SUMÁRIO: 1. Os contratos bancários, financeiros e de cartões de crédito como contratos de massa - 2. O conceito dogmático de relação jurídica - 3. A importância dos serviços - 4. Significado da expressão mercado de consumo - 5. Mandato e representação - 6. A abusividade da cláusula mandato

1. OS CONTRATOS BANCÁRIOS, FINANCEIROS E DE CARTÕES DE CRÉDITO COMO CONTRATOS DE MASSA

A estipulação de cláusulas gerais de contrato tem assumido importância particular nos setores financeiro, bancário e de cartões de crédito. A organização da atividade bancária para travar relações com uma multiplicidade de clientes impõe dupla necessidade: a padronização dos esquemas e cláusulas dos contratos mediante formulários uniformes e a simplificação das relações jurídicas por meio da adoção de instrumentos e títulos de crédito, cujo objetivo é permitir o controle das situações jurídicas materiais por situações jurídicas meramente formais.(1)

Os bancos valem-se, via de regra, no tratamento com os clientes, de cláusulas contratuais uniformes, predispostas unilateralmente, a fim de racionalizar ao máximo a gestão empresarial. Este fato, que reflete o fenômeno mais amplo da massificação dos contratos, afetou de forma drástica a liberdade dos clientes que contratam com as instituições financeiras, o que é grave se considerarmos que o recurso ao crédito é indispensável para que os consumidores possam operar no mercado de consumo.

A massificação dos contratos bancários relativizou o princípio da liberdade de contratar em pelo menos duas acepções principais. Em primeiro lugar, a liberdade de escolher o outro contratante torna-se muito limitada, além de possuir reduzida importância prática, pois não existem variações significativas entre os contratos elaborados pelos predisponentes. Em segundo lugar, a autonomia das partes para estabelecer os conteúdos contratuais praticamente deixou de existir nos contratos financeiros, bancários e de cartões de crédito. As cláusulas contratuais são predispostas unilateralmente mediante a elaboração de esquemas uniformes, que se repetem em todos os contratos celebrados pela empresa. Tais contratos suprimem as negociações prévias, cabendo ao aderente aceitar ou recusar em bloco o regulamento contratual que lhe é apresentado.

Enquanto os contratos individuais se caracterizam pela discussão das cláusulas que compõem o seu conteúdo, os contratos financeiros, bancários e de cartões de crédito são contratos por adesão dos clientes ou consumidores, que não discutem as suas cláusulas como sucederia nos contratos isolados. A predisposição de cláusulas contratuais uniformes transcende o contrato singular para encontrar a sua justificação em razões de ordem econômica e prática relacionadas à exigência de uniformidade no âmbito de todas as relações das quais é parte a empresa. Desse modo, a avaliação de cada contrato e a conseqüente variação de sua licitude não pode prescindir da consideração de que cada contrato se insere no âmbito de uma estratégia empresarial comum que procura uniformizar as relações contratuais que a empresa estabelece com os consumidores.(2)

Não se deve imaginar que a expansão das cláusulas contratuais uniformes tenha como causa o comportamento fraudulento de empresários e fornecedores. É, antes, exigência inseparável que acompanha a formação e consolidação do mercado de consumo. Ela permitiu, do ponto de vista empresarial, economia de tempo, redução de custos e eficiência de gestão.

Apesar dos benefícios que acarreta, a estipulação unilateral das cláusulas contratuais enseja a prática de incontáveis abusos. É o que muitas vezes acontece com os contratos financeiros, bancários e de cartões de crédito. Exemplo particularmente significativo do que acaba de ser dito ocorre com relação à estipulação da cláusula mandato.

Se é verdade que a estipulação da cláusula mandato não provoca necessariamente a prática de abusos, não se pode deixar de reconhecer que na maioria das hipóteses a sua inserção nos contratos para o consumo é, nos termos do Código de Defesa do Consumidor, abusiva.

Antes, porém, de discutir em que circunstâncias a predisposição da cláusula mandato é abusiva, é preciso responder a uma questão preliminar, a saber: os serviços de natureza bancária, financeira e creditícia são abrangidos pelo Código de Defesa do Consumidor? A prestação desses serviços constitui objeto das relações jurídicas de consumo?

