RESUMO

O presente artigo visa explicar os principais princípios que norteiam o Direito Processual Penal, a partir de uma interpretação sistêmica e evolutiva, demonstrando quais institutos derivam de outros, e, suas aplicações na legislação pátria, seja ela a Constituição Federal ou na legislação infraconstitucional. Mais que apenas olhar os institutos de forma rígida, o objetivo da obra se resume a vislumbrar as origens dos institutos e suas interligações com seus afins, proporcionando ao leitor ter uma perspectiva do conjunto, ao invés de se ater a meros conceitos individuais. Mostra-se o raciocínio que se pode chegar com uso de determinado princípio, e quais serão as suas implicações.

PALAVRAS CHAVE: Direito Processual Penal; Princípios; Interpretação Sistêmica e Evolutiva.

 

1. INTRODUÇÃO

            Falar de princípios é o início da jornada que leva à compreensão de todo um conjunto de valores e regras que regem o Direito. Não pode um bom aplicador da norma, deixar-se esquecer da importância que os princípios têm no ordenamento jurídico pátrio, do contrário, não haverá uma realização completa da intenção legislativa, eis que a mesma deixaria de alcançar seu sentido e alcance.

            Para os aspirantes à compreensão da Ciência Jurídica, devem ter sempre em mente que os princípios não são simples regras autônomas que preveem situações hipotéticas a serem aplicadas quando estas se realizam no mundo concreto, a exemplo das leis, e sim, tratam-se de normas gerais, proposições básicas, fundamentais, típicas, que condicionam todas as estruturas e institutos subsequentes de uma disciplina a serem vistas dentro de um todo, e, sendo parte de um sistema, devem integrar-se a ele, ampliando ou diminuindo sua incidência em razão de valores a serem analisados no caso concreto. Nunca um excluindo o outro, mas complementando o outro, em maior ou menor grau, a depender de suas particularidades.

            Os princípios são regras gerais identificadas como valores fundamentais de um conjunto que, por meio do processo de abstração indutiva, o aplicador irá extrair as ideias-chave que animam todo o complexo de regras. Nesta senda, os princípios armazenam e comunicam o núcleo valorativo essencial da ordem jurídica, e dão forma, definem a feição de determinado ramo.

            O estudo dos princípios não levará, na maioria das vezes, ao conceito ipsis litteris verbis de determinados institutos, porém, como alicerces e fundamentos de uma ciência, seu conhecimento traz consigo parâmetros para interpretação das demais normas jurídicas. Embora não deem as respostas diretas para as perguntas que um jurista pode vir a ter em sua jornada, eles proporcionam a linha de raciocínio que leva à resposta desejada.

            Feita essa análise inicial, o presente trabalho busca explicar, tendo como parâmetro e fonte fundamental a Constituição Federal, seguida por sua vez, pela legislação infraconstitucional codificada e esparsa, que será citada amplamente no decorrer do trabalho, a existência dos principais princípios que norteiam e regem a sistemática processual penal vigente, escalados a partir de uma interpretação evolutiva e sistêmica.

            O objetivo é desenvolver uma linha de raciocínio, na qual, como se verá adiante, demonstrando que os princípios são decorrência lógica de valores fundamentais, alguns destes dispostos na Constituição Federal, e, como derivados lógicos, seguem uma escala evolutiva de pensamento, ao mesmo tempo em que devem ser vistos como um conjunto, como parte de um todo, e não como simples peças autônomas.

            Não se deixará, contudo, de analisar e conceituar cada instituto, assim como, mostrar manifestações destes ao longo de todo ordenamento jurídico vigente.

 

2. O PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O INTERESSE PRIVADO    

            Conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello em seu Curso de Direito Administrativo, existem dois supraprincípios dos quais derivam todos os demais princípios e normas do Direito Administrativo, sendo a supremacia do interesse público sobre o privado o primeiro deles.

