Induvidosamente não é fácil construir uma estrutura principiológica. Aliás, não é fácil em nenhum âmbito do Direito. Nessa busca, atingir o dever ser principiológico é promover a aproximação de uma excelência hermenêutica e a individualização estupenda acerca de um ramo do Direito, posto que os núcleos de pensamento repercutem como corolários interpretativos. Dessa forma, no Direito Falimentar a tarefa é árdua, todavia, é perceptível que se destacam, em uma visão constitucionalizada, a função social da empresa e a preservação da empresa

1 INTRODUÇÃO

O Brasil vivencia um contexto de ampliação do quadro de empresas em diversos setores econômicos, o que transmite a necessidade de preparação teórica e dogmática do Direito Empresarial para esses fenômenos e esses efeitos sociais, econômicos, filosóficos, políticos e jurídicos.  O apontado crescimento pode ser visto na ilustração subsequente:

FIGURA 1

Empresas e outras organizações, por períodos de ano de fundação, segundo seção da classificação de Atividades – Brasil – 2009

Seção da classificação de atividadesEmpresas e outras organizações 
 TotalAno de fundação
Até 19701971 a 19801981 a 19901991 a 19951996 a 20002001 a 20052006 a 200720082009 
Indústrias extrativas15409440124027002101329435661 078527463 

Indústrias de transformação
6102561332527364905639231512593715036949 10630 45630821 
Construção182472148866742145521552349613941319 9731706219894 

Alojamento e alimentação
45200456331773361171606858461011489042 5222933935421 

Transporte, armazenagem e comunicações
273815209958182228326906560319189429 4371979419553 

Saúde e serviços sociais
159245269358281510518224349154507116 47710 12610 176 

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE – 2009 (Modificada pelo autor)

Tal crescimento se dá tanto para empresas cuja responsabilidade dos sócios é de caráter limitado - denominadas limitadas – quanto para aquelas que possuem ações negociadas no mercado, as chamadas sociedades anônimas (S/A’s), além dos outros modelos empresariais existentes.

Paralelamente ao crescimento numérico de empresas situadas no Brasil, houve relevantes reformulações principiológicas e normativas no que tange o Direito Empresarial – também conhecido como Direito Comercial – das quais duas merecem maior destaque. Primeiro, a edição da lei 10.406 de janeiro de 2002, que instituiu o Código Civil vigente, incorporando ao direito brasileiro a chamada teoria da empresa e abandonando a teoria dos atos de comércio. Segundo, houve a edição da lei 11.101 de fevereiro de 2005, que foi responsável por instituir o novo regime falimentar, além de criar procedimentos de recuperação do empresário. Destaca-se que a lei 11.101/2005 inovou ao afastar o regime de concordata e aplicar as chamadas recuperações judiciais e extrajudiciais.

Não obstante tais inovações, a mesma lei manteve que os bens e direitos de titularidade da empresa seriam vendidos para que, com o produto apurado, sejam pagos os credores anteriormente admitidos, respeitando o limite da massa falida, sendo certo que tal atitude não é compatível com a premissa de manutenção das atividades econômicas da empresa.

Contudo, há situações nas quais a falência não é solução para a crise administrativa que paira sobre o empresário e que, na realidade, a manutenção das atividades pode interessar sobremaneira a ele, a terceiros envolvidos, ao Estado e à coletividade em geral. Tem-se assim que, o prosseguimento dos negócios proporcionará amplos ganhos, seja para os credores que, eventualmente, terão maiores oportunidades de verem seus créditos satisfeitos, seja para o empresário que poderá retomar sua estabilidade no mercado, seja para a coletividade que terá retomado o equilíbrio e maior segurança creditícia, ou seja, para o Estado que terá mantida sua fonte propulsora de desenvolvimento ativa.

Nesse contexto, a lei 11.101/05 pode ser taxada como inovadora ao lançar propósitos que visam preservar as atividades do empresário em crise. Porém, deve-se levar em conta, a todo instante, a analise da viabilidade do empreendimento uma vez que o fim pretendido é o prosseguimento do empresário no exercício de suas atividades econômicas.

