O Supremo Tribunal Federal, órgão máximo da jurisdição pátria, à quem a Magna Carta outorgou a sua defesa, recentemente, proferiu decisão que causou verdadeiro fervor, tanto na sociedade em geral como na comunidade jurídica.

O egrégio tribunal declarou, ao julgar um Hábeas Corpus, a inconstitucionalidade da vedação quanto a Progressão de Regime nos casos de Crimes Hediondos, ou, pela natureza do ato, a inconstitucionalidade, naquele caso, de dita vedação.

Preliminarmente, mister se faz ponderar alguns aspectos técnicos acerca do pronunciamento do STF. Trata-se, com efeito, de decisão proferida in casu, significa dizer, o sistema jurídico pátrio admite tanto o controle difuso quanto o concentrado de constitucionalidade, sendo aquele o permissivo ao afastamento, por qualquer órgão jurisdicional – desde de que competente para julgar a lide, e não a matéria constitucional especificamente – de norma lesiva as premissas constitucionais. Tem-se aqui o chamado Controle de Constitucionalidade pela via de Exceção, cuja sentença afeta, em princípio, tão somente aqueles que se encontrem vinculados naquela relação processual, operando-se efeitos inter partes.

Posto isso, a natureza jurídica do ato declina a uma infirmação casuística da vedação mencionada, ou seja, por ela, entende-se que, naquele caso, a progressão do regime se põe cabível. Porquanto, em verdade, o mérito da sentença refere-se a individualização da pena, e não ao diploma legal onde repousa o instituto da vedação.

Por outro lado, o teor do Acórdão é dissidente a natureza narrada, na medida em que, incidentalmente, o STF declarou inconstitucional o próprio dispositivo legal que estabelece ser defeso a progressão de regime em casos desta natureza.

Neste particular, embora não se trate de entendimento sumulado (sendo fruto, até então, de acórdãos), não se trata de manifestação única, havendo outros precedentes no mesmo sentido, especialmente em Hábeas Corpus. Porquanto, ainda que tecnicamente não há que se falar em efeito vinculante, as repercussões práticas o serão inexoravelmente.

Outro aspecto que merece ressalva é que, de maneira uniforme, os pronunciamentos do STF cingem-se a declarar a inconstitucionalidade do dispositivo legal, subsistindo ao órgão competente (juízo de execução penal), deliberar sobre os requisitos, objetivos e subjetivos, concernentes a concessão da progressão de regime no caso em particular. Com isso, o que se observa é justamente a inversão da natureza do Controle de Constitucionalidade na Via de Exceção, posto que, embora se trate de ato apto à produção de efeitos inter partes, declara a entendimento uníssono do órgão máximo da jurisdição pátria, ao qual compete, inclusive, julgar as Ações propostas através do Controle Concentrado de Constitucionalidade (Via de Ação).

Vistos os aspectos preliminares, resta inequívoco que, a decisão exarada pelo Supremo Tribunal Federal, embora tecnicamente limitada – quanto aos efeitos – desencadeia, sob a ótica prática, a Inconstitucionalidade erga ominis da vedação à progressão de regime nos crimes hediondos.

Por obvio, em nome da autonomia das instancias jurisdicionais e, sobremaneira, á vista de preservar, dentre outros princípios estigmáticos da atividade judiciária contemporânea, o duplo grau de jurisdição, os juízos “inferiores” ao STF não possuem qualquer obrigatoriedade no sentido de subordinarem-se ao entendimento daquele, ressalvado, evidentemente, o juízo de execução adstrito ao caso em que houver a pronuncia referida.

Noutra face, ainda que tal submissão não encontre respaldo técnico-jurídico, e seja, ao contrário, rechaçado por ele, inegável que, ao mesmo tempo, cria-se uma incongruência sistêmica, já que, ao manifestar sua posição sobre a matéria (e, especialmente, diante do pacifismo e unanimidade), o Supremo Tribunal Federal, por via transversa, decreta a postura jurisdicional em relação ao tema.

Diante deste diapasão, nas linhas precedentes, vê-se nitidamente que as colocações circundam os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal, cabendo, então, abordar-lhe o mérito.

