Sumário: Introdução. 1. Do Poder Familiar. 2. A formação da dignidade humana. 3. O amor tem um preço? Considerações finais. Referências.

Introdução

Recentemente o Superior Tribunal de Justiça decidiu, no julgamento do Recurso Especial nº 757.411-MG, a impossibilidade de reparação por danos morais, configurada na ausência do pai no desenvolvimento do filho, negando-lhe a prestação afetiva.

O presente estudo pretende fazer uma análise acerca do referido acórdão e também do julgamento do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, que gerou aquele recurso, traçando um paralelo entre os fundamentos lançados pelos eminentes julgadores, bem como a relevância do amor para a formação e desenvolvimento da dignidade humana, fundamento do Estado brasileiro, para ao final procurar, senão responder, traçar algumas considerações à questão central: o amor tem um preço?

Antes porém, serão esboçadas algumas considerações a respeito de institutos específicos do direito de família, notadamente do poder familiar, tendo em vista sua utilização como argumento, para rechaçar o pleito indenizatório, ocupando largamente os votos que compõem o Recurso Especial.

1. O Poder Familiar

Pode-se afirmar que poucas foram as alterações introduzidas pelo Código Civil de 2002, no que tange ao instituto do poder familiar, antes denominado pátrio poder. A nova legislação codificada expressou nos artigos 1.630 e seguintes alguns traços fundamentais sobre seu conteúdo, exercício, suspensão e extinção.

Paulo Luiz Netto Lôbo, em estudo intitulado “Do poder familiar” afirma que houve uma diminuição em seu conteúdo arbitrário ao longo da história, desde o “patria potestas dos romanos antigos”, cuja extensão abrangia “o poder de vida ou morte” que “restringiu-se, como se vê em antigo aforismo, enunciando que o pátrio poder deve ser exercido com afeição e não com atrocidade”.

A evolução gradativa deu-se no sentido da transformação de um poder sobre os outros em autoridade natural com relação aos filhos, como pessoas dotadas de dignidade, no melhor interesse deles e da convivência familiar. Essa é sua atual natureza.

Assim, o poder familiar, sendo menos poder e mais dever, converteu-se em múnus, concebido como encargo legalmente atribuído a alguém, em virtude de certas circunstâncias, a que se não pode fugir. O poder familiar dos pais é ônus que a sociedade organizada a eles atribui, em virtude da circunstância da parentalidade, no interesse dos filhos. O exercício do múnus não é livre, mas necessário no interesse de outrem (LÔBO, 2003, p. 179-180)

Dentro deste contexto, o chamado “poder familiar” se caracteriza como poder-dever, ou seja, deve ser efetivado por quem exerce a parentalidade, no comando da família e também como direito de quem figura como seu destinatário, os filhos. Portanto, parece forçoso admitir que antes mesmo da definição como ‘poder’, se afigura como obrigação dos pais, sujeitar os filhos, enquanto menores ao poder familiar, conforme o estatuído no art. 1.630 do Código Civil.

Esta também a lição de Maria Berenice Dias, na obra “Manual de Direito das Famílias”, para quem, mesmo que “a expressão poder familiar tenha buscado atender à igualdade entre o homem e a mulher, não agradou”.

Mantém ênfase no poder, somente deslocando-o do pai para a família. Pecou gravemente ao se preocupar mais em retirar da expressão a palavra ‘pátrio’ do que incluir o seu real conteúdo, que, antes de um poder, representa obrigação dos pais, e não da família, como o nome sugere. O poder familiar, sendo menos um poder e mais um dever, converteu-se num múnus, e talvez fosse melhor falar em função familiar, em dever familiar (DIAS, 2005, p. 380).

Compete aos membros capazes da família (na tradicional família, o pai e a mãe), o exercício do ‘poder familiar’, dirigindo e comandando a estrutura coletiva, com a possibilidade de garantir a seus integrantes o acesso e a possibilidade de aperfeiçoamento e desenvolvimento, para alcançar a ampla e irrestrita dignidade.