Não obstante as inovações trazidas pelos novos diplomas legais no que tange a recuperação e a falência houve ainda a preservação da chamada lista de credores que terão seus créditos habilitados junto à massa falida, conforme dispõe o art. 83 da lei 11.101/05. Cumpre ressaltar, todavia, que os processos de insolvência resolvem-se em concurso universal de credores, seja com um sentido de reestruturação empresarial, ou seja, como regime jurídico terminal de uma empresa. Nessa oportunidade a habilitação dos créditos e formação do quadro de credores se torna um dos momentos mais importantes e complexos do processo falimentar.

Todavia, qualquer que seja o procedimento concursal adotado, a possibilidade de habilitação de créditos sobre o ativo do devedor não se da de forma tão simples e nem é livre para ser executado. Todos que pretendem concorrer, com seus créditos, sobre a massa falida devem submeter-se a um procedimento de admissão e posterior colocação para fins de adequar e definir qual será a ordem de créditos a serem pagos pela massa falida.

Tendo em vista a relevância do tema, uma vez que se tem como cerne da questão a insuficiência do patrimônio do devedor para satisfazer a todos seus credores, o presente trabalho objetivará analisar a estrutura do quadro de credores em um processo falimentar tendo como norte a lei 11.101/05 e os princípios que auxiliam o Direito Empresarial brasileiro, principalmente no que tange a Falência e Recuperação.

Sabe-se que, a satisfação dos créditos é um dos objetivos principais para o processo falimentar e que, na recuperação judicial, é tido como fase culminante para permitir que não haja convolação em falência.

Nota-se assim que não se trata de mera execução de créditos perante a massa falida e sim, conforme ressalta Waldo Fazzio:

A formação do quadro de credores que efetivamente concorrerão sobre o ativo apurado do empresário devedor pressupõe as fases lógicas de verificação e habilitação. [...] Para que possam ser pagos, os créditos devem ser verificados, habilitados e classificados conforme a ordem prelatória estabelecida na LRE para os casos de falência. (FAZZIO JÚNIOR, 2010, p. 64)

A Lei 11.101/2005 foi clara ao determinar que, para a falência, a ordem de preferências é fixada aos moldes do que dispõem o caput do art. 83  e seus incisos, alíneas e parágrafos que sucedem. Tal fato baseia-se tanto pela par creditorum quanto pela natureza que cada crédito possui. Deve-se ficar claro que a igualdade entre os credores não é absoluta e, conforme ressalta Sampaio Lacerda:

Corresponde a uma igualdade de credores dentro de cada classe. De fato, como a falência não altera os direitos materiais dos credores, para que esses direitos sejam respeitados na execução coletiva, impõe-se a sua classificação, a fim de que cada credor receba o que legitimamente lhe é devido. (LACERDA apud FAZZIO JUNIOR, 2010, p. 64)

Sendo certo que a lei 11.101/2005 não teve sua origem objetivando, apenas, analisar e efetivar a ocorrência da falência. O núcleo da nova lei de recuperação e falências, e por isso seu caráter inovador, baseia-se na preservação do empresário e, assim, criou mecanismos que permitem ao empreendedor em crise administrativa estabilizar suas relações de crédito a ponto de evitar o encerramento do exercício de suas atividades econômicas.

O Deputado Osvaldo Biolchi relator na Câmara dos Deputados do projeto de lei que originou a Lei 11.101/2005, em seu discurso político demonstrou os fins últimos pretendidos pela lei:

E com esse espírito sempre aberto e de diálogo conclamo a todos que se juntem, sem tréguas, nessa combativa trincheira que visa reerguer a empresa, manter a célula produtiva, reorganizar a atividade societária, compatibilizar a carga tributária e equacionar a incidência da irrefreada taxa de juros, ingredientes que juntos delinearão um novo Brasil-Continente, mais esperançoso, com menor desemprego e sobretudo rumo à justiça social. (BIOLCHI, 2007, p. XLV)

A produção de uma lei não se da por mera liberalidade do Poder Legislativo, mas já nasce com o intuito de atender e solucionar demandas pertinentes à sociedade.

