RESUMO: A missão do Direito Penal é a proteção de bens jurídicos. E o âmbito econômico tem chamado a atenção da doutrina, dos tribunais e das leis para responderem às ameaças e lesões contra a ordem econômica, que, por se enquadrarem como bens jurídicos universais, são de difícil regulamentação e que quando atacados, causam extensos danos às suas vítimas. O Direito Penal agora enfrenta um tema pouco conhecido e ainda não desenvolvido pela doutrina jurídico-penal brasileira. Trata-se de criminal compliance, termo explorado há menos de duas décadas pela Escola Clássica de Frankfurt, na Alemanha, hoje o maior centro criminalista do mundo. Criminal compliance é um modo de alcançar a proteção do bem jurídico da ordem econômica e que, conforme se explicará, para a efetividade da sua tutela, uma boa resposta é a prevenção.

 

Palavras-chave: Criminal Compliance. Ordem Econômica. Tutela Penal. Prevenção.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Criminal compliance é novidade pouco conhecida nos bancos da academia e na doutrina jurídica-penal.

Explorado há menos de duas décadas pela Escola Clássica de Frankfurt, na Alemanha, criminal compliance veio como um “mecanismo de proteção” do bem jurídico da ordem econômica e que se comporta um pouco diferente dos meios de tutela penal tradicional, ou seja, é voltado para uma tutela penal preventiva, que age antes de ocorrer uma lesão, um Direito Penal Prospectivo.

A função do Direito Penal é proteger bens jurídicos. E como lembra Roxin, “proteger efetivamente”. O âmbito econômico é um dos focos da doutrina, dos tribunais e das leis para responderem às ameaças e lesões contra a ordem econômica, que, por se enquadrarem na categoria de bens jurídicos universais, são de difícil regulamentação e que quando atacados, causam extensos danos às suas vítimas, difusas, tornando a lesão quase, se não, irreparável.

As consequências desse estudo são muito positivas: o desenvolvimento deste tema contribuirá para um aperfeiçoamento do papel do Direito Penal, como um ramo do Direito que não se limita apenas à repressão e ressocialização, mas que, antes de tudo, luta pela prevenção e diminuição de risco contra ataques de bens jurídicos, em especial, a ordem econômica (crimes contra a ordem econômica).

Isso porque, com a globalização, a tecnologia e a forma que o mundo responde a essa transformação, hoje, o Direito Penal Brasileiro, o maior garantidor da ordem e da segurança jurídica, sofre por um processo de transição mais gigantesco de todos. A saber: caminhamos para um Direito Penal Contemporâneo. Foi-se o tempo em que a proteção de bens jurídicos individuais bastasse para o controle da ordem social. Hoje se fala em bens jurídicos universais, difusos e coletivos, direitos da coletividade, muito mais delicados e de difícil regulamentação para protegê-los, que reclamam cada vez uma solução estatal imediata para manter o equilíbrio social.

Para isso, o Direito Penal deve buscar outros mecanismos diferentes do seu tradicionalismo. E criminal compliance, seguindo um modelo de Direito Penal preventivo, se apresenta como uma alternativa para tutela efetiva do bem jurídico metaindividual da ordem econômica.

2 DIREITO PENAL CONTEMPORÂNEO E A ORDEM ECONÔMICA

Há tempos que estudos sociológicos e antropológicos apontam que a criminalidade é construída socialmente. Por essa ótica, a preocupação está na criminalização (processo) e não no crime (resultado).

O Direito Penal é um meio de controle social, cuja função ostensiva é regular o comportamento humano em sociedade. Todavia, a ordem social conduzida por um sistema de leis, sanções e processo de aplicação, não é suficiente para obrigar os indivíduos a respeitá-la. Deve haver seleção de outros mecanismos de controle penal.

Segundo Guinther Jakobs (1996), a função sancionatória do Direito Penal não é a de reparar bens, mas a de conservar a identidade normativa da sociedade. Daí porque o Direito Penal não pode reagir diante de um fato enquanto lesão de um bem jurídico, senão tão somente frente a um fato enquanto violador da norma penal.

