Os juízes estão habilitados pela Constituição da República para decidir sobre a liberdade e o patrimônio das pessoas. O poder normativo de que dispoem, quer dizer, de julgar e executar suas decisões, de acordo com o ordenamento jurídico,  constitui uma das garantias do Estado de Direito. Trata-se  de um poder de uma importância decisiva , tanto para a salvaguarda da condição de cidadão  titular de direitos e deveres como, e muito especialmente , para preservar a credibilidade e a estabilidade institucional do Estado  democrático.

Com efeito, do Poder Judiciário se esperam muitas tarefas: que defenda nossa liberdade,  que nos proteja frente aos abusos dos poderes públicos , que condene a ação delitiva, que inviabilize qualquer forma de trabalho indigno, que promova a igualdade entre os indivíduos, que tutele a quem  ainda não há nascido, que ponha fim a uma  sociedade ou vínculo matrimonial  de  quem se embarque nestas  decisões tão íntimas e pessoais, enfim, que atue como agente construtor de uma comunidade de homens livres e iguais , unidos por uma comum e consensual adesão ao direito e em pleno e permanente exercício de sua cidadania. E por aí poderíamos seguir.

Esta reduzida mas significativa mostra das inúmeras atribuições institucionais que cabem aos membros do Poder Judiciário poe de manifesto a importância que  adquirem os modelos de seleção e processos de formação dos magistrados. De fato,  os critérios de seleção para aceder à judicatura constituem , ou pelo menos deveriam constituir, um fator decisivo para o adequado funcionamento do Poder Judiciário , em especial porque se trata de cargo exercido com caráter de vitaliciedade. Adequado às exigências de um Estado republicano e democrático, no qual a jurisdição é a sede natural para a  efetiva tutela  dos direitos e libertades fundamentais , onde a idéia de justiça e a pretensão de correção hao de presidir e dimencionar  toda  a  atividade de seus membros ,  e cujo peculiar talante de modelo ético-político aberto aporta valores de cidadania e de metodologia jurídico-política essencialmente úteis para tomar o direito como um instrumento de construção social e, muito particularmente, para assimilar os câmbios formais e materiais no processo de tomada de decisões ante a dinâmica fluída (e por vezes enlouquecida) do “mundo da vida” cotidiana.

Pois bem, parece haver um certo consenso no sentido de que o atual modelo de seleção de juizes ( e aquí incluiria também o modelo de seleção dos membros do ministério público) já não mais atende às exigências de justiça que norteiam o desenho institucional do Estado democrático moderno. Porque, sem deixar legítimamente de reconhecer que no panorama do judiciário nacional abundam excelentes magistrados,  o sistema de seleção atualmente adotado incentiva mais  um perfil de juiz  memorizador,  leitor de códigos e enclausurado ao muito limitado esquema do silogismo interpretativo e lógico-formal do direito positivo.

Isto é , muito distante de um modelo de juiz que, sem prejuízo do preceptivo  conhecimento do ordenamento jurídico vigente , demonstre igualmente sua capacidade para compreender que a atividade hermenêutica se formula precisamente a partir de uma posição antropológica e põe em jogo uma fenomenologia do atuar humano; que somente situando-se desde o ponto de vista do homem e de sua natureza será possível ao julgador  representar o sentido e a função do direito como unidade de um contexto vital, ético e cultural: o homem , ponto de partida e chegada do fenômeno jurídico, que vive das representações e significados desenhados para a cooperação, o diálogo e a argumentação . Que, em seu "existir com" e situado em um determinado horizonte histórico-existencial, pede continuamente aos outros, cuja alteridade interioriza, que justifiquem a legitimidade de suas eleições  aportando as razões as subjacem e as motivam.

Quer dizer, daquele tipo de juiz cujo primero e melhor atributo seja sua virtuosa competência para comprender que sua tarefa hermenêutica, da qual não se pode excluir a dimensão emocional e de subjetividade do juízo, não se configura como produção ex nihilo, que não é somente uma circunstância de produção subordinada à lei, senão que deve ser concebida como uma praxis social destinada a desenhar um modelo sócio-institucional que , garantindo uma certa igualdade material , permita, estimule e assegure que a titularidade e o exercício de direitos de todo ponto inalienáveis não sejam sacrificados em função de arbitrários interesses e injustificadas interferências por parte do Estado ou de qualquer outro agente social.