            Este instituto, também chamado de princípio do interesse público ou da finalidade pública, implícito na ordem jurídica vigente, ou seja, sem definição legal, significa que os interesses da coletividade são mais importantes que os interesses individuais, razão pela qual a Administração, como defensora dos interesses públicos, recebe da lei poderes especiais não extensíveis aos particulares.

            Pouco tratado na doutrina processual penal, é este princípio que possibilita a atuação do Estado na privação da liberdade de um indivíduo que viola as regras de conduta sociais. Ao privar alguém de sua liberdade, em razão do cometimento de um delito, o Estado pretere o direito individual ambulatorial em prol do bem-estar social, sendo amparado para tanto pelo princípio ora em comento.

            Além da possibilidade de restrição da liberdade, no Código de Processo Penal, têm-se como exemplos da supremacia do interesse público, não excluindo outros, a possibilidade de toda pessoa ser testemunha, segundo dita o art. 202 do CPP, assim como a obrigatoriedade da testemunha devidamente intimada a comparecer em juízo, bem como a penalidade por sua desobediência, conforme dispõe os artigos 218 e 219, ambos do CPP:

Art. 218.  Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.

Art. 219. O juiz poderá aplicar à testemunha faltosa a multa prevista no art. 453, sem prejuízo do processo penal por crime de desobediência, e condená-la ao pagamento das custas da diligência. (Redação dada pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977).

No que tange ao tema aqui tratado, há como exemplo da supremacia da finalidade pública na Constituição Federal, os incisos XLII e XLIV, do art. 5º, que listam o racismo e a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, como crimes inafiançáveis e imprescritíveis, e, ainda no art. 5º, em seu inciso XLIII, que dita:

XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;    

            Assim sendo, mostra-se que tais situações por caracterizarem uma ofensa e um prejuízo maior ao interesse coletivo, em que pese o objetivo deste interesse, qual seja a ordem social (tema que será tratado ao longo do trabalho), exigem um tratamento diferenciado por parte do Estado, tanto no que se refere à repressão, quanto à penalidade.

 

3. O PRINCÍPIO DA INDISPONIBILIDADE DO INTERESSE PÚBLICO

            O segundo supraprincípio tratado pela doutrina administrativa é o princípio da indisponibilidade do interesse público que enuncia: os agentes públicos donos não são donos dos interesses por ele defendidos.

Assim, embora o princípio da supremacia da finalidade pública favoreça a Administração com um patamar de superioridade em face dos administrados, também exige maiores cuidados e obediência a inúmeras formalidades, tendo em vista que essa atuação deve ocorrer nos limites da lei, não podendo esse interesse ser livremente disposto. Nesta senda, a indisponibilidade serve para limitar a atuação do agente público, revelando-se um contrapeso à superioridade descrita na supremacia.

            Conforme este mandamento, os agentes públicos estão obrigados a atuar, não segundo sua própria vontade, mas do modo determinado pela legislação. Como decorrência dessa indisponibilidade, não se admite tampouco que os agentes renunciem aos poderes legalmente conferidos. Os bens, direitos e interesses públicos são confiados ao administrador para gestão, nunca para sua disposição, lembrando que atividade administrativa é um múnus público, encargo, obrigação para os administradores.

            O conceito de interesse público pode ser definido como o interesse resultante do conjunto dos interesses individuais coincidentes em torno de um bem da vida que lhes significa um valor, proveito ou utilidade de ordem moral ou material, que cada pessoa deseja ter em sua própria esfera de valores e que passa a ser público quando dele participa e compartilha um tal número de pessoas que o mesmo passa a ser identificado como um querer valorativo predominante na sociedade.

            A noção de finalidade pública é vista na titularidade do Ministério Público no que se refere à ação penal, eis que como um membro do Estado, cabe, como regra, ao MP promover o procedimento avaliará a conduta do indivíduo, que poderá ou não privá-lo de sua liberdade. E, como decorrência do princípio da indisponibilidade do interesse público, uma vez sendo titular da ação penal, não pode o parquet de ela dispor, conforme vedação o art. 42 do Código Processo Penal, que em suas letras afirma: “O Ministério Público não poderá desistir da ação penal”.    Na mesma linha, conforme o art. 576, também do CPP, diz que o MP não poderá desistir de recurso interposto. E, no tocante ao Inquérito Policial, utilizando esta mesma orientação, o art. 17 do CPP proíbe a Autoridade Policial arquivar de ofício o Inquérito.

