Uma das  coisas que mais me intriga  no discurso  “oficial” da OAB acerca da “má qualidade e das deficiências do ensino jurídico  no preparo dos bacharéis” como a principal – para não dizer a única – causa dos  alarmantes índices de reprovação no Exame de Ordem, não é o discurso em si (  por demais simplista e reducionista) mas a apatia e o silêncio conformista por  parte das instituições de ensino (pelo menos da grande maioria) insistente,  periódica e veementemente apontadas como as verdadeiras – para não dizer as  únicas -  responsáveis por tais  “deficiências” e a consequente “reprovação em massa” nesses exames .  Em termos comparativos, essa inusitada  situação parece indicar que, por mais que os redatores da “lei  das leis” tenham imposto grande empenho retórico na questão da liberdade e autonomia universitária e de que a educação  deve ter como objetivo prioritário o pleno desenvolvimento da pessoa, seu  preparo para o exercício da cidadania e sua (real) qualificação para o trabalho, o que conta é apenas o resultado final : a entrega do diploma  universitário. E se damos essa situação por normal, se não parece razoável  fazer nada para corrigí-la, talvez possamos economizar os gastos que se  investem na educação porque, de uma maneira ou outra, já não servem ou servirão  de grande coisa.   Assim  que me preocupa a atitude das instituições de ensino quando,  diante de   de tais acusações, continuam a adotar uma “política de avestruz”, como  se o baixo índice de aprovação nos exames de ordem por parte dos egressos  dessas mesmas facultades de direito não lhe diga respeito ou se trate apenas de  um episódio que não tem a dimensão e a transcendência que parece ter. Nada mais  longe da realidade: o que de fato salta à vista, por mais que possam negá-lo –  que certamente não o fazem - as autoridades e as instituições de ensino com  responsabilidades na formação desses profissionais, desde as governamentais até  as que dirigem o mercado da educação, é que, já faz algum tempo, alcançamos  sobre essa questão uma situação de stress, reprovável e feia.  Na  verdade, qualquer parecido com o que caberia chamar uma postura universitária  de compromisso ético  brilha, hoje,  de maneira clamorosa por sua ausência.E nem  se diga, ao melhor estilo kantiano, que em temas como esses o que conta são as  “boas intenções”, porque a ação é a única prova fiável e fidedigna para valorar  a intenção: se a ação nunca aparece, é muito provável que a intenção seja uma  farsa. E embora não exista – parafaseando Churchill- nenhuma terra neutral  entre o bem e o mal onde alguém possa viver uma vida moralmente tranquila,  nossas instituições de ensino jurídico se comportam como se estivessem vivendo  esse tipo de vida.  Depois,  nunca é demais recordar que a essência da  apatia reside precisamente no fato de que carrega consigo a completa perda de  interesse no que sucede. Nada nos preocupa nem nos importa. E uma consequência  natural disso é que nossa disposição a estar atentos se debilita e nossa  vitalidade ou sensibilidade moral se atenua.Em suas manifestações mais  habituais e características, o conformismo apático implica uma redução radical  da agudeza e constância de atenção ao que realmente importa. Nossa consciência  moral perde a capacidade de perceber injustiças, convertendo-se em algo cada  vez mais homogêneo. E à medida que se expande e se apodera de nós, a  indiferença faz com que nossa consciência ou compromisso ético experimente uma  diminuição progressiva de sua capacidade de perceber os fatos importantes. A  justiça só é um valor para os que se interessam e desejam a justiça. A  humanidade só é um valor para os que   desejam viver humanamente; a vida só vale para quem a busca ativamente;  e nenhuma coisa comanda a não ser proporcionalmente ao interesse que temos por  ela. Dito de modo mais simples: ter interesse por alguém ou algo significa ou  consiste essencialmente, entre outras coisas, em considerar seus interesses  como razões para atuar ao serviço dos mesmos.    Visto desde essa perspectiva, as  facultades de direito estão fazendo  muito pouco (ou quase nada) para combater a lógica do discurso das “  deficiências do ensino jurídico”. Parece até que o que se predica só se aplica  e afeta aos bacharéis; as instituições que os  formaram durante 5 longos anos não têm nada que  dizer a respeito. Sem embargo, se é certo que a distância faz coisas estranhas  a nosso sentido moral, não menos certo  é o fato de que se deixas a um grupo de indivíduos privado de  oportunidades reais na estrutura social e que povoam seus interstícios sem  conseguir um lugar no mercado de trabalho, o distancias das práticas e  instituições sociais das que forma parte; e muito provavelmente os membros  desse grupo se convertirão em fatores ou números estastíticos que desvalorizam  essas mesmas instituições.  Assim  que à medida que a esfera de preocupação das instituições de ensino se faz cada  vez mais estreita, começamos a ser testemunhas de um fenômeno de “definhamento  moral”. Sequer nos podemos surpreender de que o compromisso ético das instituições  de ensino com os bacharéis saídos de suas entranhas esteja tornando-se cada vez  mais avaro e insípido,  e se converta em  uma simples preocupação pelas “leis da terra”. E se tomamos o fenômeno do Exame  de Ordem  e da indústria dos cursinhos preparatórios  como indício, este processo já está bastante avançado no Brasil.   