Cediço àqueles que militam ou, ao menos, se interessam pela dogmática trabalhista, a Emenda Constitucional nº 45 ampliou a competência da Justiça Trabalhista, inserindo em seu rol os litígios antes afetos unicamente à Justiça Comum, no que tange àqueles que versem o Poder Público e seus servidores. Ademais, na própria essência de suas atribuições, houve sensível aumento de abrangência de suas atribuições jurisdicionais, ao se inferir que passará a julgar os litígios resultantes das “relações de trabalho”, e não mais “relações de emprego” como a pretérita redação constitucional dispunha.

                   Prima facie, poderíamos concluir que a ampliação da competência corresponderia à um verdadeiro progresso legislativo, acarretando no mundo empírico, um coerente  e salutar desenvolvimento dos trabalhos judiciais da Justiça Laboral. Todavia, o indigitado parágrafo I do art. 114 da CF/88, longe de buscar esse objetivo, vem ocasionando inúmeros debates entre os que atuam nesse ramo do direito, pois bem sabem estes que o texto – antes do progresso imediato que talvez se quisesse imprimir na justiça especializada – trouxe novas concepções jurídicas ensejadoras de conotações ambíguas, isto é, não detentoras de um entendimento pacificado quanto à abrangência de sua aplicabilidade na prática processual.

                   Quanto a previsão do texto constitucional que inseriu no rol da competência da Justiça do Trabalho as causas que versarem sobre direitos oriundos da relação entre o Poder Público e seus servidores, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), ajuizou perante o STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn nº 3395), sendo concedida in limine litis a tutela pleiteada, suspendendo desde já qualquer interpretação que inclua na competência da Justiça do Trabalho as causas retro referidas.

                   No entender dos doutos combatentes, não há que se falar em “relação de trabalho” no vínculo que une entes da administração pública aos servidores estatutários, certos de não trata-se de mero contrato de trabalho, mas sim uma investidura pública alicerçada em lei e portanto regidas por normas de Direito Administrativo.1  A abrangência que se queira dar (inserir tais causas nas de competência da Justiça do Trabalho) talvez seja realmente incoerente, face os ditames que recaem sobre essas relações oriundas do Direito Administrativo.

Há que se lembrar que os agentes públicos classificados como empregados públicos, já eram subordinados às normas da CLT, e portanto seus dissídios são julgados pela justiça especializada. Nesse sentido leciona o Dr. Romeu Bacellar Filho, insigne membro da advocacia paranaense: “A Constituição de 1988, na redação original de seu artigo 39, impunha o regime jurídico único, entendido este como o estatutário, orientação que prevaleceu no período entre 1988 e 1998. Todavia, a EC n. 19, de 1998, extinguiu a obrigatoriedade do regime jurídico único, restabelecendo a possibilidade de a Administração, em sentido amplo, admitir pessoal pelas Leis Trabalhistas.” 2

Ressalte-se que, mesmo estando os agentes públicos sob os ditames da CLT, e sendo obrigatória sua interpretação conforme a Constituição Federal, sofrerá o agente influências do regime jurídico estatutário.3

No concernente ao agentes públicos vinculados sob a égide do regime jurídico estatutário (servidores públicos em sentido estrito), a ratio de seu vínculo com a administração pública não é de mero trabalho, mas muito mais ampla, tendo em vista ser a própria personificação do Estado. Ao atuar em suas atribuições, o servidor é a exteriorização de uma vontade que, por uma ficção jurídica, se oportunizou como sendo a vontade do Estado. Não se pode falar, portanto, em mera relação de trabalho em sentido estrito, certo de que há, nitidamente, uma relação muito especial que deve de forma diferenciada ser vislumbrada.

Caso passe a decidir sobre os litígios dos servidores públicos na sua relação com o Estado, a Justiça do Trabalho adentrará inevitavelmente à seara do Direito Administrativo, deixando assim de atuar unicamente em sua especificidade, qual seja, a esfera do Direito Trabalhista. Aguardaremos a análise da ADIn nº 3395, em que os insignes julgadores do STF se pronunciarão, para que então possamos dissipar todas as dúvidas a esse respeito.

Na verdade, toda a questão assaz controvertida assenta-se na seguinte indagação: será que toda a relação de trabalho passou a ser de competência da Justiça Trabalhista?

