Resumo: Desde os tempos remotos já punia com certo rigor os crimes de natureza sexual, desta forma para o Direito Penal cabe a proteção da moral social, principalmente no aspecto sexual sem, contudo, interferir nas relações sexuais normais, ou seja, àquelas que são consentidas e que não acarretam nenhum prejuízo físico ou psicológico a outrem. Não obstante, caso a prática sexual seja exercida de forma anormal, como nos casos das parafilias principalmente as que excedem aos limites do aceitável, e que podem atingir a moral média da sociedade, a lei penal poderá reprimi-la. Todo indivíduo, homem ou mulher possuem liberdade sexual, que é a possibilidade de dispor livremente de seu próprio corpo a atividades sexuais, mas quando essa liberdade invade a do próximo, em que uma delas não consente, está se torna vulnerável representando a violência sexual e a própria prática do estupro.

Palavras-chave: parafilias, vulnerável, Direito Penal, Estupro.

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Com o passar do tempo houve mudanças significativas no que tange à cultura e os costumes sobre sexo, e o que outrora era “imoral”, hoje pode não ser assim considerado. Por essa razão, o Código Penal traz princípios normativos, com o propósito de coibir os crimes contra a dignidade sexual. Nesse sentido, necessário se faz compreender que o estupro é nada mais que a relação sexual entre pessoas, em que uma delas não consente com a prática, ou então está vulnerável a ponto de não ser capaz de impedir que aconteça, é uma agressão que envolve a relação sexual ou outras formas de penetração com emprego força que pode ser física ou até mesmo ameaça.

A cultura do estupro vem desde os primórdios até a atualidade, na Grécia a contento, a mais alta divindade, raptava e estuprava mulheres. No Velho Testamento, a mulher era considerada propriedade masculina. Em todo o Oriente Médio, o estupro não era concebido como um abuso, a vítima do crime era o homem, que possuía um bem danificado. No Brasil o estupro preleciona desde seu descobrimento, os portugueses estupravam as mulheres indígenas. Na época escravocrata as mulheres negras eram violentadas sexualmente, pelos senhores, consideradas bens móveis subumanos, apenas propriedades.

Com efeito, o Código Penal de 1830 passou a punir o estupro violento com a pena de prisão de três a doze anos, acrescida da obrigação de adotar a ofendida. Já o Código Penal Republicano de 1890 atenuou ainda mais a punibilidade do estupro, cominando-lhe a pena de um a seis anos de prisão celular (artigos 269 e 268), além da constituição de um dote para a vítima. O Código Criminal de 1830 punia a ofensa pessoal para fim libidinoso que causasse dor ou mal corpóreo, mesmo que não tivesse havido cópula carnal (art. 223). O Código Penal de 1890, por sua vez, punia o atentado violento ao pudor com a pena de um a três anos de prisão celular (art. 226).

Hoje, possui uma nova acepção no caso de estupro significando não apenas conjunção carnal violenta, contra homem ou mulher (estupro em sentido estrito), mas também o comportamento de obrigar a vítima, homem ou mulher, a praticar ou permitir que com o agente se pratique outro ato libidinoso. O atual artigo 213 do Código Penal: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (BRASIL, 1940).

O vocábulo relações sexuais, além da dita cópula vagínica, abrange também, na linguagem clássica, as relações sexuais anormais, tais como o coito anal ou oral, o uso de instrumentos roliços ou dos dedos para a penetração no órgão sexual feminino, ou a cópula vestibular, em que não há penetração. A expressão “relações sexuais”, ademais, mostra-se mais atualizada, por seu alcance mais abrangente, pois englobaria também, além dos atos supraenunciados, as relações homossexuais (tidas, simplesmente, como atos libidinosos diversos da conjunção carnal), tão disseminadas na atualidade.

Desta maneira, de forma lenta, mas contínua, a palavra vulnerabilidade foi ganhando espaço nas ordenações brasileiras. Os juízos de valor, passaram a exigir uma conduta representante de direitos iguais para os vulneráveis. Por isso para alcançar o equilíbrio com uma justa compensação. Nesta seara almejou aquele que for vítima de conjunção carnal ou outro ato libidinoso, desde que seja menor de 14 (catorze) anos ou, nas exatas palavras do § 1º do art. 217-A, do Código Penal Brasileiro, “alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência” (BRASIL, 1940).