O Direito Empresarial, de forma emergente, precisa se conscientizar e confrontar os múltiplos interesses e variáveis envolvidos em um processo falimentar. Por esses motivos, ponderar e interpretar a Constituição Federal seriamente e sistemicamente, inelutavelmente conduz o intérprete à observância de que a dignidade da pessoa humana, a função social da empresa e reflexamente a preservação da empresa devem se apresentar, de forma destacável no Direito Empresarial, e será nesse sentido que os horizontes intermediários e conclusivos desse artigo caminharão.  

 

2 PRINCÍPIOS DO DIREITO FALIMENTAR

O Direito Falimentar – como ocorre em outros ramos do Direito – rege-se por normas, regras, costumes, princípios, jurisprudências, entendimentos científicos, dentre outras fontes que visam auxiliar o aplicador na análise do caso concreto ou no estudo geral do ordenamento Jurídico.

Sendo assim, e como uma das fontes do Direito, os Princípios são norteadores da interpretação e, nas palavras do professor Wilges Bruscato, “Ao não se conhecer os princípios de uma área do conhecimento, é possível que não se atente para as suas características, ocasionando insegurança jurídica e prejuízos.” (BRUSCATO, 2011, p. 512).

 Em se tratando de Direito Falimentar e, conforme entendimento do professor Gladston Mamede, existe um Princípio Geral norteador do Direito, qual seja:

O princípio elementar que orienta o Direito é o de que as obrigações – legais ou convencionais – devem ser voluntariamente cumpridas, ou o Estado deverá aplicar as consequências jurídicas previstas para o seu descumprimento, exercendo o Estado, para tanto, o seu poder de coerção. (MAMEDE, 2006, p. 30).

Traz Gladston Mamede, ainda, no que tange o Princípio Geral da Solvabilidade Jurídica, no campo econômico das relações jurídicas, a ideia de que o cumprimento das obrigações faz surgir o entendimento de uma necessária solvabilidade do patrimônio do devedor, ou seja, “é preciso haver bens e direitos em valor suficiente para permitir o pagamento das obrigações (as dívidas) no momento em que essas estejam vencidas.” (MAMEDE, 2006, p. 30).

É pressuposto no Direito Brasileiro a solvabilidade de todas as pessoas e, enquanto essa pressuposição se mantém, as situações de inadimplência obrigacional são tidas como conflitos individuais. Tal presunção de solvabilidade esta amparada em princípios, da confiança e da solvabilidade jurídica, os quais interpretados conjuntamente aos artigos 391 e 91 do Código Civil Brasileiro, levam ao entendimento de que “[…] para adimplemento das obrigações de uma pessoa respondem todos os seus bens e créditos: as faculdades compensam-se com as obrigações, portanto.” (MAMEDE, 2006, p. 31).

Ocorre que, há situações em que é possível pressupor que não haja solvabilidade por parte do devedor, situações essas em que o patrimônio econômico ativo da pessoa não é suficiente para adimplir com o conjunto de suas obrigações. Diante de tal situação temos a insolvência, ou melhor, a incapacidade de solver.

 

2.1 Indivisibilidade e Universalidade

A falência é o procedimento adotado para se declarar a insolvência empresarial, seja insolvência do empresário, seja insolvência da sociedade empresária. Tal procedimento visa liquidar o patrimônio ativo e saldar, nos limites deste, o patrimônio passivo do falido. De tal sorte tem-se que a falência é um processo judiciário, sujeito a normas procedimentais à luz dos princípios gerais do processo, como por exemplo, o da celeridade e o da economia processual.

Com a decretação da falência, tem-se a constituição de um juízo universal que será responsável, além de dizer o direito, pelo andamento do feito no intuito de preservar à empresa, conforme prevê ideologicamente a Lei 11.101/05.