Os que  se calam não sentem nenhuma vergonha se a lei permite condenar  ao desemprego milhares de Bacharéis que  reprovam no mencionado exame, taxando-lhes (implícita e indiretamente) de  desonestos, incultos e incapazes, vítimas inocentes de um modelo de ensino  esclerosado e assumidamente ineficiente. Os problemas morais e sociais gerados  por esse instrumento de “controle de qualidade” se resolvem recorrendo a  legislação. E as instituições culpadas dessa falta moral atroz defendem  rotinariamente seu direito de continuar com tal prática sob o argumento  de que “não fazem nada ilegal”. O que se  espera é que quando não se imcumpre a lei não se pratica nenhum mal. Nada mais  longe da verdade ( verdade, aqui - diga-se de passo - , empregada no sentido  dado por Harry Frankfurt).  Por  vezes, ainda que nos encontremos na presença de mandados emitidos por um  legislador formalmente habilitado e acompanhados por uma organizada garantia  coativa, o que se nos oferece são autênticas perversões do ato de legislar. Não  podem, com efeito, considerar-se de outro modo as normas abertamente contrárias  à idéia de Direito e, portanto, violadoras daquela mesma função axiológico-normativa  em que terão de justificar-se como normas jurídicas válidas e legítimas.   Há um sentido comum  de que o Direito  segue exigindo um momento de incondicionalidade que  obedece a sua necessária vinculação com a moral , ou seja, de que não se tornou  exclusivamente instrumental como pretendem fazer ver alguns discursos motivados  por prejuízos ideológicos, políticos e/ou interesses  corporativos. De fato, é essa pretensão de correção moral que permite  distinguir entre o Direito   e a força bruta , que permite distinguir (ou não) entre a  ordem de um delinquente (“a bolsa ou a vida”) e a ordem de cobrança de uma  determinada contribuição , enfim, que não  permite conceber o Direito, inclusive o  direito legislado, de outra maneira que não esteja destinado a servir a  justiça.   E porque as  perguntas sobre a justiça são perguntas morais,  as instituições que desconsideram essa  incondicional dimensão do Direito, que negam conscientemente a vontade de  justiça ou quando violam arbitrariamente   os princípios, os direitos e as garantias consagradas, cometem, por  essa via, uma falha moral e a pretensão de correção transforma essa deficiência  moral em deficiência jurídica : as normas perdem seu caráter jurídico se  sobrepassam certos limites de injustiça. Dito de outra forma,  parece ser que a única atitude legítima  em face de um “instrumento  de controle” injusto, despropositado e inconstitucional é a de lutar aberta e  criticamente contra sua aplicação.  Às  instituições de ensino lhes corresponde   o dever moral e jurídico de reagir contra essa prática deplorável e a atual  política institucional de exploração que parece só saber bazofiar o triunfo do  fracasso, apontar culpados e indicar responsáveis. A virtude , a independência  e a autonomia universitária não são outra coisa que a manifestação da autonomia  do Direito e, em razão disso, essas mesmas universidade se encontram comprometidas  eticamente com o imperativo moral ( e constitucional)  de que capacitar o ser humano para o exercício virtuoso de uma atividade  profissional, como valor primeiro, somente se afirma a partir do respeito  incondicional por sua dignidade: não somente de um aluno ou de um Bacharel, mas  de um ser humano com plena aptidão para sentir, reagir, amar, eleger, cooperar,  dialogar e de ser, em última instância, capaz de autodeterminar-se livremente  no âmbito de sua formação pessoal e profissional.  Mas se  em realidade  nada disso importa, melhor  para todos. Sem embargo, a mensagem que há que enviar àqueles que realmente  educam é que não é insignificante ou “sem sentido” o que está sucedendo: que a  indiferença, a pusilanimidade e a falta de uma postura mais firme e aberta não  são ( e não devem ser) a regra. Que a simples suspeita de que algo vai mal já  constitui razão suficiente para ficar atento e pressionar os verdadeiros  responsáveis por uma situação que já começa a acariciar os limites de situações  socialmente degradantes, até averiguar o que efetivamente está ocorrendo. E  que, depois de tudo, se obrará em consequência.   Somente  assim os “filhos da deficiência” terão a oportunidade para emancipar a si  mesmos em uma sociedade “livre, justa e solidária”. Enquanto  houver indivíduos vivendo  sob o manto perverso da mais bárbara , injustificada  e completa falta de oportunidades de trabalho,   dignidade humana, liberdade e igualdade , não são para eles sequer meras  possibilidades humanas. Por conseguinte, até que as “mães da deficiência” (as  universidades) não tomem partido e lutem em favor de seus egressos, todo e  qualquer discurso universitário sobre “qualidade de ensino” , cidadania e  justiça não passará de mera retórica dessorada e vazia de conteúdo.   Em  resumo, se entendemos como correto e pertinente o princípio de Kant de que  “onde há um posso, há um devo”, já é hora de que as instituições de ensino , no  que se refere ao problema do Exame de Ordem, deixem de uma vez por todas de  habitar no primeiro círculo do inferno de Dante: o da  indiferenzza,  o reino do puro interesse próprio egoísta, a “origem de todo mal” e a mais  cruel e perversa forma de castigo moral .

 

fevereiro/2008

 

Como citar o texto:

FERNANDEZ, Atahualpa..Exame de ordem e apatia universitária. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 256. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/exame-da-ordem-e-concursos/1866/exame-ordem-apatia-universitaria. Acesso em 10 fev. 2008.

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