Conforme o entendimento de que uma vez que haja indícios para promover o Inquérito Policial, o delegado deve fazê-lo, assim como uma vez que exista justa causa suficiente, o Ministério Público deve denunciar, foram criados mecanismos para proteger o interesse público defendido em tais institutos, a exemplo da ação penal privada subsidiária da pública, prevista no art. 5º, LIX, da Constituição Federal, e, no art. 29 do Código de Processo Penal, onde, uma vez que o MP tenha ultrapassado o prazo para denúncia, pode o ofendido fazê-lo dentro do prazo decadencial de seis meses.

 

4. A PAZ SOCIAL

            Tanto o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, e o princípio da indisponibilidade deste mesmo interesse seguem uma fórmula simples na qual visam uma finalidade: a paz social. Esta paz social, objetivo da sociedade, sua razão de ser, significa o bem-estar comum. Sendo o interesse buscado e protegido, quando aqui tratado o conceito de interesse público.

            Como visto anteriormente, a supremacia do interesse público ampara a atuação do Estado na privação de liberdade do indivíduo (item 2 do presente trabalho), mas a justificativa para a restrição de um direito individual é embasada em prol do bem-estar comum, pois ao agir contra o ordenamento jurídico, o indivíduo vai de encontro à ordem coletiva, cabendo assim, uma pena privativa de liberdade, a favor da manutenção da paz social.

            Deveras, a paz social, interpretada como uma sociedade em ordem, justifica, também, a existência de tratamento excepcional para alguns tipos penais, a exemplo do racismo e da ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, que a lei lista como imprescritíveis e inafiançáveis.

            Para uma melhor compreensão do tema, sugere-se uma visualização da seguinte fórmula matemática:

Supremacia do Interesse Público + Indisponibilidade da Finalidade Pública = Paz Social

            Assim, vê-se claramente que tanto a supremacia da finalidade pública e a indisponibilidade da coisa coletiva são institutos que objetivam a ordem coletiva, razão de ser primária do agrupamento humano em sociedade.

              Esse objetivo vem tratado no art. 3º, da Constituição Federal, que em seus incisos diz:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

São formados na esteira deste entendimento os demais princípios que norteiam o Direito Processual Penal que serão tratados mais adiante.

 

5. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA C/C DIREITO À LIBERDADE

            A dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, conforme prega o art. 1º, III, da Constituição Federal, c/c o direito fundamental à liberdade, previsto no art. 5º, caput, da CF, constituem um desdobramento da noção de pacificação social tratada no tópico anterior, na qual, a liberdade, vista como bem máximo do indivíduo, apenas em última ratio poderá ser suprimida.

            Nesta senda, o inciso LXI, do art. 5º, da Constituição Federal prevê:

LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

            Conforme a leitura do dispositivo vê-se que a prisão preventiva ou em flagrante são exceções, pois a regra é a liberdade, e esta apenas poderá ser restringida se cumpridos os ditames constitucionais e os requisitos previstos em lei. De forma a se preservar o direito ambulatorial, a própria Constituição traz mecanismos contra atos ilegais que atentem contra este direito, a exemplo do inciso LXV, do art. 5º, e, do Habeas Corpus, previsto no inciso LXVIII, do mesmo art. 5º, da Constituição Federal:

LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;      

LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;

            Ainda, mantendo a ideia de a regra ser a liberdade, a CF traz em seu art. 5º, inciso LXVI:

LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;

            Como desdobramento do raciocínio ora narrado no presente tópico, a noção de liberdade c/c a dignidade da pessoa humana derivam dois princípios muito importantes para a dogmática processual penal, o princípio da presunção de inocência ou presunção de não culpabilidade, e, o princípio do favor rei ou favor libertatis.