Urge, pois, dentro de um trabalho hermenêutico eficiente, desvendar a abrangência em que se deve aplicar essa nova previsão legal.

Poderíamos incluir como sendo relação de trabalho as relações de consumo previstas no CDC? Ou ainda o trabalho desenvolvido por advogado?

Pedro Paulo Teixeira Manus, Juiz Vice-presidente Judicial do TRT da 2ª Região, em recente explanação no 45º Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho/SP, apresenta uma solução para a questão ora sob exame. Alude o nobre magistrado, que a relação de trabalho da emenda é menos ampla do que se imagina e faz uma advertência para que se estabeleçam critérios que a discipline, recomendando que o representante comercial, as relações de consumo como já a conhecemos e o labor do advogado, que dispõem de leis específicas e estatuto próprio, deveriam continuar na Justiça Comum. 4

Outro critério que poderíamos adotar para distinção entre relação consumerista e a relação de trabalho, seria o critério da continuidade, tendo em vista que normalmente a relação de consumo de serviço é ocasional, esporádica, como se dá na relação entre mecânico/cliente, médico/paciente, dentre outras.

Há ainda outros, mais radicais, cujo entendimento é de que, em não havendo expressa menção, afasta-se por completo a incidência da norma constitucional, tendo em vista ser essa a intenção nítida do legislador, de fato, “(...)quisesse o legislador estender a competência para a lide estranha ao escopo do Direito do Trabalho, teria feito expressa menção a tal intuito, como procedeu na execução de débitos fiscais e na cobrança das contribuições previdenciárias.”5

Nesse diapasão, emerge-se como necessidade preemente, uma atuação da hermenêutica jurídica no intuito de, interpretando o texto constitucional, desvende sua abrangência. Ainda a práxis dos tribunais, onde se aguarda o entendimento que darão ao texto os doutos julgadores da suprema corte federal. Mormente o que tudo fora exposto, avulta-se nitidamente o caráter polêmico e intrigante dessa seara que ora se apresenta à debate. Não obstante a edificação jurisprudencial que deverá ser erigida em torno do tema, deverá a doutrina estabelecer uma direção a ser seguida, bem como bases de comparação, a fim de, após salutar e frutuosa beligerância acadêmica, fixe-se uma coerente definição de “relação de trabalho”, para que não ocorra confusão na aplicação da norma jurídica, distinguindo-se nitidamente tal relação de outras relações jurídicas, delimitando dessa forma, coerentemente, a atuação correta dos órgãos juridicionais do Estado.

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NOTAS:

(1) CASTAN, Vitor Manoel. Relação de Trabalho – Necessidade de uma base de comparação. O Estado do Paraná, Curitiba, 10 jul. 2005, Caderno Direito e Justiça, p. 05.

(2) BACELLAR FILHO, Romeu. Direito Administrativo. Coleção Curso & Concurso. São Paulo: Editora Saraiva, 2005, p. 133

(3) Idem, Ibidem, p. 138.

(4) MANUS, Pedro Paulo Teixeira. 45º Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho/SP-LTr.

(5) BORGES, Leonardo Dias; MENEZES, Cláudio Armando C. de. A Emenda Constitucional n. 45 e algumas questões acerca da competência e do procedimento na Justiça do Trabalho. Revista LTr, São Paulo: Editora LTr, mar. 2005, p. 308.

BIBLIOGRAFIA:

BACELLAR FILHO, Romeu. Direito Administrativo. Coleção Curso & Concurso. São Paulo: Editora Saraiva, 2005.

BORGES, Leonardo Dias; MENEZES, Cláudio Armando C. de. A Emenda Constitucional n. 45 e algumas questões acerca da competência e do procedimento na Justiça do Trabalho. Revista LTr, São Paulo: Editora LTr, mar. 2005.

CASTAN, Vitor Manoel. Relação de Trabalho – Necessidade de uma base de comparação. O Estado do Paraná, Curitiba, 10 jul. 2005, Caderno Direito e Justiça.

 

Como citar o texto:

SILVA, Ronny Carvalho da..Relação de trabalho: necessidade de uma exegese coerente face à nova previsão constitucional. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 142. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-do-trabalho/746/relacao-trabalho-necessidade-exegese-coerente-face-nova-previsao-constitucional. Acesso em 5 set. 2005.

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