Ou seja, o dever de “assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, como determina o art. 227 da Constituição Federal, antes uma obrigação, que um poder propriamente dito, como sugere a definição legal.

Ao agirem desta maneira, parece possível concluir, que os responsáveis pela família estão contribuindo para o desenvolvimento da pessoa e, em última instância, colaborando para edificar a dignidade humana, na criança ou adolescente que se encontra em estágio inicial de autoconhecimento e evolução para a fase adulta, resultando daí a importância para o próprio Estado, eis que se trata de princípio fundamental para a República.

2. A formação da dignidade humana

Sensível a este contexto, ao estudioso do direito de família, compete a tarefa de valoração da pessoa, acima e antes do fato, compreendendo as suas necessidades básicas e vitais, físicas e psicológicas, para a melhor aplicação da Justiça. De tal compreensão resulta a necessidade de se tentar conceber, por uma perspectiva valorativa, o direito para a implementação plena do princípio da dignidade da pessoa humana, que se atribui como finalidade principal do direito de família.

É certo que a família contemporânea não corresponde mais àquela de outrora, baseada exclusivamente no casamento, necessita da valorização do amor em seu seio, não apenas de uma avaliação, pois esta “consiste na apreensão, na aprovação ou na criação de valores”, correspondendo a “uma ação teórica, enquanto que valorizar é uma ação prática”, ou seja, avaliar “consiste em medir um valor” enquanto que valorizar “em conferir um valor a um objeto ou aumentar o valor que o objeto já possui”, assim, “a avaliação pressupõe um valor que é preciso reconhecer, enquanto se pode dizer que a valorização introduz um valor nas coisas” (ARNAUD, 1999, 819), portanto, há necessidade de se valorar o amor no seio do direito de família.

Não se olvide que para a implementação do princípio da dignidade humana, tal como expresso na Carta Magna, o sentimento do amor desempenha papel preponderante. A vida humana somente se aperfeiçoa e se desenvolve em ambiente propício, com a presença do amor, constituindo a família, o centro motor deste processo de integração social e de aprendizado, de onde se extrai sua relevância.

Este princípio básico e fundamental do direito brasileiro tem forte característica filosófica, pois todo e qualquer ser humano,

(...) sem distinção, é pessoa, ou seja, um ser espiritual, que é, ao mesmo tempo, fonte e imputação de todos os valores. Consciência e vivência de si próprio, todo ser humano se reproduz no outro como seu correspondente e reflexo de sua espiritualidade, razão porque desconsiderar uma pessoa significa em última análise, desconsiderar a si próprio. Por isso, é que a pessoa é um centro de imputação jurídica, porque o Direito existe em função dela e para propiciar seu desenvolvimento (SILVA, 1998, p. 90).

A atenção ao outro, no âmbito de sua dignidade, é de muita relevância para as relações de família e também para a experiência social da pessoa, do caráter comunitário intrínseco ao ser humano. Portanto, compete ao agente do direito “sistematizar um conjunto de normas jurídicas” que “nunca poderá resultar numa sistemática fechada, com pretensões a resolver, por mecanismos meramente lógicos, todos os problemas que lhe são postos”, podendo “ser visto como um discurso persuasivo, um discurso de conversão, dotado de uma força evocadora, que leva o destinatário da norma a ver verdade” no que estava obscuro, dessa forma, “a adesão do destinatário do discurso normativo nunca é simples submissão, mas decisão, comprometimento e participação” surgindo o direito,

(...) pois, como uma lógica de argumentação, uma lógica de juízos de valor, onde o comportamento preferível, desejável, toma contornos relevantes.

Portanto, o direito, hoje, deve ser visto, também, como um direito que tem uma função promocional, que se interessa por comportamentos tidos como desejáveis e, por isso, não se circunscreve a proibir, obrigar ou permitir, mas almeja estimular comportamentos, por meio de medidas diretas ou indiretas  (POZZOLI, 2001, p. 167).