E é na interpretação do Juízo Falimentar que o professor Gladston Mamede assim se posicionou:

A insolvência empresária, por seus reflexos sobre múltiplas pessoas (credores, trabalhadores, Estado e mesmo terceiros), determina a necessidade de constituição de um juízo universal, para o qual serão atraídas todas as obrigações civis do empresário ou sociedade empresária. Essa força de atração (vis atractiva) fundamenta-se na necessidade de dar ampla proteção a todos que mantenham relações jurídicas com o devedor, além dos que tenham interesse sobre a empresa […]. (MAMEDE, 2006, p. 311)

Sendo assim, no âmbito restrito da falência, e com a ocorrência da sua decretação, temos a atuação do princípio da indivisibilidade do juízo falimentar que, nos moldes do art. 76 da Lei 11.101/05 é “[…] indivisível e competente para conhecer todas as ações sobre bens, interesses e negócios do falido, ressalvadas as causas trabalhistas, fiscais e aquelas não reguladas nesta lei em que o falido figurar como autor ou listisconsorte ativo.”.

Tal princípio deve ser interpretado conjuntamente com o da universalidade previsto no art. 115 do mesmo diploma, segundo o qual “a decretação da falência sujeita todos os credores, que somente poderão exercer os seus direitos sobre os bens do falido e do sócio limitadamente responsável […]”. Em observância a tal entendimento é que Fátima Nancy Andrighi ressalta ser:

Necessário o estabelecimento de um único juízo como competente para o conhecimento e julgamento das ações patrimoniais propostas contra a massa para que se possibilite a efetivação do princípio segundo o qual são todos os credores sujeitos a esse juízo, em condições de igualdade (par conditio creditorum). (ANDRIGHI, 2009, p. 499).

Pretendeu o legislador impedir que sejam declaradas tantas falências em juízos distintos quantos sejam os estabelecimentos do devedor, pretendeu evitar a dispersão de ações de caráter patrimonial a serem propostas contra a massa falida, na tentativa de submeter todas ao crivo de um único julgador.

O professor Rubens Requião, na tentativa de explicar tal princípio, ressaltou que não se busca apenas a reunião na massa falida de todos os haveres e bens do falido, mas a reunião “de todos os bens e todos os interesses dos credores, e do devedor, sob a égide do interesse público, sob uma única e indivisível jurisdição, que por isso mesmo é dito juízo universal da falência”. (REQUIÃO, 1998, p. 97). Sendo o juízo universal competente para conhecer de todas as ações sobre bens, interesses e negócios do falido, sem que, mesmo assim, haja desrespeito às ações de competência constitucionais de outros órgãos como é o caso do Judiciário Trabalhista e da Justiça Federal.

Não obstante se destacar a necessidade de interpretação conjunta dos princípios da Indivisibilidade e da Universalidade, é importante destacar que esses são princípios distintos, que não se confundem apesar de nortearem, paralelamente, o mesmo instituto – Falência. 

 

2.2 Paridade de Credores

Em atenção à eminente ocorrência do concurso de credores no curso de um processo falimentar e, como na maioria dos casos, o patrimônio pretendido não é suficiente para garantir à totalidade dos débitos, foi que o legislador pátrio previu a importância de uma paridade para o recebimento de tais créditos. De tal sorte que, no curso da falência, o Princípio da par conditio creditorum, recebe tamanha importância.

Com relação a tal princípio, pode-se destacar na LRE, em sua Seção II – Da Classificação dos Créditos -, o art. 83 que apresenta o rol de classificação dos créditos, garantindo igualdade de condições de recebimento a todos, mas cabendo diferenciá-los, entre si, naquilo que a lei os diferencia.