 

DOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL

Antes de concentrar no propósito principal deste capítulo, que é o art. 217-A do Código Penal, necessário se faz compreender a tutela penal dos crimes contra a dignidade sexual em sua amplitude. O Título VI da Parte Especial do Código Penal brasileiro, antes da Lei nº 12.015/2009, tinha como rubrica Dos Crimes contra os Costumes, o qual se compunha, originalmente, dos seguintes capítulos: I. Dos crimes contra a liberdade sexual; II. Da sedução e da corrupção de menores; III. Do rapto; IV. Disposições gerais; V. Do lenocínio e do tráfico de (mulheres) pessoas e VI. Do ultraje público ao pudor (BRASIL, 1940).

A partir das modificações introduzidas pela Lei nº 12.015/2009, pode-se visualizar a seguinte composição do aludido Título, que cuida dos Crimes contra a Dignidade Sexual, que se encontra, agora, dividido em sete capítulos, a saber: Capítulo I – Dos Crimes contra a Liberdade Sexual. Estupro Art. 213; Violação Sexual Mediante Fraude: Art. 215; Assédio Sexual: Art. 216-A; Capítulo II – Dos Crimes Sexuais contra Vulnerável.  Estupro de Vulnerável: Art. 217-A; Corrupção de Menores: Art. 218; Satisfação de Lascívia Mediante a Presença de Criança ou Adolescente: Art. 218-A; Favorecimento da Prostituição ou Outra Forma de Exploração Sexual de Vulnerável: Art. 218-B; Capítulo III – Revogado integralmente pela Lei no 11.106, de 28 de março de 2005; Capítulo IV – Disposições Gerais. Ação Penal: Art. 225; Aumento de Pena: Art. 226; Capítulo V – Do Lenocínio e do Tráfico de Pessoa para fim de prostituição ou outra forma de exploração sexual: Mediação para servir a lascívia de outrem: Art. 227; Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual: Art. 228; Casa de prostituição: Art. 229; Rufianismo: Art. 230; Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual: Art. 231; Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual: Art. 231-A; Capítulo VI – Do Ultraje Público ao Pudor. Ato obsceno: Art. 233; Escrito ou objeto obsceno: Art. 234; Capítulo VII – Disposições Gerais. Aumento de pena: Art. 234-A; Segredo de justiça: Art. 234-B (BRASIL, 1940).

Menciona Bittencourt (2012, p. 49) que a Lei nº. 11.106/2005 executou profundas alterações no Título IV do CP, pois suprimiu integralmente o Capítulo III, que abordava os crimes de rapto (artigos 219 a 222) fazendo-o desaparecer do nosso diploma legal. A referida lei também revogou o art. 217, objeto do Capítulo II, que tipificava o crime de sedução, atendendo, antigas reivindicações da doutrina e jurisprudência. Por fim, alterou o Capítulo V, que se denominava “Do Lenocínio e do Tráfico de Mulheres”, para “Do lenocínio e do Tráfico de Pessoas”, ampliando consideravelmente a sua abrangência. Essa incômoda impropriedade do Título “Dos crimes contra os costumes” já era reconhecida logo no princípio da edição do Código Penal, na década de 1940, eis que não correspondia aos bens jurídicos que pretendia tutelar, violando o princípio de que as rubricas devem expressar e identificar os bens jurídicos protegidos em seus diferentes preceitos.

A Reforma Penal de 1984 (Lei n. 7.209/84), que se limitou à Parte Geral do Código Penal, poderia ter aproveitado para corrigir essa equivocada terminologia, a exemplo do que fez a reforma penal espanhola de 1989, que substituiu a expressão “Delitos contra la honestidad” na rubrica do Título IX do Código Penal espanhol anterior, que disciplinava os crimes sexuais, pela de “Delitos contra la libertad sexual”, que foi mantida pelo atual Código Penal espanhol de 1995, pois, segundo a Exposição de Motivos da reforma anterior, “este es el auténtico bien jurídico protegido” (BITTENCOURT, 2012, p. 49).