Neste particular, incontroverso somente o caráter extremamente discutível da matéria, em torno da qual emergem inúmeros posicionamentos, das mais diversas classes, dos mais diversos grupos. Não cabe, neste momento, ou mais precisamente em uma leitura jurídica, proceder juízos de valor a respeito do tema, posto que isso é atribuição do Poder Legislativo, competente para elaborar leis e nelas mensurar o elemento axiológico. Por oportuno, vale registrar que, o diploma legal em comento é um dos raros exemplos de iniciativa popular, fruto de dois crimes que, seja por exploração da mídia, seja por razões antropológicas, causou extrema indignação social, daí porque alguns discutirem a legitimidade do ato efetuado pelo órgão citado.

Assim, o mérito que se pretende debater não é o juízo axiológico que funda a Lei, mas sim sua composição dentro do sistema jurídico. Convém aqui exortar que, o tema deve ser visto sob uma perspectiva mais ampla, abrangente, sob a ótica do sistema jurídico, e não meramente em face do arcabouço legal, que não raramente preconiza verdadeiras “aberrações jurídicas”. E isso não se confunde com juízo de valor, que é uma atividade fundada exclusivamente nas estruturas sociais (valores, costumes, crenças, etnias, etc), enquanto que a leitura jurídica dos fatos é uma adequação da realidade aos princípios que regem a cultura jurídica.

Posto isso, primeiramente, deve-se socorrer, dentro de uma estrutura de hierarquia normativa, aquela que representa o ápice do sistema, qual seja, a Constituição Federal. No que respeita a matéria em exame, a Carta Magna dispõe em seu artigo 5º, XLIII, que, “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.

A vista da disposição transcrita, desde já se verifica que a constituição defere tratamento “especial” a determinadas condutas, sendo que algumas ela própria arrola (prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo – crimes hediondos), deixando ao arbítrio do legislador infraconstitucional estabelecer outras que, por semelhança, recebam o mesmo tratamento (crimes assemelhados a hediondos).

Da mesma forma, a constituição, expressamente, prevê que, tais condutas serão inafiançáveis, assim como insuscetíveis de graça ou anistia. Já a Lei 8.072/90, que regulamenta a matéria, estabelece, além das restrições exortadas pela Constituição, a vedação quanto ao indulto e a liberdade provisória, além da impor caracteres especiais em relação ao livramento Condicional, a apelação em liberdade e a prisão temporária, além, é claro, da aclamada vedação à Progressão de Regime.

É, portanto, destarte que a lei ampliou o rol de restrições em relação aquilo que a constituição prevê. Tal fato já foi objeto de discussão, limitando-se, contudo, ao indulto, deixando à margem os demais institutos, o que leva a concluir por seu caráter incontroverso.

Diante disso, se a análise é sobre a Inconstitucionalidade da vedação referida, porque ela seria sustentada em razão de uma amplitude infraconstitucional se outros elementos o foram e sobre tais nada se questionou (exceto, como dito, em relação ao indulto)? A natureza jurídica da Pena serviria de fundamento para tal inconstitucionalidade, denunciando lesão a princípios como o da individualização?

Tais questões, assim como quaisquer outras presentes no âmbito jurídico não tem respostas, mas podem receber tratamentos, orientados por princípios, óticas, perspectivas várias que determinam uma ou outra postura.

Em primeiro lugar, imprescindível que se adote uma forma de interpretação da própria constituição, pois, se vislumbrada a partir de uma percepção restritiva e literal, de plano a discussão caí por terra, na medida em que a progressão imposta pela lei não foi expressamente declarada pela Constituição. Contudo, por este raciocínio, também sucumbem todas aquelas restrições sobre as quais é omisso o texto constitucional, mas inovados pela lei específica. Ademais, por corolário, admitir este raciocínio implica na ruptura dos mecanismos de adequação constitucional, além de afetar o princípio da especialidade, segundo o qual, não cabe a uma estrutura sui generis como a Constituição, tratar em todos os seus pormenores os fatos, lhe cabendo delinear parâmetros genéricos, que servirão de norte para as regulamentações infraconstitucionais, as quais incumbe literalmente regulamentar a matéria constitucional, dando-lhe contornos diante da realidade fática.

Posto isso, a razoabilidade aconselha a adoção de uma interpretação sistemática e extensiva, em tons supletivos e limitadores uma da outra, sob pena de tornar a Carta Magna um conjunto obsoleto de normas petrificadas, porquanto fadadas a inefetividade.