A existência de uma ordem de credores implica, necessariamente, em uma preferência no recebimento entre as classes, de tal modo que, conforme Wilges Bruscato, “enquanto não extintos os créditos de uma classe mais privilegiada, não se passa a pagar os créditos da classe imediatamente seguinte”. (BRUSCATO, 2011, p. 512). No Brasil, atualmente, prevalece a seguinte ordem de credores:

Art. 83. A classificação dos créditos na falência obedece à seguinte ordem:

I – os créditos derivados da legislação do trabalho, limitados a 150 (cento e cinqüenta) salários-mínimos por credor, e os decorrentes de acidentes de trabalho;

II - créditos com garantia real até o limite do valor do bem gravado;

III – créditos tributários, independentemente da sua natureza e tempo de constituição, excetuadas as multas tributárias;

IV – créditos com privilégio especial, a saber:

a) os previstos no art. 964 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002;

b) os assim definidos em outras leis civis e comerciais, salvo disposição contrária desta Lei;

c) aqueles a cujos titulares a lei confira o direito de retenção sobre a coisa dada em garantia;

V – créditos com privilégio geral, a saber:

a) os previstos no art. 965 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002;

b) os previstos no parágrafo único do art. 67 desta Lei;

c) os assim definidos em outras leis civis e comerciais, salvo disposição contrária desta Lei;

VI – créditos quirografários, a saber:

a) aqueles não previstos nos demais incisos deste artigo;

b) os saldos dos créditos não cobertos pelo produto da alienação dos bens vinculados ao seu pagamento;

c) os saldos dos créditos derivados da legislação do trabalho que excederem o limite estabelecido no inciso I do caput deste artigo;

VII – as multas contratuais e as penas pecuniárias por infração das leis penais ou administrativas, inclusive as multas tributárias;

VIII – créditos subordinados, a saber:

a) os assim previstos em lei ou em contrato;

b) os créditos dos sócios e dos administradores sem vínculo empregatício.

§ 1o Para os fins do inciso II do caput deste artigo, será considerado como valor do bem objeto de garantia real a importância efetivamente arrecadada com sua venda, ou, no caso de alienação em bloco, o valor de avaliação do bem individualmente considerado.

§ 2o Não são oponíveis à massa os valores decorrentes de direito de sócio ao recebimento de sua parcela do capital social na liquidação da sociedade.

§ 3o As cláusulas penais dos contratos unilaterais não serão atendidas se as obrigações neles estipuladas se vencerem em virtude da falência.

§ 4o Os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários. (BRASIL, 2005).

Decorre da existência de tal classificação a típica situação de alguns credores receberem a totalidade de seus créditos e outros não chegarem a ser pagos. Esse fato ocorre, pois, o sistema brasileiro adotou a equidade entre credores levando-se em conta as qualidades subjetivas do crédito para a concessão do privilégio legal do recebimento.

A insolvência, conforme já salientado anteriormente, quebra a normalidade das relações entre os credores e o devedor e, assim, acaba por frustrar a expectativa da satisfação dos direitos dos credores. Por tal razão é que costumeiramente se lê o concurso de credores como sendo “uma execução coletiva” (MAMEDE, 2006. p. 126) onde a coletividade dos credores executam, em processo único, o restante do patrimônio do devedor comum.

 

3. PRINCÍPIOS FALIMENTARES DESTACÁVEIS NO PROCESSO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO EMPRESARIAL

Esse capítulo tem o escopo de transmitir aos interlocutores a especialidade e o impacto que os princípios da preservação, dignidade da pessoa humana e da função social da empresa têm no processo de constitucionalização do Direito Empresarial. Nesse sentido, a intensidade do Direito Empresarial não é exaurida tão apenas com esses princípios, porém, especialmente são esses os princípios mais contundentes quando se persegue incessantemente a humanização do âmbito do Direito em foco.

 

3.1 Preservação da Empresa

Antes mesmo de adentrar ao Princípio ora proposto é importante salientar alguns aspectos relativos ao conceito de empresa para o direito brasileiro mas que, conforme ressalta o Professor Moacyr Lobato de Campos Filho, “a definição concreta do que representa o instituto jurídico da empresa é tarefa ainda não realizada” (CAMPOS FILHO, 2007, p. 23).