Essa função protetiva do Direito Penal é que tende cada vez mais a se aperfeiçoar: prevenção para preservação. Punir o criminoso apenas por punir, não diminuirá a criminalidade. A razão pela qual o delito é cometido é o que deve ser atacado primeiramente.

O Direito necessita ser repensado para se adequar à realidade moderna, sem, contudo, ignorar “as conquistas históricas, consubstanciadas nas garantias fundamentais”, como destaca Bittencourt (1995, p. 127), porque desprezar princípios conquistados e sedimentados ao longo da história significaria o rompimento da própria estrutura do Direito Penal, plasmada na teoria garantista. Porém, como ressalta Ferrajoli:

“independente do nosso otimismo ou pessimismo, para a crise do Direito, não há outra resposta senão o próprio Direito; e que não existem, para a razão jurídica, alternativas possíveis” (Ferrajoli, 1997, p. 109).

Seguindo o trabalho, a Constituição Federal de 1988, entre seus objetivos, instituiu uma ordem pública econômica. “Ordem” no sentido de ordenamento, de sistema organizado, presidida por princípios e regras jurídicas próprias. E todo crime que diz respeito ao funcionamento do sistema, será um crime econômico.

Para Tiedemann, sobre a política econômica e a política criminal, deve um Estado proteger jurídico-penalmente a economia e os atores (agentes) econômicos.

Nessa nova modalidade de crime, há um conjunto de práticas delitivas por elites econômicas-financeiras, que lesão o patrimônio da coletividade e do Estado.

O problema é que são delitos macroeconômicos, cuja evolução visível e velozmente vai acontecendo, sem que o legislador perceba esse fenômeno.

E a imunidade é um dos pontos mais marcantes da delinquência econômica, em razão não só da complexidade e da técnica das leis especiais que regem a matéria, mas a ausência de controle estatal e a cumplicidade da autoridade delas.

Isso porque, sujeito ativo é uma pessoa de status social elevado. São delitos de cunho empresarial praticados no exercício de suas atividades profissionais. É extremamente difícil descobri-lo e sancioná-lo, em razão do poderio econômico e político do sujeito ativo, que resulta por fim, sempre graves danos sociais a vítimas difusas.

A impunidade sempre existirá enquanto persistirem as desigualdades sociais. O sistema de controle jurídico-penal é, por demais, seletivo. Bem coloca Castilho:

“Se de um lado constroem a criminalidade, por outro desenham o mapa da impunidade. Ao mesmo tempo em que alguns são penalizados, outros são imunizados”. ... “Assim, figurativamente, as malhas do tipo penal são, em geral, mais estreitas para as infrações típicas das classes sociais mais baixas do que aquelas que constituem os crimes do colarinho branco... Com isso, criam-se zonas de imunização para comportamentos cuja danosidade se dirije particularmente às classes subalternas”. (Castilho, 1997, p. 76-7, p. 49-50).

Há também dificuldade na investigação dos delitos econômicos, pois a cifra negra é muito grande. Alguns deles, as autoridades sequer tomam conhecimento.

Dessa forma, em qualquer setor da vida social é melhor prevenir um mal do que vir depois sancionar a sua verificação. Na lição de Roberto Lyra, “o antídoto contra o mal é o bem”. (1977, p. 212-3).

Nos crimes de colarinho branco a prevenção é mais eficaz, porque o dano pode ser muito grave e vitimar um elevado número de pessoas que a necessidade de evitar se faz melhor. A repressão é escassa.

3 UMA ANÁLISE SOBRE CRIMINAL COMPLIANCE

Criminal Compliance se apresenta como uma forma preventiva de tutela da ordem econômica. É política criminal consubstanciada em desenvolver controles internos e “boas práticas” no âmbito corporativo, prevenindo ou diminuindo o risco na persecução criminal da empresa ou instituição financeira.

