seja num sentido positivo (prestação fática ou jurídica), seja num sentido negativo (omissão). No âmbito entre a Constituição e a lei , isso significa que os princípios, de um lado, impõem aos legisladores deveres de produção de normas jurídicas e, de outro, imunizam determinadas posições jurídicas – as parcelas da realidade recolhidas em seu âmbito protegido – do alcance da atuação da lei.

 

Cabe ressaltar, de forma crítica aos princípios geras do Direito, a posição do autor Lenio Luiz Streck[56]:

 

A questão que se coloca também aqui é: sobre o primado dos princípios constitucionais, que, segundo quase unanimidade dos constitucionalistas, vieram para substituir o modelo de regras do positivismo, de que modo é possível continuar a se falar em princípios gerais do Direito?

Observa-se que o problema não é só de nomenclatura não valendo, portanto, a assertiva, por vezes vista em parte da literatura nacional, de que os princípios gerais do Direito foram “positivados” na Constituição. Trata-se de uma análise equivocada da função dos princípios constitucionais, ou seja, enquanto os princípios gerais do Direito se constituem em uma “autorização” para discricionariedade [...], os princípios constitucionais apresentam-se, contemporaneamente, como um contraponto a essa discricionariedade.

Dessa forma, tem-se que os princípios não podem mais ser usados de forma genérica, ou como auxiliares da aplicação de normas ou regras pertencentes ao ordenamento jurídico, mas devem ser consideradas em âmbito constitucional como fontes que exprimem a realidade fática de cada caso concreto. Assim, a eles podem ser atribuídos critérios e valores que orientam a ordem jurídica, a compreensão e a aplicação das regras ante a um caso concreto.

     Ainda, existe outra fonte de heterointegração do Direito, que deve ser mencionada, apesar de não citada na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro.

Em simples palavras, pode-se dizer que a equidade pode ser considerada fonte de integração que tem como função adequar uma norma geral para a realidade do caso concreto, a fim de encontrar uma decisão que demonstre a maior proximidade possível com a justiça.

            Miguel Reale[57] expõe o seguinte conceito de equidade:

Há casos em que é necessário abrandar o texto, operando-se tal abrandamento através da equidade, que é, portanto, a justiça amoldada à especificidade de uma situação real.

Maria Helena Diniz[58] expande o conceito a que se fez referência:

Desempenha a equidade o papel de um corretivo, de um remédio aplicado pelo julgador para sanar defeitos oriundos da generalidade da lei, pois a aplicação fiel de uma norma a um caso concreto poderia ser injusta ou inconveniente. A equidade é, teoricamente, uma virtude de que pode lançar mão o aplicador para temperar os rigores de uma fórmula demasiado genérica, fazendo com que esta não contrarie os reclamos da justiça.

Embora o instituto da equidade tenha várias funções, a que nos interessa referir é a equidade como elemento integrativo. Nesse sentido, dispõe Maria Helena Diniz[59] que a equidade é um elemento de integração. Segue a autora:

A equidade exerce função integrativa na decisão:

a) dos casos especiais que o próprio legislador deixa, propositadamente, omissos [...]; b) dos casos que, de modo involuntário, escapam à previsão do elaborador da norma; por mais que este queira abranger todos os casos, ficam sempre omissas dadas as circunstâncias, surgindo então, lacunas involuntárias, que devem ser preenchidas pela analogia, costume, princípios gerais de Direito, sendo que, na insuficiência desses instrumentos, se deverá recorrer à equidade.

A equidade pode ser entendida, então, como uma alternativa dada ao juiz para ajustar as generalidades que a lei apresenta a determinado caso concreto, dando-lhe, assim, um sentido de justiça. Portanto, nos casos em que há ausência de norma, o juiz poderá usar a equidade de forma a suprir tal lacuna.

3.2 A atividade do juiz como garantidor da Constituição

Ao discorrer sobre a problemática das lacunas, mais precisamente no que diz respeito à atuação do juiz frente a elas, é importante referirmos, de modo breve, alguns relevantes atributos do juiz frente às decisões judiciais.