Sendo assim, podem-se encontrar consideráveis distinções entre aspectos e colocações que a lei brasileira adota, por exemplo, o art. 2  da Consolidação das Leis Trabalhistas, em seu caput, entende empresa como o próprio empregador. Já a Lei 6.404/76 (Sociedades Anônimas), também em seu art. 2, caput, a considera como simples atividade desempenhada pela sociedade que a titulariza. Por sua vez, o Código Civil de 2002, em seu Livro II, da Parte Especial, acaba por não conceituar o que vem a ser Empresa, mas em seu art. 966 acabou por estabelecer o conceito de Empresário como aquele que exerce “profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços”.

Mas, ao pensar Empresa no direito falimentar, deve-se entender como manifestação e/ou resultados do exercício da liberdade de atuação econômica e jurídica praticada pelo seu titular, ou seja, o empresário ou sociedade empresária. Afinal, conforme destaca Gladston Mamede:

[…] foi tal pessoa (o empresário ou a sociedade empresária) que, no exercício da liberdade de contratar, contraiu dívidas, assumiu obrigações, e que, via de consequência, deve sofrer os efeitos direitos da insolvência da estrutura e da atividade econômica organizada. (MAMEDE, 2006, p. 181)

Mas tal conceituação, puramente privada de empresa, não afasta a compreensão da função social, ou seja, do interesse que a comunidade como um todo tem sobre a atividade empresarial organizada (empresa), ainda que esta tenha prevalência para o regime jurídico privado.

A preservação da empresa e, consequentemente, da função social da empresa, não é restrita ao empresário ou sociedade empresária, mas visa a proteção de toda a comunidade e do Estado que se beneficiam, direta ou indiretamente, com a atividade desenvolvida pela empresa.

O art. 47  da LRE retrata, legalmente, o cerne da Função Social da Empresa e o instituto da Preservação da Empresa haja vista que busca a preservação da mesma frente aos envolvidos (comunidade, empresário, sociedade empresária, Estado e outros) e, assim, sejam preservados seus postos de trabalho, o recolhimento fiscal, garantindo investimentos em inovações tecnológicas, circulação de mercadorias e serviços e evolução das iniciativas empresariais.

O professor Wilges Bruscato, sabiamente, conclui que “a empresa merece ser preservada pela função social que exerce.” (BRUSCATO, 2011, p. 514). Sendo assim, o foco que se pretende é a preservação da empresa, ou melhor, da atividade empresarial.

 

3.2 Princípio da dignidade humana e sua interface funcional social

O princípio da dignidade da pessoa humana tem profundo relevo no cenário jurídico brasileiro, bem como no direito comparado.

Trata-se de um princípio capaz de fortificar a humanização do Direito. E é capaz de conter a relevância extremada atribuída à propriedade, ao patrimônio, conforme se percebe constitucionalmente.

Segundo Carlos Alberto Bittar (1994), a personalidade, e sua dignidade, são muito importantes na ciência do Direito e cristalizam a ordem jurídica.

Para Maria Celina Bodin de Moraes, inspirada em Chauí:

o valor da dignidade alcança todos os setores da ordem jurídica(...) o substrato material da dignidade desse modo entendida pode ser desdobrado em quatro postulados: i) sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele; ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado. (MORAES, 2006, p.17)

É perceptível que as sociedades que atribuem exagerada importância ao patrimônio, terminam por minorar a importância destinada à dignidade da pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana é fundamental no ordenamento jurídico brasileiro. Consiste em um bem jurídico central, que adquiriu estado de princípio.

A centralidade da dignidade da pessoa humana pode ser percebida no artigo 1º, inciso III da Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 2008). Segundo o suporte fático invocado, este elemento é considerado um princípio fundamental da República Federativa do Brasil.

A dignidade é considerada central, assim como os demais pilares que estão contemplados em semelhante preceito constitucional, quais sejam, a soberania, a cidadania, os valores sociais do trabalho, a livre iniciativa e o pluralismo político.

José Afonso da Silva (2006) contribui ao comentar a importância e o posicionamento da dignidade no direito constitucional. Esta tem estado de cláusula pétrea, representa um direito fundamental, um dispositivo materialmente constitucional.