 

5.1. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA OU PRESUNÇÃO DE NÃO CULPABILIDADE

            Embora parte da doutrina nomeie este princípio como presunção de inocência, se assim o fosse, seria o mesmo que afirmar que toda e qualquer medida constritiva de direitos que fosse imposta a um indivíduo seria tida como inconstitucional, pois, neste caso, seriam cerceados os direitos de um inocente.

Portanto, tal instituto é mais bem compreendido se for tratado como presunção de não culpabilidade, trabalhando-se com a premissa de não antecipar o juízo de culpa, eis que o art. 5º, LVII, da Constituição Federal diz: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Assim, até que sobrevenha uma sentença penal condenatória transitada em julgado, ou seja, até que se termine o procedimento processual no qual seja comprovado o fato imputado ao indivíduo, não pode este sofrer os efeitos da pena, qual seja, a própria pena decretada na decisão judicial e seus efeitos acessórios, a exemplo da inscrição no rol de culpados.  Sendo que tais medidas constritivas de direito, nesta lógica, figurar-se-iam como constitucionais, já que não se substanciam em reconhecimento antecipado e expresso de culpa, não configurando antecipação de pena.

            É com base neste princípio que segue o entendimento de que o fato de estar sendo investigado em Inquérito Policial não transforma o indivíduo em culpado, não “manchando” sua folha criminal, o mesmo se aplica à hipótese de estar respondendo processo penal em que ainda não tenha advindo uma sentença penal condenatória. No que tange ao Inquérito Policial, há de se verificar o conteúdo da súmula 444 do STJ: “É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”.

            Também, mediante este raciocínio, o Superior Tribunal de Justiça aprovou a súmula 347[1], revogando tacitamente seu antigo entendimento explanado na súmula 09 do STJ.

            Ainda, em face da presunção de não culpabilidade, pode o juiz, a qualquer momento processual, declarar de ofício a extinção da punibilidade, haja vista o art. 61 do Diploma Processual Penal[2]. Além dos institutos da absolvição sumária, previstos no art. 415 do CPP, no tocante ao procedimento do Tribunal do Júri, bem como o art. 397, também do CPP, que trata da absolvição sumária nos crimes comuns:

Art. 415.  O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando:

                                               I – provada a inexistência do fato;

                                               II – provado não ser ele autor ou partícipe do fato;

                                               III – o fato não constituir infração penal;

IV – demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.

Art. 397.  Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar: (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).

I - a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

II - a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

III - que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

IV - extinta a punibilidade do agente. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

 

5.2. PRINCÍPIO DO FAVOR REI OU FAVOR LIBERTATIS

            Continuando o entendimento de que a liberdade é a regra, sendo sua supressão a exceção, o princípio do favor rei prega que em caso da norma possuir diversas interpretações, deve-se optar pela que atenda ao direito de liberdade do indivíduo.

            Sendo assim, havendo dois caminhos a serem seguidos, um prejudicial e outro favorável ao acusado, deve-se sempre seguir aquele que melhor protege a liberdade, ou seja, na dúvida, a opção deve ser aquela em favor do réu. Sob esta ótica, o princípio do favor libertatis é também chamado de princípio do in dubio pro reo.   

            A regra do favor rei traz, ainda, uma orientação da sistemática processual que impõe ao juiz a seguir a tese mais favorável ao acusado sempre que a acusação não tenha carreado prova suficiente para obter condenação, conforme enunciado no art. 386, VII, do Código de Processo Penal:

Art. 386.  O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:

VII – não existir prova suficiente para a condenação.

                        Este princípio também protege o indivíduo no tocante ao seu direito ao silêncio e a não autoincriminação, consagrado no art. 5º, LXIII, da Constituição. Desta forma, o silêncio do acusado não poderá ser usado como meio de repercussão positiva na apuração da responsabilidade penal, nem presunção de veracidade dos fatos sobre os quais optou por calar-se, assim como não pode o indivíduo ser obrigado a produzir prova contra si mesmo.