Nesse âmbito, além de utilizar a independência, competência e imparcialidade, características inerentes a toda atividade jurisdicional, ele deve também motivar a sua decisão como forma de demonstrar que a sua vontade está vinculada aos preceitos inscritos no ordenamento jurídico, assim disciplina o Art. 93, IX da Constituição Federal

Cabe ressaltar que, ao fundamentar sua decisão, a qual foi solucionada por meio da complementação de uma lacuna, o juiz deve respeitar certos limites, e assim expõe Maria Helena Diniz[60]:

Assim sendo, o poder jurisdicional não é arbitrário, está limitado pelas normas. Entretanto esse poder é teleológico, ou seja, é autorizado tendo em vista um fim, sendo lícita a conduta do magistrado, desde que não exceda estas finalidades tuteladas pelas disposições normativas. Limitada está a tarefa julgadora, pois o órgão judicante além de se ater as normas processuais, deve, por exemplo:[...] Levar em conta, ao preencher as lacunas, o espírito informante do ordenamento jurídico, atendendo-se ao complexo daquelas convicções sociais vigentes, que integram o sistema valorativo da ordem jurídica em vigor, bem como o disposto nos arts. 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil (atual lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro).

 

Contudo, não são só tais limites que o juiz deve respeitar quando tiver que motivar sua decisão de forma correta e coerente. Ele deve, antes de tudo, levar em consideração as garantias fundamentais às quais a Constituição Federal faz referência. Vale referir que, dentre elas, está o próprio Direito à tutela jurisdicional, como disciplina o Art. 5º, XXXV da Constituição Federal.

De acordo com Daniel Mitidiero[61],

 

os Direitos fundamentais vinculam o Estado [...]. A ausência de legislação infraconstitucional ou mesmo a deficiência de legislação existente autoriza o Poder Judiciário a concretizar de maneira imediata o Direito fundamental à tutela jurisdicional.

 

Dessa forma, a tutela jurisdicional, no que tange às decisões judiciais que têm como objeto de fundamentação uma das formas de complementação das lacunas deve basear-se e ou ser motivada em conformidade com a Constituição.

        Nesse sentido, disciplina Daniel Mitidiero[62] que “a fortiori obriga o Estado a interpretar as normas infraconstitucionais existentes sempre levando em consideração a eficácia imediata das normas constitucionais”.

Essa interpretação conforme a constituição revela uma nova teoria que se contrapõe ao positivismo, conforme refere Luiz Guilherme Marinoni[63]:

A compreensão da lei a partir da constituição expressa outra configuração ao positivismo crítico ou de pós-positivismo, não porque atribui às normas constitucionais o seu fundamento, mas sim por que submete o texto da lei a princípios materiais de justiça e Direitos fundamentais, permitindo que seja encontrada uma norma jurídica que revele a adequada conformação a lei.

 

A fim de ressaltar a importância da Constituição na resolução das demandas postuladas, vale referir as palavras de Lênio Luiz Streck[64]:

 

Comportar-se constitucionalmente é, pois, resistir constitucionalmente. Um comportamento constitucional implica compreender a constituição existencialmente, enquanto presença constante em nosso cotidiano e no nosso labor jurídico. É compreender que sempre estamos a fazer juízos acerca da (in)constitucionalidade de qualquer ato que tenha relevância jurídico-social. E tenhamos claro que, no campo da aplicação do Direito, sempre fazemos jurisdição constitucional.

 

 

A fundamentação decisional do juiz deve ser mais do que constitucional, mas democrática, e estar de acordo com os princípios e valores que são inerentes ao sistema jurídico, uma vez que, de acordo com Juarez Freitas, este é tido como

uma rede axiológica e hierarquizada topicamente de princípios fundamentais, de normas estritas (ou regras) e de valores jurídicos cuja a função é a de, evitando ou superando as antinomias em sentido latu, dar cumprimento ao objetivos justificadores do Estado Democrático, assim como se encontram consubstanciados, expressa e implicitamente na Constituição. [65]

Considerando essa definição e revelando a importância de se pensar efetivamente em um Estado Democrático de Direito, Lenio Luiz Streck[66] faz uma importante contribuição critica no que tange ao Art. 4º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro:

Com efeito, com relação à Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, na era dos princípios e do neoconstitucionalismo e do estado democrático de Direito, tudo está a indicar que não é mais possível falar em “omissão da lei” que pode ser “preenchida” a partir da analogia (sic), dos costumes (quais?) e dos princípios gerais do Direito. [...] A lei de introdução ao próprio Direito (sic), pautada na interpretação do Código Civil e nos parâmetros para uma aplicação geral do Direito, está contribuindo para uma resistência de um modelo (positivista) em relação ao novo constitucionalismo, que ingressa na história justamente para superar o antigo modelo. Desse modo, jamais se terá a constitucionalização do Direito Civil; no máximo ter-se a uma codificação da Constituição.