Essa repercussão transmite que não será possível revogar parcialmente ou totalmente este dispositivo do ordenamento constitucional. Vale afirmar, quaisquer tentativas legislativas, que tenham como fim retirar do ordenamento o elemento em questão, serão marcadas pela ilegitimidade.

Em razão dos comentários feitos no último parágrafo, resta concluir que a dignidade da pessoa humana tem especial blindagem, estatuída precisamente no artigo 60, parágrafo quarto da Constituição Federal (BRASIL, 2008).

A função social, em razão de seu especial posicionamento axiológico e dogmático, pressupõe a dignidade da pessoa humana. Em outras palavras, impossível será um ordenamento jurídico primar pela dignidade da pessoa humana sem tutelar a função social.

Se houver a tutela da função social, necessariamente haverá a tutela da dignidade da pessoa humana. Argumenta-se desse modo, pois a função social persegue a defesa de uma coletividade composta por homens. Aliás, o homem tem como conteúdo existencial e fundamental a dignidade da pessoa humana.

 

3.3 Função social da empresa

Conforme já se apontou, a função social da empresa, assim como a função social da propriedade têm previsão constitucional, diferentemente da função social dos contratos, que tem previsão no Código Civil.

Por esse motivo, para se interpretar o peso e o impacto da função social, explana-se também acerca da função social da empresa.  Assim, o legislador infraconstitucional não poderá criar quaisquer dispositivos que sejam antinômicos à função social da empresa ou tampouco à função social da propriedade.

Concebe-se que a função social se estrutura a partir de elementos como a solidariedade, boa-fé, mitigação do egoísmo, respeito à dignidade da pessoa humana e outros tantos elementos.

José Afonso da Silva (2006), em uma análise constitucional, reputa que a função social da empresa é atribuída em razão do artigo 170, bem como do artigo 160, em seu inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 2008), pelo fato de a função social ser um pilar da ordem social e econômica.

Rodrigo Almeida Magalhães (2007) acrescenta outros dispositivos, para demonstrar o quão trabalhada é a função social dogmaticamente. Nessa análise, é citado o artigo 5º em seu inciso XXIII, bem como o artigo 173, em seu parágrafo primeiro, inciso I. Ainda acresce o artigo 182, parágrafo segundo, e os artigos 184 “caput” e 185, todos da Constituição Federal (BRASIL, 2008). Em análise infraconstitucional,  Magalhães (2007) soma o artigo 421 do Código Civil (BRASIL, 2008), o artigo 116, parágrafo único da Lei 6.404/76, a Lei das sociedades por ações. E, por fim, o artigo 47 da lei de falência e recuperação, a lei 11.101 do ano de 2005.

E é o que se nota em relação à lei das Sociedades Anônimas, a lei 6.404 (BRASIL, 1976), ao se perceber a exigibilidade aos administradores e até mesmo aos acionistas, de uma pluralidade de deveres. Tais como a lealdade e a transparência.

Nesse ponto, uma empresa preocupada em exigir deveres de lisura, idoneidade aos seus sócios é uma empresa comprometida no exercício racional e social da atividade empresária.  Uma empresa com esses nortes, no exercício da circulação de mercadorias e serviços, terá a preocupação com a coletividade. Uma vez que todos esses deveres exigidos primam por afastar e reprimir condutas individualistas, indiferentes aos indivíduos. E é precisamente essa a expectativa que paira sobre a função social da empresa.