Por fim, o princípio do favor rei se entrelaça com a presunção de não culpabilidade ao inverter o ônus da prova. Cabendo assim ao órgão acusador apresentar provas dos fatos que alegar, e demonstrar a culpabilidade da pessoa presumidamente não culpável.

 

6. PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

            Segundo o art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Nesta linha, para que a privação de direitos que estejam ligados à liberdade ou à propriedade, seja considerada legítima, é obrigatória a observância de um determinado processo legalmente estabelecido, cujo pressuposto é uma atividade legislativa moldada por procedimentos justos e adequados[3].

            O devido processo legal possui duas vertentes: a formal ou processual e a material ou substantiva.

            Em se tratando de devido processo material, este se encontra ligado à noção de um processo justo e adequado, dizendo respeito ao campo da elaboração e interpretação das normas jurídicas, evitando-se a atividade legislativa abusiva, e ditando uma interpretação razoável quando da aplicação concreta das normas jurídicas, sendo este o campo para aplicação das regras da razoabilidade e proporcionalidade, funcionando sempre como controle das arbitrariedades promovidas pelo Poder Público.

            Falar em devido processo legal em sentido formal é versar sobre a garantia que qualquer pessoa tem de exigir que o procedimento jurisdicional ocorra de acordo com as regras procedimentais previamente estabelecidas. Neste caso, a privação da liberdade ou de bens só será legítima se forem observadas as regras do processo estabelecido em lei como sendo o devido, ou seja, aquele procedimento que permite o exercício do direito de participação das partes para proteção de seu direito pleiteado em juízo.

            Portanto, utilizando todos os conceitos tratados, para que um processo seja tido como “devido” e “justo” este não deve apenas ser exaurido pela simples observância das formas da lei para a tramitação das causas em juízo. Como signatário da ideia de pacificação social, a garantia do devido processo legal não tem como objeto a simples resposta do Estado frente a um conflito de interesses, mas também visa assegurar o direito às partes de sustentar suas razões, o direito ao contraditório e o direito de influir no convencimento do magistrado.

            Inclusive, a noção de economia processual encontra-se intimamente vinculada à garantia do devido processo legal, eis que quanto mais morosa e tardia se mostra a justiça, menos efetiva na prática ela vem a ser. É neste raciocínio que o inciso LXXVIII, do art. 5º, da Constituição Federal, introduzido pela Emenda Constitucional nº 45, prevê a garantia da duração razoável do processo.

            Assim sendo, o princípio do devido processo legal realiza, entre outras, a função de um supraprincípio, coordenando e delimitando todos os demais princípios que informam tanto o processo como procedimento, tendo como ramificações a exigência prévia do órgão julgador e acusador; o princípio do contraditório e da ampla defesa; e o princípio da instrumentalidade das formas, que serão analisados adiante.

 

6.1. PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL

            O art. 5º, inciso XXXVII, da Constituição Federal, prevê que não haverá juízo ou tribunal de exceção.

Tribunal de exceção é aquele constituído com o único fim de julgar determinado fato. O dispositivo constitucional em questão garante que a definição do juízo competente deve ser feita previamente, por meio de normas gerais e abstratas, com base em critérios pessoais e objetivos, não se admitindo a designação de um juízo ad hoc.

            Nessa esteira de pensamento, garante o mesmo art. 5º, da Constituição, em seu inciso LIII, que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.

            Estas garantias constitucionais consagram o princípio do juiz natural, que se trata do direito de que cada cidadão possui de saber, antecipadamente, qual autoridade que irá julgá-lo, caso venha a praticar uma conduta definida como infração penal pelo ordenamento jurídico. Sendo que o juiz natural é aquele fora constituído antes do fato delituoso a ser julgado.

            Em seu caráter material, o princípio do juiz natural exige, também, a imparcialidade e a independência dos magistrados[4], para que um processo possa correr de forma devida, sem interferências externas que possam influir nas decisões judiciais.