De um modelo de seleção e formação que, enfim, trate de impedir um perfil de juiz proclive ao automatismo,  ao  isolamento teórico, a uma ortodoxa rigidez interpretativa e, até mesmo, a um desvairado  e  irracional subjetivismo , origem de sentenças  deficientes  e, em determinadas ocasioes, carentes de um mínimo sentido de ponderada razoabilidade acerca dos interesses e valores em conflito, quando não, de decisões flagrantemente arbitrárias.

E porque em um sistema republicano-democrático real a atividade de um magistrado (que tem em suas mãos a distribuição de direitos e deveres inerentes ao exercício da cidadania)  não  pode estar limitada a realizar um mero exercício semântico ou lógico-dedutivo da norma jurídica  – essa ferramenta cultural e institucional “cega”, virtualmente neutra e com potencial capacidade vinculante para  predizer e regular o comportamento  humano- , qualquer que seja sua natureza ou grau de imperatividade, parece haver chegado o momento oportuno para que se proceda uma profunda reforma do atual modelo de seleção de juízes, com o objetivo precípuo de criar mecanismos aptos a habilitá-los ao inegociável compromisso de colocar-se à frente dos fatos e dos vínculos sociais relacionais  para, com a iniludível  “pré-compreensão” e talento de desenhador que caracteriza o prudente ato de julgar , impulsionarem os câmbios necessários para que se promova um panorama institucional, normativo e sócio-cultural o mais amigável possível para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Assim que a modalidade de seleção e formação de magistrados que justifica esta nova forma de trabalhar o fenômeno jurídico deveria consistir , como não , em um processo preliminar de provas e títulos destinado a avaliar o nivel de cultura jurídica geral dos candidatos, mas já agora devidamente conjugado com um adequado processo de formação ética , multidisciplinar e filosófico-jurídica , destinado a potenciar  a capacidade dos futuros juízes para fazer valer e projetar no ordenamento jurídico os princípios e valores fundamentais do direito e da justiça, em tudo comprometido com a invariante axiológica de incondicional respeito à dignidade da pessoa humana.

Um processo de formação cujo principal objetivo seria o de mostrar que um positivismo ingênuo pode fazer com que se conceba ilusões impróprias acerca da função do direito e do papel do operador jurídico, uma vez que não é absolutamente certo que um melhor conhecimento de códigos e normas jurídicas  proporcione automaticamente uma vida humana mais digna. Oxalá fossem as coisas tão simples! Quem pensa que a relação direito/norma é tudo esquece que a medida do direito, a própria idéia e essência do direito, é o humano, cuja natureza resulta não somente de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios senão também de experiências, valores, aprendizagens, e influências procedentes de nossa igualmente embaraçada vida sócio-cultural.

Por certo que essa preparação exigiria, como não pode ser de outra maneira, um esforço acrescido por parte dos candidatos ao cargo de juiz. Uma preparação, extendida ao longo de um determinado período de tempo, que haveria de ser acreditada no âmbito das escolas superiores da magistratura (ou , no caso, das escolas superiores do ministério público) , com uma composição docente plural e multidiciplinar  , formada tanto por professores provenientes da própria magistratura, das universidades, do ministério público e das demais entidades representativas da classe jurídica . Com caráter classificatório e eliminatório, este processo de formação  ético , teórico, filosófico e metodológico seguramente viria a permitir a cada tribunal , no exercício de um legítimo controle prévio , dispor de uma idéia mais cabal e definida acerca das faculdades morais e jurídicas do futuro juiz : uma forma de materializar a  famosa  “eterna vigilância cidadã”  republicana que, neste caso,  trataria  de  evitar que um eventual  despreparo ético-jurídico por parte dos futuros magistrados venha a  romper os vínculos da  igualdade cidadã  e a degradar  a  res  publica  a   imperium.

Em síntese, caberia a essas escolas a preparação integral do magistrado para dignificar o ato de julgar, no sentido de , buscando superar os já conhecidos limites e distorções do atual modelo de seleção , capacitá-los não somente à tarefa de "saber" razoavelmente o direito expresso através de normas positivadas, mas principalmente para compreender que o direito, como tal, não é mais nem menos que um instrumento, uma estratégia sócio-adaptativa empregada para articular argumentativamente , por meio da virtude da prudência , os vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os homens constroem estilos aprovados de interação e estrutura social.