2. O CONCEITO DOGMÁTICO DE RELAÇÃO JURÍDICA

A teoria clássica do direito privado considera que a relação jurídica é toda relação social que, regulada pelo direito, produz efeitos jurídicos. A ordem jurídica não se limitaria, simplesmente, a reconhecer as relações estabelecidas pelos diferentes sujeitos jurídicos, mas institui modelos que têm como resultado atribuir conseqüências jurídicas às relações sociais. É por essa razão que a relação social somente se converte em relação jurídica no momento em que se subsumir ao modelo normativo estatuído pelo legislador.(3)

A relação jurídica comporta, desse modo, dois requisitos. É necessário inicialmente que exista uma relação intersubjetiva, isto é, uma relação entre duas ou mais pessoas. Além disso, é preciso que a relação intersubjetiva seja qualificada normativamente de tal sorte que, ocorrendo no plano fático a hipótese prevista na norma, dela derivem certas conseqüências jurídicas.

Toda relação jurídica compreenderia, assim, quatro elementos: sujeito, objeto, fato jurídico e garantia.(4) Sujeitos da relação jurídica são as pessoas entre as quais se estabelece o vínculo obrigacional. São os titulares do direito subjetivo e do dever jurídico do sujeito passivo. Podem ser objeto de uma relação jurídica uma coisa, uma prestação ou a própria pessoa.

O fato jurídico é todo ato humano ou acontecimento natural previsto na lei como hipótese de fato que faz com que a relação jurídica passe do plano abstrato para a realidade concreta.

Por sua vez, a garantia consiste na possibilidade, colocada à disposição do titular, de valer-se do aparato coativo do Estado caso tenha o seu direito subjetivo violado. Esse conceito de direito subjetivo foi criticado por HANS KELSEN para quem a relação jurídica nada mais é do que uma relação entre normas.(5)

Dizer, por exemplo, que o credor é sujeito de uma relação é afirmar que a norma prescreve ao devedor certo comportamento, isto é, o pagamento da dívida sob pena de sanção. Analogamente, dizer que o devedor é sujeito da obrigação significa adotar o comportamento previsto na norma que evita a sanção. Seja como for, o conceito de relação jurídica desempenha função relevante no pensamento dogmático. TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, acentuando a sua importância, afirma que para a dogmática: "a decidibilidade dos conflitos depende das posições que os agentes ocupam, uns em relação aos outros nas interações normativas: quem deve, quem paga, quem manda, quem obedece, quem prescreve, quem cumpre, são posições que implicam relações que competem ao direito construir (dirá KELSEN) ou disciplinar (dirá a doutrina tradicional) juridicamente".(6)

3. A IMPORTÂNCIA DOS SERVIÇOS

Razões socioeconômicas e técnico-jurídicas militam em favor da inclusão dos serviços de natureza bancária, financeira, creditícia e securitária, no âmbito da aplicação do Código de Defesa do Consumidor. A partir das décadas de 50 e 60 começou a ocorrer nas sociedades desenvolvidas o fenômeno que foi por muitos descrito como a passagem da sociedade industrial para a sociedade pós-industrial.(7) A verdade é que, desde então, se processam importantes mudanças na composição das populações economicamente ativas dos países desenvolvidos; a estrutura ocupacional desloca-se do setor secundário para as atividades terciárias, e aumenta o significado dos serviços, como eixo da atividade econômica. Esse processo abrange diferentes estágios.

Em primeiro lugar, o desenvolvimento industrial exige a expansão dos serviços auxiliares para a movimentação dos bens, bem como o aumento da força de trabalho não-manufatureira. Em segundo lugar, o consumo em massa requer que seja ampliada a rede de distribuição dos bens (venda por atacado e varejo) e de atividades conexas como o setor financeiro e de seguros. Por último, com o aumento da renda tende a diminuir a proporção dos recursos dispendidos com a alimentação, desenvolvendo-se, em conseqüência, um novo setor, o setor de serviço.(8) Sob esse aspecto, aliás, as demandas sociais dirigem-se para duas áreas principais: saúde e educação. As reivindicações na área da saúde correspondem ao esforço no sentido de melhorar a qualidade de vida, ao passo que a educação é requisito essencial para o desempenho das habilidades requeridas pela sociedade. Cada vez mais, as inovações decorrem do novo relacionamento que se estabelece entre a ciência e a tecnologia, em que a ciência é instrumento decisivo para o crescimento da produção.