Para a consumação do direito e da justiça, como reflexo no bem de todos significa, “fundamentalmente, uma atitude subjetiva de respeito à dignidade de todos os homens, isso pelo fato de que nas relações com outros seres humanos pode-se optar em ter atitude de ‘dominação’ ou de ‘respeito’, este é característico da justiça, que para ser eficaz, “requer a libertação dos impulsos exclusivamente egoísticos.”

É esse um aspecto fundamental do problema. A justiça não é o sentimento que cada um tem de seu próprio bem-estar ou felicidade, como pretendem alguns. Mas, pelo contrário, é o reconhecimento de que cada um deve respeitar o bem e a dignidade dos outros. Como disse Dabin, esse reconhecimento implica sem dúvida uma metafísica: a do valor absoluto da pessoa humana (MONTORO, 1997, p. 126-127).

Por outro lado, a pessoa humana somente se desenvolve e se torna independente a partir do momento em que se lhe permite viver com amor, sendo-lhe suprimidos os impulsos agressivos, aos quais Freud designou “impulsos de morte”. Indubitavelmente é a família, o desenvolvimento da parentalidade a primeira oportunidade para se aprender o valor e a importância do amor, lições que serão retratadas ao longo da vida humana.

Neste sentido conclui Enrique Dussel, para quem o “homem perfeito será aquele que por sua bondade, sua plenitude antropológica, pode abrir-se ao Outro gratuitamente como outro, não por motivos fundados em seu próprio projeto de Totalidade,” entretanto movido “por um amor que ama primeiro alterativamente: o amor-de-justiça” (DUSSEL, 1995, p. 43).

É na família, como esteio deste despertar, onde o encontro consigo e com o outro ocorre primeiramente, que se pode plantar as esperanças para implementação de melhor aplicação do direito e da justiça. Daí a relevância desse primeiro grupo coletivo na vida de toda pessoa. Na família o encontro social surge mesclado, desde os primeiros dias de vida, pelo sentimento do amor. O combustível de ligação e união que ampara, protege e mantém agrupados os membros da instituição familiar e auxilia no aperfeiçoamento humano e construção da gênese da dignidade individual e do outro, por isso seu valor, inclusive para os agentes do direito que estudam as relações de família.

3. O amor tem um preço?

Muitos casos existem e já começam a chegar nas superiores instâncias, de filhos abandonados pelos pais, filhos que não se sujeitaram ao poder familiar, por omissão daqueles a quem a legislação atribuiu o ‘poder familiar’, ou melhor a obrigação, o múnus de zelar pela família e pelos filhos menores.

Estes, os filhos que não receberam dos pais o afeto a que tinham direito, para o seu completo desenvolvimento e sua constituição como pessoa com dignidade, postulam agora, uma compensação pecuniária pela carência que suportaram ao longo de sua vida.

A esse respeito o Superior Tribunal de Justiça teve a oportunidade de se manifestar no julgamento do Recurso Especial nº 757.411-MG, afastando, por maioria de votos o direito do filho em obter a reparação, por danos morais, do pai pelo abandono sofrido.

O caso reveste-se de grande interesse, primeiro pelo seu pioneirismo, segundo porque foi rejeitado na primeira instância, com a reforma da sentença em recurso de apelação, pelo Tribunal de Alçada de Minas Gerais, à unanimidade dos votos, culminando com a reforma pelo Corte Especial.

Merece destaque o voto proferido pelo Juiz Relator e acompanhado por todos os julgadores do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, em especial quando afirma:

A relação paterno-filial em conjugação com a responsabilidade possui fundamento naturalmente jurídico, mas essencialmente justo, de se buscar compensação indenizatória em face de danos que pais possam causar a seus filhos, por força de uma conduta imprópria, especialmente quando a eles é negada a convivência paterna ou materna concretas, acarretando a violação de direitos próprios da personalidade humana, magoando seus mais sublimes valores e garantias, como a honra, o nome, a dignidade, a moral, a reputação social, o que, por si só, é profundamente grave.