 

            Considerando a relevância e obrigatoriedade de fundamentação das decisões emanadas do Poder do Judiciário, tem se que o juiz, como representante do Estado, deve fazê-la de forma a respeitar os princípios e valores constitucionais, a fim de dar ao postulante uma maior possibilidade de concretização da decisão, que muitas vezes é traduzida na garantia do respeito a seus Direitos constitucionais, dando sentido a segurança jurídica.

  

[1] DINIZ, Maria Helena Diniz. As Lacunas no Direito. Editora Saraiva, 6ª Ed. São Paulo: 2000, p.22. Apud FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A Ciência do Direito. São Paulo: Atlas S.A., 2006.

 

[2] DINIZ, Maria Helena, As Lacunas no Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 2000, p.22.

[3] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10ª Edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p.19

[4] FREITAS, Joares. A Interpretação Sistemática do Direito. 4ª ed, rev. e comp. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p.54.

[5] REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano I - nº 1 207.Sistema Jurídico e Teoria Geral dos Sistemas – Aulas do professor Tercio Sampaio Ferraz Júnior nos dias 12, 14 e 16/03/73 – Apostila do “Curso de Extensão Universitária” da Associação dos Advogados de São Paulo, p. 210.

[6] Ibidem.

[7] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Universidade de Brasília, 2009, p.129.

[8] Idem, p.133.

[9] FREITAS, Juarez. A interpretação Sistemática do Direito. 4ª ed. rev. e comp. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. p.124.

[10]          DANTAS Aldemiro. Lacunas no Ordenamento Jurídico. São Paulo: Editora Manole, 2005, p.45.

[11]         Essa visão de Savigny remete-nos à Escola da Exegese, que surgiu  na França, no início dos anos 1800, composta por juristas e juízes que tinham a tendência de ater-se integralmente aos códigos, com influências Napoleônicas. Ela se caracterizava principalmente pela devoção à lei codificada. Essa escola surgiu em um momento histórico no qual os pensadores de maior proeminência consideravam a sociedade estável. No entanto, assim que tal estabilidade começou a se romper, devido às grandes modificações sociais do final do século XIX, a escola exegética tornou-se ultrapassada, tendo surgido, então, a escola do Direito livre.

            Segundo essa escola, o Direito é um fenômeno social, que não pode ser tido como criação exclusiva do Estado, pois se assim fosse, o juiz seria mero replicador do Direito estatal. 

[12]          DANTAS Aldemiro. Op.cit., p.45

[13]          FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. 4ª ed. rev. e comp. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p.49.

[14]          SECCO, Orlando de Almeida. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p.288.

[15]          Ibidem.

[16]          FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A Ciência do Direito. São Paulo: Atlas S.A, 2006, p. 81.

[17]          BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Universidade de Brasília, 2009, p.117.

[18]          Idem, p.139.

[19]          FERRAZ JÚNIOR. Tércio Sampaio. A Ciência do Direito. São Paulo: Atlas S.A, 2006. p.84.

[20]          REALE, Miguel Apud DANTAS, Aldemiro. Op.cit., p.30.

[21]            A fim de definir o escopo em que o juiz deverá atuar, é preciso esclarecer um conceito de jurisdição pertinente, (..)“tem o dever de prestar ao cidadão a tutela que decorre da sua posição jurídica, aplicando a lei na dimensão dos Direitos Fundamentais, e fazendo sempre o resgate dos valores substâncias neles contidos”. (MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp.136-8) .

[22]         CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência. São Paulo: Editora Saraiva 2009.p.71.