Com o advento da terceira revolução industrial, o conhecimento e a tecnologia passaram a ter importância central para o desenvolvimento econômico. Com a transformação da estrutura econômica, que não mais se circunscreve apenas aos países desenvolvidos, a chamada "indústria" de serviços ocupa posição vital para o crescimento da economia. O padrão de vida não é definido em razão da quantidade de bens que alguém possa adquirir, mas pela qualidade da existência avaliada de acordo com os serviços de que um indivíduo pode desfrutar.(9)

4. SIGNIFICADO DA EXPRESSÃO MERCADO DE CONSUMO

No plano técnico-jurídico a questão ganha relevo particular porque o Código de Defesa do Consumidor formulou um conceito amplo de fornecedor, incluindo ao mesmo tempo todos os agentes econômicos que atuam, direta ou indiretamente, no mercado de consumo. A compreensão do alcance do § 2º do artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor exige, contudo, o esclarecimento do sentido da expressão mercado de consumo, que nele se acha inserida.

De modo geral, pode-se dizer que existe mercado toda vez que os agentes econômicos especulam, mesmo que em nome de uma das partes sobre as oportunidades de lucro que a troca oferece no quadro da concorrência. As relações de mercado são recíprocas, mas descontinuas, pois a relação se esgota com a certeza de que outros farão trocas iguais em condições análogas. O mercado caracteriza-se, assim, pela dialética entre a descontinuidade das trocas e a continuidade da previsão, fato que exige a regulação jurídica como condição de sua existência.(10)

Para o mercado clássico, regulado pelo princípio da oferta e procura, não há sentido em se falar em proteção do consumidor.(11) Afinal, para o liberalismo novecentista, o consumidor é a fonte última de todo poder e iniciativa em matéria econômica. Os bens por ele adquiridos resultam de suas necessidades internas ou dos impulsos provenientes do seu meio ambiente.

A afirmação da soberania do consumidor implica a existência de um ciclo unidirecional de mensagens, que ao se iniciar no consumidor passa pelo mercado e chega ao produtor, indicando o que deve ou não ser produzido.(12) A partir do último quartel do século XIX, todavia, teve início amplo processo de concentração empresarial, que afetou profundamente as bases em que se apoiava a economia clássica.(13) Esse processo, que se caracterizou pela concentração e centralização de capitais, foi em boa parte facilitado pela disciplina jurídica das sociedades anônimas.

A grande sociedade anônima, juntamente com a organização do sistema de crédito, permitiram a fusão dos capitais isolados, tornando possível a produção em larga escala. O próprio funcionamento da economia concorrencial acabou por se constituir em agente de centralização, pois a competição em torno da venda de produtos baratos exigia a redução dos custos, algo que somente poderia acontecer com a organização da produção em série dirigida para mercados cada vez mais amplos.

Além disso, a formação de combinações empresariais, que hoje adquire dimensão transnacional graças ao entrelaçamento dos mercados, reduziu os efeitos da concorrência sobre a estrutura da empresa. Ao contrário do que sucedia no início da revolução industrial, as grandes unidades econômicas não estão mais submetidas ao mercado, mas devido ao aperfeiçoamento de novos métodos de gestão absorvem e eliminam os riscos de futuras perdas: controlam desde os meios necessários à obtenção de matéria-prima à colocação de um novo produto no mercado. Os grandes grupos empresariais atuam em diferentes ramos da atividade econômica com uma diretriz de comando uniforme, que dá sentido e coerência à ação das unidades isoladas.

Diferentemente do que ocorria na economia clássica, não é mais o consumo que determina a produção, mas esta que determina o que será ou não produzido.(14) Se é verdade que esta descrição não abrange a economia, considerada em seu todo, havendo um setor constituído por pequenas e médias empresas, no qual predominam as regras do mercado competitivo, não se pode deixar de reconhecer que a verticalização das relações econômicas deu origem a um poderoso sistema de motivação e persuasão capaz de controlar os consumidores. Esse sistema passou a ser tão ou mais importante que o próprio aparato de organização para a produção e distribuição de bens.(15) Com isso, as necessidades dos consumidores não são exclusivamente o produto de suas exigências físicas ou biológicas, ou mesmo do ambiente em que vivem e atuam, mas são em grande parte forjadas pelas campanhas publicitárias.