Esclareço, desde já, que a responsabilidade em comento deve cingir-se à civil e, sob este aspecto, deve decorrer dos laços familiares que matizam a relação paterno-filial, levando-se em consideração os conceitos da urgência da reparação do dano, da re-harmonização patrimonial da vítima, do interesse jurídico desta, sempre prevalente, mesmo à face de circunstâncias danosas oriundas de atos dos juridicamente inimputáveis.

No seio da família da contemporaneidade desenvolveu-se uma relação que se encontra deslocada para a afetividade. Nas concepções mais recentes de família, os pais de família têm certos deveres que independem do seu arbítrio, porque agora quem os determina é o Estado.

Assim, a família não deve mais ser entendida como uma relação de poder, ou de dominação, mas como uma relação afetiva, o que significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção.

Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não somente do sangue (Apelação Cível nº 408.550-5 – MG).

Prosseguindo no julgamento, o Juiz Relator ressalta a relevância que o afeto representa para a formação da pessoa no contexto familiar.

No estágio em que se encontram as relações familiares e o desenvolvimento científico, tende-se a encontrar a harmonização entre o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, até como necessidade de concretização do direito à saúde e prevenção de doenças, e o direito à relação de parentesco, fundado no princípio jurídico da afetividade.

O princípio da efetividade (sic) especializa, no campo das relações familiares, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal), que preside todas as relações jurídicas e submete o ordenamento jurídico nacional.

No estágio atual, o equilíbrio do privado e do público pauta-se exatamente na garantia do pleno desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas que integram a comunidade familiar.

No que respeita à dignidade da pessoa da criança, o artigo 227 da Constituição expressa essa concepção, ao estabelecer que é dever da família assegurar-lhe “com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”, além de colocá-la “à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família.

Assim, depreende-se que a responsabilidade não se pauta tão-somente no dever alimentar, mas se insere no dever de possibilitar o desenvolvimento humano dos filhos, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana (Apelação Cível nº 408.550-5 – MG).

Finalmente conclui o relator pela existência do dano “em relação à sua dignidade” e a “conduta ilícita praticada pelo réu, ao deixar de cumprir seu dever familiar de convívio e educação, a fim de, através da afetividade, formar laço paternal com seu filho, e o nexo causal entre ambos”, fixando a indenização no valor equivalente a duzentos salários mínimos (Apelação Cível nº 408.550-5 – MG).

Houve então, Recurso Especial, contra o acórdão do Tribunal de Alçada de Minas Gerais para o Superior Tribunal de Justiça, recurso conhecido e provido pela Quarta Turma, afastando a obrigação de indenizar, por maioria de votos, com a seguinte ementa:

RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE.

1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária.

2. Recurso especial conhecido e provido (REsp. nº 757.411-MG).

Em elaborado voto, o Ministro Fernando Gonçalves, relator do processo, conheceu do Recurso Especial e lhe negou provimento, afastando a possibilidade de indenização nos casos de abandono moral, fundamentando, inicialmente, o seu entendimento nos termos seguintes:

No caso de abandono ou do descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e educação dos filhos, porém, a legislação prevê como punição a perda do poder familiar, antigo pátrio-poder, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 24, quanto no Código Civil, art. 1.638, inciso II. Assim, o ordenamento jurídico, com a determinação da perda do poder familiar, a mais grave pena civil a ser imputada a um pai, já se encarrega da função punitiva e, principalmente, dissuasória, mostrando eficientemente aos indivíduos que o Direito e a sociedade não se compadecem com a conduta do abandono, com o que cai por terra a justificativa mais pungente dos que defendem a indenização pelo abandono moral (REsp. nº 757.411-MG).

Acompanhando o Ministro Relator, o Ministro Aldir Passarinho Junior ainda pontificou em seu voto a respeito do pátrio-poder:

Na hipótese de perda do pátrio poder, a tutela é dada em substituição, nos termos do art. 406, I, também do Código Civil anterior. Parece-me, pois, que não é hipótese de ato ilícito. Não é dessa forma que se enfrentaria tal situação. A legislação de família prevê institutos específicos, inclusive em relação às necessidades do filho na lei de alimentos. Aqui, ressalto, foram prestados alimentos (REsp. nº 757.411-MG).