[23]          THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 41. ed. Vol. I Rio de Janeiro : Forense, 2004, p.154

[24]          CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência. São Paulo: Editora Saraiva 2009.p.14.

[25]          DOS SANTOS, Ernane Fidélis. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2006, p.13.

[26]         Ver: Direitos humanos na administração da justiça. In: Manual de Direitos Humanos para juízes, magistrados do Ministério Público e Advogados. Série de Formação Profissional. n. 9.Nova Iorque e Genebra, 2003., p.94.

[27]         SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. Vol. I. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p.104.

[28]          DOS SANTOS, Ernane Fidélis. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2006, p.12.

[29]          CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p.12.

[30]          Ver: Direitos humanos na administração da justiça. In: Manual de Direitos Humanos para juízes, magistrados do Ministério Público e Advogados. Série de Formação Profissional. n. 9.Nova Iorque e Genebra, 2003., p.95

[31]          Ibidem.

[32]          O conceito de imparcialidade pressupõe que seja necessário esclarecer o conceito de neutralidade. A neutralidade diz respeito ao sujeito, que tem em si, na sua personalidade, pré-conceitos já determinados e adquiridos por meio de suas experiências como ser humano. Esses pré-conceitos, por sua vez, são opiniões, pensamentos, conhecimentos pré-formados em consequência de algum acontecimento passado ou presente do indivíduo, que ainda permanece em sua memória e faz parte de sua personalidade.

[33]                    PORTANOVA, Rui. Motivações Ideológicas da Sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2000, p.40

[34]                    PORTANOVA, Rui. Motivações Ideológicas da Sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2000, p.40.

[35]          GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Introdução ao Estudo do Direito – Teoria Geral do Direito. São Paulo: Editora Método, 2009, p.138

[36]         DINIZ, Maria Helena. As lacunas no Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 2000, p.138.

[37]          REALE. Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2002, p.297.

[38]          BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Universidade de Brasília, 2009, p.146

[39]          REALE. Miguel. Op.cit.

[40]          BOBBIO, Norberto. Op.cit.

[41]          DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 11ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.115.

[42]         Ibidem.

[43]          REALE. Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2002, p.85

[44]         GARCIA. Gustavo Felipe Barbosa. Op.cit., p.142.

[45]         BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p.155.

[46]         GARCIA. Gustavo Felipe Barbosa. Introdução ao Estudo do Direito. Teoria Geral do Direito. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2009, p.92.

[47]         MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2011, p.152.

[48]          DINIZ, Maria Helena. As lacunas no Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 2000, p.197.

[49]          DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 36.

[50]         BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p.157.

[51]          Idem, p.159.

[52]          REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.304.

[53]          Idem, p.317

[54]          ALEXI, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Apud MARININONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. (Curso de Processo Civil – Vol. I) 4ª Ed. Rev. e Atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.50.

[55]          Ibidem.

[56]          STRECK. Lenio Luiz. Verdade e Consenso- Constituição Hermenêutica e Teorias Discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 211.

[57]          REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.299.

[58]          DINIZ, Maria Helena. Op.cit., p.243.

[59]          DINIZ, Maria Helena. Op.cit., p.264.

[60]          DINIZ, Maria Helena. As lacunas no Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 2000, p.288.

[61]          MITIDIERO, Daniel Francisco. Processo Civil e o Estado Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p.46.

[62]          MITIDIERO, Daniel Francisco. Processo Civil e o Estado Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p.47.

[63]          MARININONI , Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. Curso de Processo Civil. Vol II. 4ª Ed. Ver e Atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.53.

[64]          STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso – Constituição Hermenêutica e Teorias Discursivas – Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p.208.

[65]          FREITAS, Juarez. A interpretação Sistemática do Direito. 4ª Ed. Rev. e Comp. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p.54.

[66]          STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso – Constituição Hermenêutica e Teorias Discursivas Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p.210.

 

 

Elaborado em novembro/2011

 

Como citar o texto:

VIERA, Patricia Santos..A Atuação do Juiz frente as lacunas do Direito. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 20, nº 1048. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/pratica-forense-e-advogados/2695/a-atuacao-juiz-frente-as-lacunas-direito. Acesso em 4 fev. 2013.

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