O mercado de consumo indica, desse modo, a existência de agentes econômicos que especulam sobre as oportunidades de lucro que a troca oferece por meio da oferta de bens e serviços. A concorrência, que caracteriza os setores competitivos da economia, é reduzida nos setores oligopolísticos e desaparece por completo nas atividades prestadas sob o regime de monopólio. Nem por isso, essas atividades poderão ser excluídas do âmbito da proteção ao consumidor.

O mercado de consumo não se restringe às atividades de produção em série ou de transformação, abrangendo, inclusive, a mera venda de bens in natura. A propósito, o § 5º do artigo 18 do Código de Defesa do Consumidor, determina que "no caso do fornecimento de produtos in natura, será responsável perante o consumidor o fornecedor imediato, exceto quando identificado claramente o seu produtor".

Os bens imóveis não são produtos, para os efeitos da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, apenas quando a posição do construtor puder ser assimilada ao fabricante de produtos industriais.(16) Tais bens integram o mercado de consumo sempre que constituírem objeto de uma atividade especulativa realizada por agentes econômicos de forma contínua e estável.

Da mesma maneira não assiste razão aos que sustentam que os serviços a que se refere o Código são apenas os vinculados ao fornecimento de produtos no mercado de consumo.(17) O Código de Defesa do Consumidor, de modo pioneiro, atentou para a extrema diversificação que o setor terciário possui na economia moderna.

O § 2º do artigo 3º adotou uma definição ampla de serviço que compreende toda prestação, fornecida por outrem, fora dos vínculos de subordinação e que não importam na venda de determinado bem. Estão aí abrangidos os diversos ramos e atividades do setor terciário que contribuem para a satisfação das necessidades individuais e coletivas dos consumidores. Os serviços prestados podem ser de natureza material, financeira ou intelectual. Os serviços mencionados pelo § 2º do artigo 3º incluem, entre outras, as atividades de construção, locação, reparo, limpeza, transporte, fornecimento de refeições e hospedagem, organização de viagens e cursos, distribuição de energia elétrica, gás, água encanada, serviços de correio e telefone.

Igualmente, não é correto o entendimento segundo o qual o Código de Defesa do Consumidor não se aplicaria às instituições financeiras, porque "não se concebe a possibilidade de ser usado o dinheiro ou o crédito pelo destinatário final, pois os valores monetários se destinam, pela sua própria natureza, à circulação".(18) Para o Código, consumidor não é apenas o adquirente, mas o mero usuário. A utilização do produto tem, aqui, sentido mais amplo que o da simples fruição, abrangendo a possibilidade de sua disposição. Desse modo, o consumidor que celebra um contrato de mútuo com a instituição bancária utiliza o produto recebido como meio de satisfazer as suas necessidades.

Está, assim, plenamente caracterizada a existência de relação jurídica de consumo entre as instituições financeiras, bancárias e administradoras de cartões de crédito com os consumidores. Nessa relação, as instituições financeiras e as administradoras de cartões de crédito ocupam a posição de fornecedor.

O artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor estabelece que "fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços". Para o Código, o mero exercício da atividade mercantil é condição suficiente para que se possa atribuir a um agente econômico a condição de fornecedor.

Não paira qualquer dúvida sobre ser mercantil a atividade desenvolvida pelos bancos e instituições financeiras. O Código Comercial de 1850, no artigo 4º, determinou que comerciante é todo aquele que faz da mercancia sua profissão habitual. O artigo 19, § 2º do Regulamento 737, considera mercancia as operações de câmbio, banco e corretagem, enquanto o § 4º inclui o seguro entre os atos de comércio. A enumeração é exemplificativa, podendo ser estendida a outros atos que com eles tenham certas características comuns.