Estes pontos dos votos dos eminentes Ministros merecem uma análise cuidadosa. Se o poder familiar, antigo pátrio-poder, se reveste de encargo determinado por lei aos pais em relação aos filhos, se a moderna doutrina, representada aqui pela posição de Maria Berenice Dias, aduz a ausência de sentido e aplicabilidade na legislação pretérita, apesar de ser repetida no Código Civil recentemente, a supressão ou mesmo a ‘punição’ do pai omisso com seus filhos, representa sim a coroação de uma conduta ilícita e prejudicial aos interesses do menor.

Dito de outra forma, este argumento premia a omissão e o pai relapso, pois lhe retira um dever, uma obrigação, que este ascendente não fez questão nenhuma de exercer, tanto que sofreu a demanda pelo abandono que deu causa, portanto, não parece o melhor argumento para prestigiar a nova família e refutar o valor que o afeto representa para o desenvolvimento da pessoa.

Em seu voto, prossegue o Ministro Relator:

Ainda outro entendimento deve ser enfrentado. O pai, após condenado a indenizar o filho por não lhe ter atendido às necessidades de afeto, encontrará ambiente para reconstruir o relacionamento ou, ao contrário, se verá definitivamente afastado daquele pela barreira erguida durante o processo litigioso?

Quem sabe admitindo a indenização por abandono moral não estaremos enterrando em definitivo a possibilidade de um pai, seja no presente, seja perto da velhice, buscar o amparo do amor dos filhos, valendo transcrever trecho do conto “Para o aniversário de um pai muito ausente”, a título de reflexão (Colocando o “I” no pingo... E Outras Idéias Jurídicas e Sociais, Jayme Vita Roso, RG Editores, 2005): (...).

Por certo um litígio entre as partes reduziria drasticamente a esperança do filho de se ver acolhido, ainda que tardiamente, pelo amor paterno. O deferimento do pedido, não atenderia, ainda, o objetivo de reparação financeira, porquanto o amparo nesse sentido já é providenciado com a pensão alimentícia, nem mesmo alcançaria efeito punitivo e dissuasório, porquanto já obtidos com outros meios previstos na legislação civil, conforme acima esclarecido.

Desta feita, como escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou a manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada.

Nesse contexto, inexistindo a possibilidade de reparação a que alude o art. 159 do Código Civil de 1916, não há como reconhecer o abandono afetivo como dano passível de indenização (REsp. nº 757.411-MG). (grifo nosso)

A partir de tais argumentos, persiste para quem acredita no princípio da afetividade, o seguinte questionamento: o litígio já não foi estabelecido? A reparação do dano, considerado como a ausência de afeto, não seria suficiente para possibilitar a (re)construção da vida? Finalmente, como não cabe ao judiciário obrigar alguém a amar, não cabe nenhuma compensação a quem não foi amado?

Diante destas indagações, parece até aceitável argumentar sobre a impossibilidade do judiciário arbitrar qualquer reparação em pleitos indenizatórios por morte, pois escapa ao judiciário a possibilidade de ressuscitar a pessoa falecida, o que não procede.

Não sugere a melhor saída, refutar o direito à compensação pecuniária, à reparação, pela impossibilidade em se obrigar ao cumprimento da obrigação na espécie: amar. Negar, nos dias atuais, o valor e a relevância ao afeto, consiste negar sua necessidade para a implementação da dignidade humana, ou seja, negar o princípio fundamental do Estado brasileiro.