            Assim como é assegurado o direito de ter previamente constituído o órgão julgador, a vedação aos tribunais de exceção obriga a existência prévia do órgão acusador. Eis que como “ninguém será processado senão pela autoridade competente”, e, sendo a regra a ação penal pública, de titularidade do Ministério Público[5], é direito do indivíduo que o promotor de justiça (ou Procurador da República), esteja devidamente investido das atribuições junto ao juízo ou vara respectiva na qual deve funcionar, consagrando assim o princípio do promotor natural.

 

6.2. PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA

            Sendo um consectário da ideia de um processo justo, o inciso LV, do art. 5º, do Texto Constitucional dita:

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

            Nesta linha, este dispositivo indica uma garantia fundamental de justiça, qual seja, a capacidade das partes falarem no processo, podendo influenciar nas decisões, e terem ao seu dispor todos os meios permitidos a realizar sua defesa.

            O fundamento lógico do contraditório é a ciência bilateral dos atos e termos do processo, com a possibilidade de contrariá-los. Este instituto vem da necessidade de um tratamento igualitário de ambas as partes, consistindo na preocupação de conhecimento para cada litigante dos atos praticados pelo juiz e pelo adversário, para que, querendo, possa responder a eles, garantindo assim o pleno direito de defesa e de pronunciamento durante todo o curso do processo. Em um exemplo costumeiro, se o membro do Ministério Público traz aos autos uma nova prova, deve ser aberta a oportunidade para que a defesa venha a se manifestar acerca do elemento de convencimento, do contrário, não se efetivará o contraditório, havendo um desrespeito concreto à noção de processo legal e justo, que por sua vez, afeta o conceito de uma sociedade ordenada.

            Como se pode deduzir, o contraditório se trata de um direito potencial de resposta. Potencial porque em determinadas situações (aquelas que versam sobre direitos disponíveis), este pode ser exercido ou não. Sendo que dar a oportunidade para as partes manifestarem-se é garantir a justiça das decisões.

            A ampla defesa é uma decorrência do contraditório, no que tange à reação da parte face à informação de que teve ciência. Este princípio é a garantia de ter assegurada, ao indivíduo, a utilização para a defesa de seus direitos de todos os meios legais e moralmente admitidos, qual seja, a utilização dos meios de prova, dos recursos, e dos instrumentos necessários à realização de sua defesa perante o órgão julgador.

            No processo penal, para que ocorra a plena realização e observância destas garantias constitucionais, devem ser asseguradas tanto a defesa técnica, a ser exercida por um defensor, quanto a autodefesa, dando a possibilidade ao acusado de ser interrogado e de presenciar todos os atos instrutórios, sob pena de nulidade acaso seja negado o direito de presença pessoal. Nessa ótica, devem ser observados os Enunciados de Súmula do Supremo Tribunal Federal de nº 705, 707 e 708; cuja inteligência denota a necessidade de existência tanto da defesa técnica quanto ao direito de autodefesa:

Súmula 705 do STF: A renúncia do réu ao direito de apelação, manifestada sem a assistência do defensor, não impede o conhecimento da apelação por este interposta.

Súmula 707 do STF: Constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contrarrazões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo.

Súmula 708 do STF: É nulo o julgamento da apelação se, após a manifestação nos autos da renúncia do único defensor, o réu não foi previamente intimado para constituir outro.

 

6.3. PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS

            Se um ato processual possuir uma forma prevista em lei, este sempre deverá ser praticado conforme a formalidade legal, sob pena de nulidade. Todo ato processual possui uma finalidade a ser atingido, cujo êxito gerará efeitos programados em lei, desde que tenha sido praticado em respeito à forma legal. Assim, a formalidade do ato proporciona segurança jurídica.

            Sendo desrespeitada a forma legal, haverá uma consequência, qual seja, a nulidade do ato, que se traduz na incapacidade do ato a gerar os efeitos programados em lei.