A respeito desses deveres, que são adjacentes à função social da empresa, diz Osmar Brina (2005), primeiramente em relação ao acionista controlador:

Dever de exercer o direito de voto no interesse da companhia, evitando o abuso do direito e o conflito de interesses (art. 115); 2. Realizar, nas condições previstas no estatuto ou no boletim de subscrição, as prestações correspondentes às ações subscritas ou adquiridas (art. 106) (LIMA, 2005, p. 225)

Brina (2005), a partir de uma interpretação da lei 6.404 (BRASIL,1976) menciona uma série de direitos concernentes aos administradores. O primeiro dos quais consiste no dever de obediência. Segundo Brina a “obediência significa respeito, acatamento, submissão à lei e ao estatuto social.” (LIMA, 2005, p.181)

Outro dever que também será contributivo para a função social da empresa consiste no dever de diligência, que

significa cuidado ativo, zelo, aplicação, atividade, rapidez, presteza. O administrar da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios (art. 153). (LIMA, 2005, p. 181)

Outro dever a ser destacado, segundo Osmar Brina (2005), consiste no dever de lealdade, do qual deriva uma série de corolários, como o dever informacional e o dever de votar em favor da companhia.

Acredita Magalhães (2007) que o sentido da função social é precisamente a codificação de normas para incutir nos homens a necessidade de agir em consonância com os interesses sociais. Diante disso, a função social da empresa pode ser explicada:

Para a empresa, é atribuído o exercício de uma função sócia, que atende não só os interesses e a autonomia privada dos sócios, mas também da coletividade, atrelando a noção de função social à atividade econômica face a sua importância. (MAGALHÃES, 2007, p. 345)

Todavia, alerta o autor que função social não se confunde com filantropia:

Entretanto, a função social não pode ignorar a função primeira da empresa que é o lucro. Não pode ser esta anulada a pretexto de cumprir uma atividade assistencial, filantrópica. A empresa, tem uma função social, não uma função de assistência social(...) A função social jamais poderá ocupar a função econômica da empresa. Empresa sem lucro não sobrevive, deixa de funcionar. (MAGALHÃES, 2007, p. 345)

Embora a função social da empresa parta de semelhantes pressupostos em relação à função social da propriedade, não há como negar que na primeira modalidade de função social o furor pelo lucro, e pela necessidade intensa de manter o empreendimento é um fator que não pode ser ignorado

 

4.CONCLUSÃO

Ao longo desse artigo, primou-se por transmitir a inelutável relevância dos princípios no processo de construção de uma ciência. Em especial, neste artigo enfocou-se o impacto principiológico na ciência do Direito Empresarial Falimentar.

O Direito Falimentar é composto por algumas facetas, perpassando pela Parte Geral, o Direito Cambiário, Direito Falimentar. Dessa forma, para a solidificação dos princípios é necessário identificar que a faceta empresarial em tela, parte da premissa de uma iminência ou a efetiva configuração de uma crise em face de uma determinada sociedade.

Neste âmbito, constata-se que a expectativa, ao “instaurar” uma sociedade  notoriamente a solvência e a prosperidade, por isso, o processo falimentar formaliza o paradoxo entre este desígnio, esta razão dos personagens criativos e os efeitos atintes ao processo de falência.

Os princípios falimentares transmitem os interesses dos sujeitos e características envolvidas, quais sejam, os credores, flagrantemente projetados no princípio da paridade, bem como a universalidade quanto à dimensão e características dos tipos creditórios atinentes.

Some-se ainda a indivisibilidade, que diz respeito às características do processo Falimentar. 

E por derradeiro, os princípios da função social da empresa e a preservação da empresa, são, de forma inconteste, os maiores representantes de uma visão humanizada do Direito Falimentar, uma vez que esta seara não se resume a uma limitada contabilidade, ao contrário, existem expectativas, anseios, interesses de credores, sócios e administradores, que não podem ser elididos. ao decidir sobre o fim da empresa  ou a continuidade.

Portanto, identificar e valorar a principiologia mais humana é promover um perseguido viés constitucionalizado do Direito Falimentar.

 

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Elaborado em junho/2013

 

Como citar o texto:

BRETAS, Hugo Rios; SALES, André Siqueira..Teorizações introdutórias sobre a principiologia falimentar e sua relevância no processo de constitucionalização do direito empresarial. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 996. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-administrativo/10507/teorizacoes-introdutorias-principiologia-falimentar-relevancia-processo-constitucionalizacao-direito-empresarial. Acesso em 13 dez. 2013.

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