Ao optar por uma interpretação extensiva, deve-se atentar para não tornar vácuos propositais subterfúgios para infligir juízos alheios a lógica extraída do sistema, por isso mister se faz a observância supletiva da interpretação sistemática, assim, poder-se-á eventualmente ampliar o alcance da norma, sem que isso destoe do propósito da ordem jurídica.

Partindo deste raciocínio, conclui-se que, o rol de restrições elencadas pela constituição não assume feições taxativas, mas sim exemplificativas, assim como ocorre com as próprias condutas, na medida em que, ao mesmo tempo em que a Constituição discrimina algumas condutas, dá margem para que outras sejam equiparadas, sofrendo, por semelhança, os mesmos efeitos/restrições.

Ademais, dúvida alguma existe quanto ao tratamento peculiar que pretende a magna carta dispensar a tais condutas. Diante disso, não existe, na Constituição, obstáculo expresso quanto a imposição do Regime integralmente fechado ao cumprimento de pena por crimes hediondos. Mesmo porque, a Constituição ao limitar as espécies de pena, não impõe óbice a este aspecto, assim, por óbvio, o que se discute é forma de cumprimento de pena, e não espécie de pena, mas por razões lógicas, é neste contexto que a matéria é regulada pela carta normativa.

Da mesma forma, quando dispõe a Constituição sobre a individualização da pena, outorga a suscetibilidade de interpretação analógica, posto que parte de um pressuposto genérico ao qual comina deferência para que o legislador suplemente os quesitos, não impondo, ao mesmo tempo, que a seu pretexto, se petrifique a salva guarda em relação aos regimes de cumprimento da pena privativa de liberdade. Neste mesmo sentido deve-se destacar que, segundo a preceituação constitucional, “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado” (art. 5º, XLVIII). Mais uma vez, a constituição física do ergàstulo em que se dará o cumprimento da pena não se confunde com o regime prisional, embora guardem íntima relação, entretanto, denuncia que, a natureza do delito é elemento fundamental a imputação da pena, em sentido amplo. Significa dizer, a pena não se limita à extensão temporal de reclusão ou detenção, contempla também o regime prisional, a espécie de pena, enfim, um plexo feixe de aspectos que se amolgam no sentido de inferir não só o quantum, mas todos os aspectos periféricos.

Por estas razões, impossível deixar ao largo desta análise o que se pode denominar sentido sintético da Constituição, ou seja, o real propósito jurídico, político, econômico, social e cultural perseguido pela Carta Magna. Inegavelmente, latente a ela um caráter socialista, que repercute de maneira mais incisiva no âmbito das relações cíveis. Já em relação ao aspecto criminal, a Constituição desvela um garantismo quase que radical, obstaculizando o jus puniend.

Esse é o sustentáculo fundamental dos defensores da inconstitucionalidade da vedação quanto a progressão de regime. Noutro vértice, salutar vislumbrar o contexto fático em que se inserem as sociedades contemporâneas.

Neste particular, embora a atual Constituição viga apenas a dezoito anos, a dinamicidade das relações sociais de nossos dias faz com que a leitura de qualquer fenômeno passe por constantes adequações. Assim, o contexto que se apresentava a época da elaboração do Diploma constitucional (o que dizer então de seu projeto, considerando aqui a vagarosa atividade legislativa) é extremamente distinto do que vemos em nossos dias.

Com isso, concluo afirmando que, a precisão e o hermetismo apregoado pelas tendências dogmáticas são absolutamente inócuos defronte a dinamicidade social.

É certo que os institutos essenciais do ideograma jurídico-social, de uma forma geral, subsistem, porém, tal subsistência deve-se justamente a sua capacidade de adequação, porquanto, uma vez petrificados, sua eficácia sucumbirá.

Demais disso, não há que se olvidar o argumento de que a Constituição Federal da República Federativa do Brasil entoa-se como Rígida. Ainda que tecnicamente assim seja, na medida em que a estrutura legislativa atinente ao Poder Reformador entabula um mecanismo onde as alterações constitucionais são “mais difíceis” que as relativas a ordem legal infraconstitucional, basta atentar para as dezenas de emendas que lhe foram feitas em menos de vinte anos de vigência.

 

Como citar o texto:

SILVA, Flávio Alexandre da..A Progressão de Regime nos Crimes Hediondos a partir de uma leitura dos institutos jurídicos pertinentes. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 185. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/1364/a-progressao-regime-crimes-hediondos-partir-leitura-institutos-juridicos-pertinentes. Acesso em 2 jul. 2006.

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