            O princípio da instrumentalidade busca aproveitar o ato em contraste com a forma legal, permitindo-se a geração de seus efeitos. Assim, sob a ótica do princípio, o essencial não é verificar se o ato está em conformidade com sua forma legal, e sim, se o desrespeito à forma prevista em lei afastou-o de sua finalidade, e se este descompasso causou algum prejuízo. Não havendo prejuízo às partes, tampouco ao processo, e, havendo o ato atingido sua finalidade, seria um excessivo apego ao formalismo a declaração do ato como nulo, impedindo a ocorrência de seus efeitos.

            Este mandamento se baseia na ideia de que o processo não é um fim em si mesmo, traduzindo-se em uma série de atos que visam atingir uma finalidade maior, que sendo alcançada, não poderia vir a ser prejudicado por algo em desacordo com a formalidade, cuja ocorrência não gerou qualquer tipo de dano, tanto às partes quanto ao próprio processo, estando assim, plenamente vinculado à noção de economia processual.

            A instrumentalidade das formas é traduzida no brocardo pas de nullité sans grief” (não haverá nulidade sem prejuízo). Assim prega o art. 563 do Código de Processo Penal:

Art. 563.  Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa.

            Sendo que tal instituto é expressamente previsto no art. 65, § 1º, da Lei 9.099/95, que rege os Juizados Especiais Estaduais:

Art. 65. Os atos processuais serão válidos sempre que preencherem as finalidades para as quais foram realizados, atendidos os critérios indicados no art. 62 desta Lei.

§ 1º Não se pronunciará qualquer nulidade sem que tenha havido prejuízo.

            E também tratado no Enunciado de Súmula nº 523 do Supremo Tribunal Federal: “No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”.

Portanto, apenas será declarado nulo, não gerando os efeitos previstos em lei, se o ato em desconformidade com a forma legal, gerou prejuízo para as partes que litigam pela demanda, ou para o processo. Para melhor elucidar a questão, imagine a situação em que o réu não tenha sido citado para oferecimento de defesa, mas tomando ciência do prazo, constitui defensor e este apresenta defesa em tempo hábil. Neste exemplo, ainda que a falta de citação pudesse gerar a nulidade do ato, a finalidade foi atendida, eis que foi atendido o direito de defesa do réu.

No entanto, resta uma última observação a ser feita. Mesmo que não tenha ocorrido prejuízo que importe na anulação do ato, utilizando-se do exemplo narrado, houve uma ofensa às normas legais, que embora não acarrete problemas ao procedimento processual, deverá ter apurada e apenada a responsabilidade daquele que deixou de praticar o ato necessário ou o praticou indevidamente.

           

7. CONCLUSÃO

            Este breve panorama buscou trazer à tona a importância do estudo principiológico para a doutrina processual penal. Mas que meramente olhar e conceituar os princípios, o presente trabalho objetivou a demonstrá-los em conjunto, escalando-o a partir de uma percepção sistemática e evolutiva, com atenção nas fontes e origens de determinados institutos.

            Sintetizando, o viés exposto não se resume a apenas conceitos duros e rígidos, mas sim, buscar, através de uma percepção, na qual se valoriza o todo, explicar o sistema, evoluindo a partir de cada peça. Mostrar qual princípio decorrerá de outro, como a sua importância para a dogmática, e também a sua aplicação para o caso concreto, e seus efeitos, tanto na legislação, seja ela constitucional ou infraconstitucional, quanto na jurisprudência pátria.

            O rol trazido não é taxativo, e nem este era o objeto da obra, que adotou a opção de listar apenas aqueles considerados como mais importantes à ciência adjetiva, porém, a par dos exemplos aqui narrados, pode-se servir de orientação para os demais institutos do Direito Processual Penal.

            Talvez, com a leitura do presente trabalho, permita ao leitor lograr a compreensão para a existência de algumas espécies legais em nossa ordem jurídica contemporânea, a par da Lei dos Crimes Hediondos, aqui mencionada. E, quem sabe, a narrativa ajude-o em seus estudos e em sua atividade forense, eis que, como fundações nas quais se construíram todo um conjunto de regras que constituem o Direito Moderno, os princípios, sejam eles advindos do Direito Processual, Direito Penal, Direito Administrativo, dentre outros ramos, bem como da própria Constituição Federal e legislações esparsas.