Merece ainda a transcrição completa o voto vencido, da lavra do Ministro Barros Monteiro, que dissentindo do voto do Relator anotou:

O Tribunal de Alçada de Minas Gerais condenou o réu a pagar 44 mil reais por entender configurado nos autos o dano sofrido pelo autor em sua dignidade, bem como por reconhecer a conduta ilícita do genitor ao deixar de cumprir seu dever familiar de convívio e afeto com o filho, deixando assim de preservar os laços da paternidade. Esses fatos são incontroversos. Penso que daí decorre uma conduta ilícita da parte do genitor que, ao lado do dever de assistência material, tem o dever de dar assistência moral ao filho, de conviver com ele, de acompanhá-lo e de dar-lhe o necessário afeto.

Como se sabe, na norma do art. 159 do Código Civil de 1916, está subentendido o prejuízo de cunho moral, que agora está explícito no Código novo. Leio o art. 186:

 

Do voto vencido se extrai importante lição: a possibilidade de indenização pelo abandono afetivo, pela responsabilidade do pai em não conceder o necessário amor aos filhos, durante sua vida, para a formação de sua dignidade, como pessoa humana. Não se trata, apenas em quantificar, materialmente, o valor do amor, muito pelo contrário, a reparação tem o condão de valorar este sentimento tão relevante para a própria constituição da pessoa, como restou demonstrado.

O argumento sobre a impossibilidade de se “querer quantificar o preço do amor” não pode servir de amparo à recusa da reparação, pois a situação atual do direito, com a pessoa estando no centro das discussões, torna insuportável tal fundamento. Neste ponto, possível fazer paralelo sobre as primeiras controvérsias a respeito do dano moral, sua possibilidade na seara do direito, cujo principal argumento contrário, cingia-se na impossibilidade de se valorar a dor moral da pessoa[1]. Nota-se assim, o retrocesso para utilização de base já superada pelo ordenamento jurídico.

Neste prisma, merece a transcrição, o voto do Ministro César Asfor Rocha, em sentido contrário ao aqui narrado, refutando as linhas anteriores nos termos seguintes:

(...) é certo que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais pontificou que o recorrido teria sofrido em virtude do abandono paterno; são fatos que não podem ser desconstituídos. E é justamente com base nesses fatos que aprecio o que está ora posto. Penso que o Direito de Família tem princípios próprios que não podem receber influências de outros princípios que são atinentes exclusivamente ou – no mínimo – mais fortemente – a outras ramificações do Direito. Esses princípios do Direito de Família não permitem que as relações familiares, sobretudo aquelas atinentes a pai e filho, mesmo aquelas referentes a patrimônio, a bens e responsabilidades materiais, a ressarcimento, a tudo quanto disser respeito a pecúnia, sejam disciplinadas pelos princípios próprios do Direito das Obrigações.

Destarte, tudo quanto disser respeito às relações patrimoniais e aos efeitos patrimoniais das relações existentes entre parentes e entre os cônjuges só podem ser analisadas e apreciadas à luz do que está posto no próprio Direito de Família. Essa compreensão decorre da importância que tem a família, que é alçada à elevada proteção constitucional como nenhuma outra entidade vem a receber, dada a importância que tem a família na formação do próprio Estado. Os seus valores são e devem receber proteção muito além da que o Direito oferece a qualquer bem material. Por isso é que, por mais sofrida que tenha sido a dor suportada pelo filho, por mais reprovável que possa ser o abandono praticado pelo pai – o que, diga-se de passagem, o caso não configura – a repercussão que o pai possa vir a sofrer, na área do Direito Civil, no campo material, há de ser unicamente referente a alimentos; e, no campo extrapatrimonial, a destituição do pátrio poder, no máximo isso. Com a devida vênia, não posso, até repudio essa tentativa, querer quantificar o preço do amor. Ao ser permitido isso, com o devido respeito, iremos estabelecer gradações para cada gesto que pudesse importar em desamor: se abandono por uma semana, o valor da indenização seria “x”; se abandono por um mês, o valor da indenização seria “y”, e assim por diante. Com esses fundamentos, e acostando-me ao que foi posto pelo eminente Ministro Fernando Gonçalves, Relator deste feito, e pelos Srs. Ministros Aldir Passarinho Junior e Jorge Scartezzini, peço vênia ao eminente Sr. Ministro Barros Monteiro para conhecer do recurso especial e dar-lhe provimento (Resp. nº 757.411-MG). (grifo nosso)

Como se constata do voto transcrito, seu prolator repudia a ingerência de outros ramos do direito no campo das relações próprias ao direito de família, nega-se com este posicionamento, um paralelo com toda a evolução acerca dos direitos das pessoas que se uniram sob a forma de união estável, cujo fundamento primeiro se pautou na impossibilidade do enriquecimento ilícito, quando não havia regramento expresso no ordenamento jurídico.

