RESUMO: O Tribunal do Júri é reconhecido nas Constituições brasileiras, desde a Constituição de 1824, figurando em todas as outras Constituições, com exceção da Constituição de 1937, sendo tradição no direito brasileiro. O presente trabalho objetivo analisar os efeitos do princípio do “in dubio pro societate”, no Tribunal do Júri e suas consequências em relação às garantias do acusado no processo penal e se suas garantias constitucionais serão respeitadas na confecção da sentença de pronúncia no sistema do júri brasileiro. Além disso, o trabalho demonstrará como as garantias individuais, decorrentes da Constituição e Código de Processo Penal, podem ser desrespeitados com a utilização deste princípio.
PALAVRAS-CHAVE: Dignidade da Pessoa Humana. Tribunal do Júri. In dubio pro societa. Processo Penal. Direitos Fundamentais.
INTRODUÇÃO
Os julgamentos no Tribunal do júri brasileiro são realizados em dois momentos distintos: O juízo de formação de culpa e o juízo de mérito.
Da colheita de provas na fase pré-judicial e sua avaliação se conclui que somente será possível fazer um juízo de valor democrático na primeira fase.
Nesta primeira fase, a conclusão não há necessidade de justificação em relação ao mérito da acusação, o que de forma direta torna impossível a verificação de qualquer argumento que levará o jurado ao veredicto no plenário.
Nesta primeira fase, que também é conhecida como Judicium Acussationis ou Instrução Preliminar, que é iniciada logo após o recebimento da denuncia, e prevalece o princípio do in dubio pro societa, fazendo com que seja remetido qualquer processo para o Tribunal do Júri, sem uma análise mais detalhada ou uma fundamentação mais concreta.
METODOLOGIA
O método de abordagem da pesquisa é do tipo dedutivo, utilizando da forma qualitativa, buscando explicar o fenômeno do ativismo que os tribunais observam para dirimir e aplicar a lei insuficiente ao caso em discussão. É uma pesquisa bibliográfica, na qual as referências utilizadas são obras que envolvem livros, artigos científicos, bem como, revistas jurídicas.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O princípio do in dubio pro societa, no sistema do Tribunal do júri brasileiro, trata-se de um princípio (fictício) jurídico, segundo o qual, mesmo que um juiz não tenha a certeza, nem mesmo tenha convicção da participação do acusado no crime, ele pronunciará este ao Júri Popular, como uma forma de “lavar as mãos”, deixando que a sociedade decida sobre o caso.
Tais práticas, infelizmente, tornaram-se não tão raras, dando continuidade a processos de homicídios dolosos sem o menor conjunto de provas, permitindo assim que este acusado seja julgado por seus pares, pela sociedade, causando grande insegurança jurídica.
É necessário uma reflexão mais apurada, para se perceber os enormes riscos as garantias constitucionais e individual, pela escolha de um modelo falho para justificar a pronuncia desses acusados.
O in dubio pro societate vem levantando incomensuráveis questionamentos críticos doutrinários, como bem informa Paulo Rangel (2012, p. 152):
“na pronúncia, segundo doutrina tradicional, a qual não mais seguimos, impera o chamado princípio do in dubio pro societate, ou seja, na dúvida, diante do material probatório que lhe é apresentado, deve o juiz decidir sempre a favor da sociedade, pronunciando o réu e o mandando a júri, para que o conselho de sentença manifeste-se sobre a imputação feita na pronúncia”.
Fica então comprovado, diante da atual conjuntura jurídica brasileira, que na fase de pronúncia deverá ser limitado a simples indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria, como também, da participação deste acusado na prática criminosa, mas, devendo, mesmo nesta fase, ter a sentença fundamentação jurídica para tal decisão, para não incorrermos no risco infundado de condenações desarrazoadas.