Já o artigo 2º, § 2º, da Lei 6.404/76, afirma que a Companhia é mercantil e se rege pelas leis e usos do comércio. Ora, os bancos são obrigatoriamente organizados sob a forma de Sociedade Anônima, fato que lhes atribui, inapelavelmente, a condição de agente econômico que exerce atividade mercantil.

O cliente das instituições financeiras é, por outro lado, consumidor nos termos previstos pelo Código. O artigo 29 do Código de Defesa do Consumidor prevê que nos casos de práticas comerciais e em matéria de proteção contratual equiparam-se aos consumidores todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas.

Além do conceito de consumidor do artigo 2º, caput, o legislador optou pela adoção de três outros conceitos, por equiparação (artigo 2º, parágrafo único, artigos 17 e 29). A opção decorre da complexidade das matérias tratadas pelo Código de Defesa do Consumidor, entre as quais figuram a responsabilidade civil, a publicidade e as cláusulas contratuais abusivas. Para evitar a promulgação de leis específicas o legislador preferiu tratá-las, de forma sistemática, em um código único, razão pela qual foi necessário atentar para as especificidades de cada setor do mercado de consumo.(19) É por isso que o artigo 29, ampliando o alcance do artigo 2º, caput, esclarece que consumidor não é apenas aquele que adquire ou utiliza produtos ou serviços (artigo 2º), mas igualmente as pessoas "expostas às práticas" previstas no Código.

Diversamente do que sucede com o artigo 2º, o artigo 29 não requer individualização do consumidor, ou seja, é suficiente a mera exposição à prática, mesmo que não se possa individualizar o consumidor em vias de adquirir o produto ou serviço. Fundamental é tão-somente que as pessoas estejam expostas às práticas comerciais e contratuais previstas pelo Código.(20)

Tal constatação é de vital importância em matéria de controle preventivo e abstrato das cláusulas contratuais abusivas. O potencial de dano que encerram sugere a necessidade do seu controle mesmo antes da celebração dos contratos para o consumo.

5. MANDATO E REPRESENTAÇÃO

Após haver indicado que os serviços bancários, financeiros, securitários e creditícios constituem objeto das relações jurídicas de consumo, cabe agora analisar em que circunstâncias a cláusula mandato é abusiva nos contratos para o consumo. A análise de cláusula mandato reclama, todavia, para melhor compreensão da matéria em exame, algumas precisões conceituais.

O verbo representar e o substantivo representação possuem múltiplos significados. No direito e na política, nas artes e na religião, representar pode sugerir coisas diferentes como substituir, agir no lugar de ou em nome de alguém ou de alguma coisa; evocar simbolicamente alguém ou alguma coisa ou, ainda, personificar.

De modo geral, as diferentes acepções do vocábulo representar agrupam-se em:

1. significados que se referem à dimensão da ação. Neste sentido, representar significa agir segundo determinados cânones de comportamento;

2. significados que ressaltam a dimensão relativa à reprodução de prioridades ou peculiaridades existenciais. Aqui, representar é possuir certas características que espelham e evocam as dos sujeitos ou objetos representados.(21)

A representação política e a representação jurídica compreendem, ambas, tanto a necessidade de que sejam cumpridos certos procedimentos formais (dimensão da ação) quanto possuem certas características que evocam as dos sujeitos representados. O parlamentar não só deve agir nos limites do mandato que lhe foi conferido como também representa interesses específicos de determinado segmento ou grupo eleitoral. Da mesma forma, os institutos jurídicos da tutela e da curatela simultaneamente protegem os interesses dos incapazes, limitando o âmbito de atuação dos tutores e curadores, e evocam os sujeitos representados que não podem praticar por si os atos da vida civil.

Apesar disso, a representação política e a representação típica do direito privado revelam sensíveis diferenças. Enquanto a primeira tem origem na necessidade de se criarem mecanismos de controle do poder diante dos abusos do absolutismo monárquico e da impossibilidade da democracia direta nos Estados modernos, a segunda tem natureza privada, circunscrita à relação entre representantes e representado.(22)

A representação política, pelo menos em sua versão oitocentista, afirma a autonomia do representante, que deve agir no interesse de toda Nação e não apenas em benefício dos seus eleitores. Na representação do direito privado, o representante age em nome e no interesse exclusivo do representado. Não se pode deixar de reconhecer, contudo, que a crescente politização dos conflitos sociais e a formação de múltiplos centros de poder na sociedade - sindicatos, associações profissionais, movimentos sociais e organizações de consumidores - têm alterado a natureza da representação política, que cada vez mais passa a ser a representação de interesses particulares.(23) A representação política pressupõe a organização de canais de representação por intermédio dos partidos e a responsabilidade política dos representantes, apurável pela realização de eleições periódicas.