Por outro lado, e uma vez mais, não se trata simplesmente de “querer quantificar o preço do amor”, como não se pretende quantificar o preço da vida, o preço da dor. O direito não pode ficar alheio ao princípio da afetividade e sua relevância tanto para a família, como para a própria pessoa. A questão deve ser enfrentada sob o ponto de vista da importância que o amor representa para a gênese da pessoa, enfim, para a elaboração do princípio da dignidade humana[2]. À mingua de outras alternativas, para a omissão do amor, a responsabilização em perdas e danos, deve por enquanto, ser suficiente para acalentar o coração humano, não sendo possível ao agente do direito, simplesmente se omitir, sob o pretexto de que o amor não tem preço, até mesmo porque, a vida, a dor, a honra, também não têm, à princípio, preço estabelecido.

Desta forma, nas quedas patrimoniais, tão comuns no direito, ao amor deve ser aberto debate sobre o seu valor. Não um singelo valor pecuniário, simplesmente revestido no aspecto financeiro, em moeda corrente, como mero capital ou elemento de troca, mas num valor inerente à formação da pessoa humana, implícito na sua dignidade para sua formação pessoal, como o valor da vida, o valor da liberdade, o valor da intimidade.

Sob o manto do princípio da dignidade humana, alguns tribunais começam a reconhecer o valor do afeto, conforme se pôde observar do acórdão unânime do Tribunal de Alçada de Minas Gerais e como se depreende da decisão do Tribunal de Justiça do Paraná, prestigiando a filiação socioafetiva, com o seguinte aresto:

Negatória de paternidade. Adoção à brasileira. Confronto entre a verdade biológica e a socioafetiva. Tutela da dignidade da pessoa humana. Procedência. Decisão reformada. 1. A ação negatória de paternidade é imprescritível, na esteira do entendimento consagrado na Súmula 149/STF, já que a demanda versa sobre o estado da pessoa, que é emanação do direito da personalidade. 2. No confronto entre a verdade biológica, atestada em exame de DNA, e a verdade socioafetiva, decorrente da denominada ‘adoção à brasileira’ (isto é, da situação de um casal ter registrado, com outro nome, menor, como se deles filho fosse) e que perdura por quase quarenta anos, há de prevalecer a solução que melhor tutele a dignidade da pessoa humana. 3. A paternidade socioafetiva, estando baseada na tendência de personificação do direito civil, vê a família como instrumento da realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes à irregular ‘adoção à brasileira’, não tutelaria a dignidade humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-iam as artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado. (Tribunal de Justiça do Paraná, Apelação Cível nº 108.417-9, 2ª Câm. Civ., Rel. Des. Accácio Cambi, v.u., j. 12.12.2001)

Já se anotou, no presente estudo, que não será possível efetivar o princípio da dignidade humana, senão concebendo o ser humano dentro dos critérios e limites estabelecidos pelo amor, pelo impulso de vida próprio das relações humanas, dentro do princípio da afetividade nas relações de família, como bem observou Paulo Luiz Netto Lôbo:

(...) outra categoria que se consagrou no direito brasileiro de família foi o da afetividade, entendida como liame específico que une duas pessoas em razão do parentesco ou de outra fonte constitutiva da relação de família. A afetividade familiar é, pois, distinta do vínculo de natureza obrigacional, ou patrimonial, ou societário. Na relação familiar não há fim econômico, cujas dimensões são sempre derivadas (por exemplo, dever de alimentos, ou regime matrimonial de bens), nem seus integrantes são sócios ou associados. Por outro lado, a afetividade, sob o ponto de vista jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, este de ocorrência real necessária. O direito, todavia, converteu a afetividade em princípio jurídico, que tem força normativa, impondo dever e obrigação aos membros da família, ainda que na realidade existencial entre eles tenha desaparecido o afeto (Lôbo, 2006, p. 339).