Acontece que, mesmo no nosso ordenamento jurídico, deve-se presar pelo sistema garantista, porém, no tribunal do Júri, mesmo ainda se existindo dúvidas, na fase de pronuncia, o que se utiliza é o in dubio pro societate para levar os acusados ao banco dos réus, contrariando totalmente o que reza o ordenamento jurídico pátrio, como é observável na no Código de Processo Penal, na regra prescrita no artigo 386, II, ex vi:
Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:
(...)
VII – não existir prova suficiente para a condenação.
Em outras palavras, caso o Estado não consiga formar um conjunto probatório suficiente, de materialidade e de autoria do crime, o juiz deverá absolver o acusado, o que é o princípio do in dubio pro reo.
Porém, de forma totalmente contrária, como bem explica, Nestor Tavora e Rosmar Rodrigues Alencar (2013, p.682):
“Nota-se que vigora, nesta fase, como senso comum, a regra do in dubio pro societate: existindo possibilidade de se entender pela imputação válida do crime contra a vida em relação ao acusado, o juiz deve admitir a acusação, asssegurando o cumprimento da constituição, que reservou a competência para o julgamento de delitos dessa espécie para o tribunal popular. É o júri o juiz natural para o processamento dos crimes dolosos contra a vida. Não deve o juiz togado substitui-lo, mas garantir que o exercício da função de julgar pelos leigos seja exercido validamente."
Neste mesmo pensamento, Marcus Vinicius Amorim de Oliveira (2010, p.123) ensina:
“Nessa cena processual, não se destaca o princípio do in dubio pro reo que só se aplica na análise do mérito da causa a ser feita não pelo juiz do feito, mas pelos juízes naturais, isto é, os sete jurados pertencentes ao conselho de sentença. Tem prevalência aqui o ineditismo do princípio do in dubio pro societate. Tal ocorre simplesmente por se tratar de mero juízo de admissibilidade da acusação, pois, a decisão da causa, verdadeiramente, caberá aos jurados”.
É correto afirmar que, a sentença de pronúncia não pode expor o acusado a insegurança infundada de ser condenado por juízes leigos quando existe dúvidas de sua conduta criminosa.
Paulo Rangel (2009, pp.586;5872009) corrobora tal opinião:
“Na pronúncia, segundo doutrina tradicional, a qual não mais seguimos, impera o princípio do in dubio pro societate, ou seja, na duvida diante do material probatório que lhe é apresentado, deve o juiz decidir sempre a favor da sociedade, pronunciando o réu e o mandando a júri, para que o conselho de sentença manifeste-se sobre a imputação feita na pronúncia.
Entendemos que, se há dúvida, é porque o Ministério Público não logrou êxito na acusação que formulou em sua denúncia, sob o aspecto da autoria e materialidade, não sendo admissível que sua falência funcional seja resolvida em desfavor do acusado, mandando-o a juri, onde o sistema que impera, lamentavelmente, é o da íntima convicção. O processo judicial, em si, instaurado, por si só, já é um gravame social para o acusado que, agora, tem a dúvida a seu favor e, se houve dúvida quando se ofereceu a denúncia, o que por si só, não poderia autorizá-la, não podemos perpetuar essa dúvida e querer dissipá-la em plenário, sob pena dessa dúvida autorizar uma condenação pelos jurados.”.
Nesta mesma linha de pensamento, Rafael Fecury Nogueira (2012, p.206), entende:
“Trata-se se um critério de decisão que, em um claro eufemismo, significa in dubio contra reo, vilipendiando tudo o que se afirma sobre o in dubio pro reo como consectário da presunção de inocência constitucionalmente consagrada. (...) Não existe regra ou principio que consubstancie um in dubio pro júri.”.
Sendo assim, não subsiste à mínima base constitucional para sustentar o in dubio pro societate.