Mas o que verdadeiramente distingue a representação política é a proibição do mandato imperativo.(24) Na representação do direito privado, ao contrário, vigora o princípio da revogabilidade do mandato desde que o mandatário não aja segundo os interesses do mandante.

O instituto jurídico da representação, tal como foi consagrado pelo direito privado, é uma criação moderna. O seu desenvolvimento ocorreu em função da necessidade de se proteger os incapazes e de favorecer a realização das operações econômicas diante do aumento da complexidade social.

O direito romano não conheceu as situações em que alguém podia contrair direitos e obrigações em nome de outrem. O mandatário agia nomine proprio e só posteriormente, mediante uma segunda operação, transferia ao dominus o bem jurídico em causa.(25)

Foi somente na época moderna que se consolidou o princípio de que os efeitos do negócio jurídico concluído pelo representante incidirão sobre o representado. O Código Civil brasileiro, nesse sentido, mesmo sem promover a sistematização das normas sobre a representação, estabeleceu, no artigo 74, que os direitos são adquiridos por ato do próprio adquirente ou por intermédio de outrem. Assim procedendo, o que se fez foi admitir a prática, por via da representação, de todos os atos que o agente tem a aptidão para realizar, excetuando-se apenas aqueles que, por lei, não podem ser incumbidos a terceiros, como a facção testamentária.

A representação requer a presença de dois elementos:

1. Em primeiro lugar, é necessário que haja uma relação jurídica que autorize o representante a agir em nome do representado. De maneira geral, pode-se dizer que toda representação repousa, em última instância, na lei, já que ela pode ser concebida tão-somente dentro dos limites previstos pelo sistema jurídico. A teoria clássica do direito privado, no entanto, tem procurado distinguir, segundo sua causa próxima, entre representação legal e convencional.(26)

A representação legal tem lugar sempre que o poder provém diretamente da lei, como sucede com os incapazes, que não podem intervir pessoalmente nos negócios jurídicos. A representação convencional, por seu turno, que mais diretamente nos interessa, pressupõe a outorga de poderes ao representante, por meio dos quais ele fica autorizado a agir em nome do representado. É justamente o ato de outorga de poderes que confere os limites para a ação do representante, estabelecendo, em conseqüência, o âmbito de obrigações do representado.

2. O representante deve atuar em nome do representado, isto é, indicar a terceiros que não age para si, mas em nome de outra pessoa. O representante, não só age em nome do representado, como procede com a intenção de adquirir direitos e contrair obrigações para o representado.(27)

Em diversos sistemas jurídicos, como acontece no direito italiano, suíço e alemão, mandato e representação não se confundem. O contrato de mandato cria a relação jurídica entre mandante e mandatário, regulando o complexo de direitos e obrigações entre eles. Trata-se de relação interna, compreendendo os sujeitos que contratam. A representação exige a outorga de poderes para que o mandatário possa agir em nome do mandante. O poder de representação confere legitimidade ao representante para contratar em nome do representado, em cujo patrimônio repercutirão os atos por ele praticados. A atribuição desse poder ocorre por ato jurídico unilateral que se vincula ao contrato de mandato, mas que se distingue da relação entre mandante e mandatário.(28)

No direito brasileiro, porém, a representação é essencial ao mandato. O contrato de mandato cria um vínculo em que o mandatário deve agir em nome e no interesse do mandante.(29)

6. A ABUSIVIDADE DA CLÁUSULA MANDATO

O artigo 51, inciso VIII do Código de Defesa do Consumidor considera nulas as cláusulas que "imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor". Como se depreende do teor do dispositivo legal, a questão deve ser analisada sob o ângulo da relação jurídica fundamental que faculta ao fornecedor concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor. O problema, nesse sentido, não pode ser encarado à luz do direito cambiário, que não oferece os elementos necessários para a interpretação correta da norma em exame. O que está em causa é investigar as condições em que a inserção da cláusula mandato é abusiva nos contratos para o consumo.