            A oportunidade, aqui buscada, segue no rumo de proporcionar uma ampliação da perspectiva necessária a um jurista. Indo além de trazer apenas o conceito e aplicá-lo quando se mostrar necessário, deve-se atentar para sua real razão de existir, as tendências e necessidades que levaram à sua criação e permitiram que fosse implantado em uma ordem social. Ou seja, mais que buscar o sentido e alcance de um instituto, também se faz necessário entender porque ele existe.

            Portanto, embora a doutrina apresente os princípios apenas com a função de esclarecimento acaso haja dúvida sobre o significado de uma norma (função hermenêutica) ou como facilitador para interpretação de normas, funcionando como preenchimento de vazios legais, em caso de ausência de expressa regulamentação sobre determinada matéria (função integrativa), a obra baseou-se na tentativa de olhar além daquilo que fora trazido pela doutrina contemporânea. Pois, como valores informativos, há de se perceber que os princípios dão o caminho ao qual se chega à resposta para a questão controvertida.

Porém, cabe ao estudante, através de uma autorreflexão, amadurecer por sua conta, e poder ser capaz de compreender a seriedade desta matéria. Neste contexto, vale à pena recordar um velho ditado que em suas palavras ensina: “quando o pupilo está pronto, o mestre se revela”.

 

REFERÊNCIAS

1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1.1. CUNHA JR, Dirley; NOVELINO, Marcelo – Constituição Federal Para Concursos – 1ª edição – Podivm - 2010;

1.2. MARINELA, Fernanda – Direito Administrativo – 4ª edição – Editora Impetus - 2010;

1.3. MAZZA, Alexandre – Manual de Direito Administrativo – 1ª edição – Editora Saraiva – 2011;

1.4. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel – Teoria Geral do Processo – 27ª edição – Malheiros Editores – 2011;

1.5. NEVES, Daniel Amorim Assumpção – Manual de Direito Processual Civil – 2ª edição – Editora Método – 2010;

1.6. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli – Curso de Processo Penal – 9ª edição – Editora Lumen Juris – 2008;

1.7.RANGEL, Paulo – Direito Processual Penal – 13ª edição – Editora Lumen Juris – 2007.

 

2. REFERÊNCIAS LEGISLATIVAS

2.1. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL – obtida em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm – vista em 25 de janeiro de 2012 às 11h30min;

2.2. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL – DECRETO-LEI 3.689 DE 03 DE OUTUBRO DE 1941 – obtido em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm – visto em 25 de janeiro de 2012 às 11h30min;

2.3. LEI 9.099 DE 26 DE SETEMBRO DE 1995 – obtida em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9099.htm – vista em 25 de janeiro de 2012 às 11h50min;

2.4. ENUNCIADOS DE SÚMULAS DO STF – obtidos em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula – vistos em 26 de janeiro de 2012 às 16h00min;

2.5. ENUNCIADOS DE SÚMULAS DO STJ – obtidos em http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/enunciados.jsp?&b=SUMU&p=true&t=&l=10&i=121 – vistos em 26 de janeiro de 2012 às 16h00min.

  

[1]  Súmula 347 do STJ: O conhecimento de recurso de apelação do réu independe de sua prisão.

[2]  Art. 61.  Em qualquer fase do processo, o juiz, se reconhecer extinta a punibilidade, deverá declará-lo de ofício.

[3]  CUNHA JR, Dirley, NOVELINO, Marcelo – Constituição Federal Para Concursos – pag. 74 – 1ª edição – Podivm.

[4]  Vide art. 95 da Constituição Federal.

[5] Art. 129, inciso I, Constituição Federal.

Data da conclusão/última revisão: 01/07/2017

 

Como citar o texto:

SILVA, Thiago Paixão da..Os princípios do Direito Processual Penal através de uma interpretação sistêmica e evolutiva. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 27, nº 1451. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/cronicas/3668/os-principios-direito-processual-penal-atraves-interpretacao-sistemica-evolutiva. Acesso em 4 jul. 2017.

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