Trata-se de uma análise ex ante do crime, isto é, um estudo sobre criação de medidas, de controles internos, modelos de boas condutas, que devem adotar as empresas e as instituições financeiras no exercício rotineiro de suas atividades com o fim de prevenir delitos ou ao menos diminuir o risco, evitando, assim, a sua persecução criminal quando respeitado todos os procedimentos de cautela.

No Brasil, o assunto ganhou destaque com a Lei nº 9.613/98 (lavagem de dinheiro) que trouxe os deveres de compliance impostos às instituições financeiras e empresas de capital aberto de criarem controles internos que previnam crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e outros, colaborando e facilitando assim, as investigações desses crimes.

Assim, um dos objetivos da lavagem dinheiro foi privilegiar a prevenção, utilizando para tanto, os deveres de compliance.

Dentre alguns deveres de compliance, citados por Rodríguez Villar e Nateo Germán Bermejo (2001) estão: o Princípio da Cooperação, o dever de informar, sigilo, identificação de todos os clientes, operações, mercado, normas de controle interno, designação de um agente de fiscalização do cumprimento dessas normas. Nas suas palavras:

“La Declaración de Principios del Comitê de Basilea sobre el Lavado de Dinero trata sobre la colaboración de los bancos com las autoridades estatales encargadas de diseñar las políticas de prevención.

Privilegiar las atividades preventivas sobre las repressivas es uno de los objetivos regulatórios básicos.”...“El deber de informar - La coluna vertebral del sistema de instigación para la prevención y represión del branqueo de capitales – operraciones sospechosas – mayor seguridade jurídica. Las prácticas se rutinizan y ello confierenpredictibilidad y estabilidade a la organización, possibilitando la detección de errores y su corrección”. (Villar e Bermejo, 2001, p. 75, p. 121).

Por derradeiro, o professor Silva Sanchez (1999) aponta que, com a modernização da economia, das transações bancárias, da informática, o Estado tem que criar uma forma de proteção e, para isso, utiliza o Direito Penal.

4 CONCLUSÃO: APLICAÇÕES E IMPLICAÇÕES

Indaga-se sobre a possibilidade de criminal compliance ser aplicado no Brasil, se suas consequências são positivas, se apto a proteger os crimes contra a ordem econômica de maneira preventiva e se viável implantar uma política criminal fora do modelo básico de elaboração de leis penais arraigado na sabedoria do legislador, que parte da premissa em explicar o incremento da delinquência como resultado da debilidade da ameaça penal, ao invés do combate em massa na fase ex ante do crime.

É certo que este instituto é estudado e voltado para o modelo europeu, cuja realidade, além de diferente, tem um sistema de Direito Penal diferente do Brasil.

Mas a ordem econômica precisa a todo custo ser tutelada. Sob esse viés, em modesto entender, criminal compliance pode vir num futuro não muito distante oferecer uma maior segurança jurídica na seara do Direito Penal Econômico.

Não olhamos com atenção para os dados estatísticos da criminalidade econômica. No Brasil, milhões de reais são desviados todo ano, conforme a imprensa divulga. Se pensarmos bem, é possível que os danos econômicos superem a totalidade dos danos causados pela criminalidade tradicional.

Outro fator que merece ser observado é a impunidade do sujeito ativo desses delitos que, na maioria das vezes, aparenta boa reputação no meio social, pois habitualmente são pessoas que colaboram com instituições educacionais e de caridade. Assim, a imagem que se faz deste criminoso é positiva, como se as boas condutas compensassem o mal do delito.

Portanto, é preciso instituir meios eficazes de tutelar a ordem econômica, de controle de criminalidade, que, no Brasil, infelizmente ainda é insatisfatório, frente à situação emergencial que vive seus cidadãos. Criminal compliance é um assunto adormecido que merece ser explorado e poderá ser de grande valia para o Direito Penal Econômico Contemporâneo.

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Data de elaboração: outubro/2012

 

Como citar o texto:

FELICIO, Guilherme Lopes..Criminal Compliance. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 1023. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/2635/criminal-compliance. Acesso em 29 out. 2012.

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