Nos contratos bancários, financeiros e de cartões de crédito, é possível indicar ao menos quatro modalidades em que se manifesta a cláusula mandato:

a) A cláusula pela qual o mutuário constitui sua bastante procuradora a instituição financeira, a quem confere, de forma irrevogável, poderes para o fim de, caso necessário e a qualquer tempo, emitir promissória relativa à dívida principal e encargos, ou correspondente ao valor de qualquer das parcelas ou débitos em razão do contrato, podendo, inclusive, substabelecer no todo ou em parte;

b) A cláusula pela qual o correntista autoriza o banco a debitar em sua conta corrente todos os custos e despesas oriundos da emissão e utilização do cartão de crédito;

c) A cláusula pela qual o correntista autoriza o banco a direcionar os recursos disponíveis em sua conta corrente para aplicação no mercado financeiro, a exclusivo critério da instituição financeira, respeitados o valor do saldo médio mínimo exigido em conta e o valor mínimo de aplicação definido pelo banco. Muitas vezes esta cláusula é seguida de outra mediante a qual o correntista dispensa a instituição financeira da remessa dos comprovantes das operações realizadas com base nesta cláusula, os quais poderão ser substituídos por extratos periódicos;

d) A cláusula em que o titular de um cartão de crédito outorga à administradora mandato especial para representá-lo junto a toda e qualquer instituição financeira, incluindo nesse mandato os poderes para obter, em nome e por conta do outorgante, financiamento por valor não excedente ao saldo devedor apurado em conta, podendo a administradora para tanto negociar e ajustar prazos, acertar as condições e o custo do financiamento e demais encargos da dívida cobrados pelas instituições financeiras e assinar contratos de abertura de crédito ou instrumento de qualquer natureza necessários para o financiamento.

A questão referente à abusividade da cláusula mandato nos contratos para o consumo não comporta solução única. O problema consiste em saber se a cláusula mandato afeta ou não o equilíbrio das relações contratuais, fator básico para a caracterização da sua abusividade. A propósito, o núcleo do conceito de abusividade das cláusulas contratuais do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor está na existência de cláusulas contratuais que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada perante o fornecedor. A desvantagem exagerada resulta do desequilíbrio das posições contratuais, que pode ou não ser conseqüência direta da disparidade de poder econômico entre fornecedor e consumidor.

Pode suceder em certos casos que o consumidor - pessoa jurídica - não obstante desfrute de maior poder econômico que o seu fornecedor, tenha que se submeter à cláusulas contratuais por ele predispostas. Por esse motivo, o desequilíbrio das posições contratuais decorre do monopólio da produção das cláusulas contratuais por um dos contratantes. Por posição contratual deve-se entender o complexo de direitos e obrigações das partes resultante da celebração do contrato.

É a faculdade de predispor unilateralmente as cláusulas contratuais que enseja a possibilidade da ocorrência de abuso, sugerindo a necessidade do controle do conteúdo das cláusulas contratuais. O conceito de abusividade das cláusulas contratuais tem, portanto, âmbito próprio de atuação, não se confundindo com o conceito de abuso de direito, que pode ser extraído do artigo 160, I, do Código Civil.

Quando o Código procura suprimir dos contratos as cláusulas, o que se tem em vista não é evitar o abuso de direito, mas buscar impedir a estipulação de cláusulas contratuais que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada perante o fornecedor. A análise dos princípios estabelecidos pelo artigo 4º e pelo artigo 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor, autoriza a conclusão segundo a qual o equilíbrio das relações de consumo é princípio básico que o Código houve por bem c

 

Como citar o texto:

AMARAL JÚNIOR, Alberto do.A abusividade da Cláusula Mandato nos contratos financeiros, bancários e de cartões de crédito. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-do-consumidor/119/a-abusividade-clausula-mandato-contratos-financeiros-bancarios-cartoes-credito. Acesso em 6 abr. 2000.

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