Há agora, a necessidade de enfrentamento da questão sob a perspectiva daquele contra quem foi descumprido o princípio jurídico da afetividade, não se tratando unicamente de se atribuir preço ao amor.

Considerações Finais

Sem dúvida, resta muito a dizer sobre a afetividade, sobre o amor. As alterações pelas quais passou a família contemporânea e que ainda atravessa, deixam o quadro ainda mais complexo e delicado, dada à necessidade de ajustes e acertos sociais.

Entretanto, não se pode escudar nas transformações sociais para se negar direitos e, menos ainda, argumentar sobre a impossibilidade de se atribuir preço ao amor, desvirtuando o foco da discussão, por simples receio de vulgarizar o sentimento.

Nas relações de família, carregadas de valores e objetivos, cujo principal se resume na conservação da vida e na sua realização, dentro do princípio basilar para a formação da pessoa: o da dignidade com amor da pessoa humana. Não se pode simplesmente valorar o amor, como moeda de troca, banalizando sua importância, entretanto, este argumento também não pode ser usado para se escusar na atribuição efetiva de seu valor. Assim como a vida humana não tem preço, o amor também não é passível de mensuração, porém, ambos são valores fundamentais para a pessoa humana.

Neste aspecto, o estudioso do direito deve ficar atento à discussão da afetividade inerente à família atual. E a ponderação criteriosa desse valor, intrínseco à condição humana, deve ser sempre considerada nas questões específicas do direito de família, daí a necessidade de se ponderar sobre estas questões, de se abrir o debate para ciências outras, como a sociologia e a psicologia para auxiliar na melhor compreensão deste fenômeno.

Analisar a questão apenas do ponto de vista dos princípios próprios do direito de família, não parece ser a melhor solução, como também não parece ser o melhor entendimento, coroar a conduta omissa, com a destituição do poder familiar. A condenação pelo desamor, especificamente, quando causou prejuízo manifesto à dignidade da pessoa, através da aplicação dos princípios da responsabilidade civil, se mostra como melhor alternativa para o aperfeiçoamento dos princípios do direito de família, com o compromisso e respeito à Justiça.

Referências

ANGELUCI, Cleber Affonso. O valor do afeto para a dignidade humana nas relações de família. Revista Jurídica, Porto Alegre, RS: Editora Notadez, nº 331, p. 75-85, Mai. 2005.

ARNAUD, André-Jean [et. al.]. Diccionario enciclopédico de teoria e de sociología do direito. [Tradução de: Patrice Charles, F. X. Willaume]. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

DUSSEL, Enrique. Filosofia da Libertação: crítica à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus, 1995.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Do poder familiar. In: DIAS, Maria Berenice (coord.). Direito de família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 177-189.

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Notas:

 

 

[1] Emblemático o posicionamento de Ives Gandra da Silva Martins, citado por Clayton Reis, retrato de “uma postura negativista predominante em alguns Doutrinadores ao acentuar: ‘... de início, a tese de que a dor tem preço causa-me espécie. A teoria do pretium doloris soa-me mais como uma teoria de vendeta siciliana ou aplicação quase 40 séculos depois, da lei de talião do que forma moderna de se lavar a honra’” (apud REIS, 2000, p. 123)

[2] A propósito nosso estudo “O valor do afeto para a dignidade humana nas relações de família” publicado na Revista Jurídica nº 331, Maio/2005, p. 75-85.

 

Como citar o texto:

ANGELUCI, Cleber Affonso..Amor tem preço?. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 178. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil-familia-e-sucessoes/1255/amor-tem-preco. Acesso em 18 mai. 2006.

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