Rodrigo Faucz Pereira e Silva (2010,p.62) informa sobre os grandes perigos das dúvidas na sentença de pronuncia:
“A exposição ao risco de ser julgado por juízes leigos, quando sequer deve ir a julgamento, deriva, principalmente, da utilização desmedida e inconstitucional do malfadado princípio do in dubio pro societate. Ao contrário do milenar e mundialmente reconhecido princípio do in dubio pro reo ou favor rei, utiliza-se uma aberração jurídica criada para retirar a responsabilidade do juiz togado e remeter um caso dúbio ao exame popular. Pode-se afirmar, com certeza, que o princípio do in dubio pro reo faz parte do ordenamento jurídico de todos os países democráticos do mundo, sendo considerado, conforme o professor Tourinho Filho, um “princípio base de toda a legislação processual penal de um estado”. Para retirar a pessoa do rol de inocentes e colocá-los no rol dos culpados, deve haver provas robustas e consistentes. Além de haver provas da responsabilidade penal do acusado, o processo deve transcorrer de maneira imparcial, sem transgredir os direitos do acusado. O conjunto probatório apresentado peloMinistério Público e juntado ao processo por outras autoridades, não pode causar desconfiança sobre a responsabilidade penal do acusado. Caso haja qualquer dúvida, a mesma deve ser interpretada a seu favor...”.
A dúvida razoável não pode conduzir à pronúncia, entende o excelente doutrinador, Aury Lopes Jr. (, 2013, p.1012).
Diante disso, é razoável a conclusão que, o in dúbio pro societate é incompatível com o Estado Democrático de Direito, pois neste, a dúvida não permite uma condenação, ou mesmo o risco dela, levando um acusado ao banco dos réus.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, nos processos judiciais, o que se deve prezar em primeiro plano é o interesse abstrato da sociedade, mas sim o que prevê a Carta maior, que neste caso é a segurança jurídica do cidadão, a dignidade da pessoa humana independente se este figura em um Processo Penal na condição de réu.
Diante disso, do exposto, seguindo o que ensina nosso ordenamento jurídico, protegendo os direitos e garantias do ser humano, em caso de dúvidas no processo penal, mesmo em casos de crimes dolosos contra a vida, deve o magistrado absolver ou impronunciar o acusado posto em análise, pois, o princípio da presunção de inocência ao ser colocado ao posto de garantia constitucional e não se utilizar de um brocado arcaico e medieval como é o in dubio pro societate.
REFERÊNCIAS:
CARVALHO, Salo de. Revisita à Descontrução do Modelo Jurídico Inquisitórial, 2005.
FOUCAULT, Michel. VIGIAR E PUNIR - NASCIMENTO DA PRISÃO. Tradução de
Raquel Ramalhete 29ª Edição EDITORA VOZES Petrópolis 2004.
GRECO, Rogerio. Código Penal Comentado. 8ª ed. São Paulo: Impetus, 2014.
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. MACHADO, André Augusto Mendes. Investigação Crminal Defensiva. São Paulo: RT, 2010.
MIRABETE. Julio Fabbrini. Processo Penal. 18ª Edição. Editora Atlas.São Paulo, 2008.
OLIVEIRA, Marcus Vinicius Amorim de. Tribunal do Júri na Ordem Constitucional. 2° Edição. Editora Juruá, Curitiba 2008.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 20.ed. São Paulo:Atlas: 2012.
SILVA, Rodrigo Faucz Pereira, Tribunal do Júri: O novo rito interpretado 2° Edição. Editora Juruá, Curitiba 2010.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosimar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 7ª edição. Ed. Jus Podivm. Bahia, 2013.
Data da conclusão/última revisão: 08/11/2017
Ozael Félix de Siqueira
Aadêmico de Direito.
Código da publicação: 3792
Como citar o texto:
SIQUEIRA, Ozael Félix de..In dubio pro societa no Tribunal do Júri: um risco à segurança jurídica do cidadão e aos princípios constitucionais. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 28, nº 1491. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-penal/3792/in-dubio-pro-societa-tribunal-juri-risco-seguranca-juridica-cidadao-aos-principios-constitucionais. Acesso em 11 dez. 2017.
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