Tal modelo de seleção e formação está fundamentado no fato de que  somente através de uma adequada e multidisciplinar preparação ética, filosófica, teórica e metodológica será possível confiar ao juiz a tarefa de atualização crítica do direito como modelo de ordem vinculante e, em particular, de encomendar-lhe a eqüitativa distribuição e equilíbrio entre as três grandes virtudes ilustradas que constituem o núcleo básico da justiça. Somente uma adequada formação filosófico-jurídica lhes comprometerá a manter uma unidade de critérios de valoração, em um esforço de busca de discursos jurídicos com potencial capacidade de consenso e que, sobretudo, atendam ao princípio ético segundo o qual o direito deve ser manipulado de tal maneira que suas conseqüências sejam sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a miséria humana : que não se produza sofrimento quando seja possível preveni-lo, e que o sofrimento inevitável se minimize e afete com moderação aos  membros individuais da sociedade, aos cidadãos.

Neste particular , estamos firmemente convencidos de que o êxito ou o fracasso da humanidade depende em grande medida do modo como as instituições que interpretam e aplicam as leis sejam capazes de incorporar essa nova perspectiva acerca do conteúdo e da função do direito (particularmente com relação a natureza humana) em princípios, valores, métodos e decisões jurídicas. Compreender a natureza humana , sua limitada racionalidade , suas emoções e seus sentimentos parece ser o melhor caminho para que se possa formular um desenho institucional e normativo que, reduzindo o sofrimento humano, permita a cada um viver com o outro na busca de uma humanidade comum.

Isso supõe, sem dúvida, um câmbio radical na lógica do atual modelo de seleção dos candidatos ao cargo vitalício de juiz que, uma vez conjugado ao curso de um adequado processo de formação e preparação intelectual , viria a permitir o desenvolver e o precisar de um acontecer contínuo da identidade e do sentido do direito, da justiça e da própria natureza humana. E como consequência necessária dessa reforma seguramente se viria a constatar, de pronto, um aumento notável dos compromissos e responsabilidades jurídicas, culturais, políticas e morais assumidas pelos futuros magistrados: se encontrariam ética e substancialmente habilitados à tarefa  de recompor a antinomia sempre latente entre ética e positividade do direito, entre vínculo da norma e flexibilidade necessária ante fins sociais, superando os estágios meramente formais no domínio da realização do direito, com a independência, a coragem e a necessária virtude que os compromissos vitais sempre implicam.

Já é chegada a hora de assumir que a dignidade do ato de julgar não consiste apenas em uma questão de lógica ou de "bom senso" mas , acima de tudo , de virtude moral. É preciso reconhecer  que  não somente desde a lex corrupta  insensatamente aplicada provém o injusto real  como  na  aplicação do Direito intervêm, ademais da razão, os sentimentos e as emoções:  para ser um bom magistrado não basta com  ter capacidade argumentativa ( com conhecer o Direito vigente) , senão que é necessário ter outras virtudes como  sentido da justiça , compaixao e valentia. Afinal,  o que dá sentido ao Direito não pode ser outra coisa  que  a  aspiração  à  justiça ou, para dizer  em termos mais modestos e mais realistas:  a luta contra toda e qualquer forma de injustiça.

Se trata, em definitivo , de proporcionar à sociedade um perfil de juiz que , dizendo o direito in concreto ,  priorize a tarefa de alcançar um estado de coisas  que se  aproxime das expectativas culturais e das intuições e emoções morais (jurídico sociais de validade e de  legitimidade substancial) de uma comunidade de indivíduos ante a qual seu discurso deve apresentar-se justificado, traduzindo e compondo , em termos de razão e em fórmulas apropriadas de ordenada convivência , essa instintiva e mesmo indisciplinada aspiração de justiça que a move para o futuro.

De um magistrado que incentive e priorize a implicação do direito com uma postura republicana e democrática do Estado e, portanto, que se distancie da paroquiana concepção de sacerdote da dogmática, travestido do manto da infalibilidade  jurídica e autoinvestido da suposta virtude que faz dos juízes “les  bouches  qui  prononcent les  paroles  de  la  loi, des  êtres   imanimés  qui  n´em peuvent  modérer  ni  la  force  ni  la  rigueur”(Montesquieu)

 

Como citar o texto:

FERNANDEZ, Atahualpa..Seleção e formação de juízes. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 167. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/pratica-forense-e-advogados/1069/selecao-formacao-juizes. Acesso em 27 fev. 2006.

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