Ainda de acordo com Bittencourt (2012, p. 49), fazendo ainda menção e comparação com a reforma penal espanhola, comenta que, após a edição da Ley Orgánica nº 11/99[1], ampliou a abrangência do Código Penal castelhano, como reconhece Muñoz Conde (2004, p. 205), justificando, inclusive, a ampliação ou a criação de alguns tipos penais, que não se identificam claramente com a própria rubrica, sendo questionável sua existência. De fato, constata-se que o Título VI, do Código Penal brasileiro, “Dos crimes contra os costumes”, antes do advento da Lei nº 11.106/2005 e, posteriormente, a Lei 12.015/2009 apresentava-se muito mais complexo do que seu similar do Código Penal espanhol, ante a sua pluralidade de capítulos, tratando de crimes que, indiscutivelmente, têm como objeto bens jurídicos bastante diversos, como deixam claro os títulos dos referidos capítulos.

Como pode ser visto, o Título VI, que trata dos “Crimes Contra a Dignidade Sexual” traz um extenso rol. Por esse motivo, seria muito dispersar tratar sobre cada um deles e suas características, sendo que o propósito principal do presente trabalho, como já informado, é de enfatizar apenas um deles, que é o crime de Estupro de Vulnerável, descrito no artigo 217-A, do Código Penal.

Antes, porém, é de bom tom examinar o bem jurídico tutelado, que é a liberdade. A liberdade, além de ser um dos bens jurídicos mais importantes da vida em sociedade, ao lado da própria vida e da saúde, é, também, um dos direitos mais desrespeitados, além de ser frequentemente utilizado como meio para atentar contra outros bens jurídicos, como ocorre, por exemplo, em alguns crimes contra o patrimônio, contra a administração da justiça, etc. É indiscutível, como nos casos de crimes sexuais, como nos exemplos do estupro e da violação sexual, ao lado da liberdade individual, lesam-se outros bens jurídicos. Destaca Bittencourt (2012, p. 50) as palavras de Conde (2004. p. 206), quanto à liberdade sexual.

Referindo-se à liberdade sexual, entendida como aquela parte da liberdade referida ao exercício da própria sexualidade e, de certo modo, a disposição do próprio corpo, aparece como um bem jurídico merecedor de uma proteção penal específica, não sendo suficiente para abranger toda sua dimensão a proteção genérica concedida à liberdade geral (BITTENCOURT, 2012, p. 51).

Nessa mesma linha de raciocínio, não há dúvidas de que a liberdade sexual, entendida como a faculdade individual de escolher livremente, não apenas o parceiro ou parceira sexual, como também quando, onde e como exercitá-la, constitui um bem jurídico autônomo, distinto da liberdade genérica, com dignidade para receber, autonomamente, a proteção penal.

 

DA TEORIA DO CRIME: ANÁLISE DOS ELEMENTOS

Após uma breve análise do propósito protecionista da Lei, em relação ao vulnerável, faz-se necessário analisar o que preconiza propriamente o art. 217-A do Código Penal:

Estupro de vulnerável

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

§ 2º (VETADO)            

§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.

§ 4º Se da conduta resulta morte:

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos (BRASIL, 1940).

O art. 217-A do CP tutela a dignidade sexual do vulnerável. Antes da Lei 12.015/2009 o ato sexual com pessoa vulnerável configurava, a depender do caso, enquadrava-se como estupro (art. 213 do CP) ou atentado violento ao pudor (art. 214 do CP), mesmo que praticado sem violência física ou moral, pois presumida, de forma absoluta de acordo com a maioria, no art. 224 do CP. Este dispositivo do artigo 224, agora está expressamente revogado, incluindo-se a conduta ao disposto no art. 217-A do CP.

Leciona Cunha (2016, p. 461) que de longa data, as mais variadas jurisprudências e doutrinadores discutem, se o estupro contra vulnerável, sem violência ou grave ameaça, era ou não hediondo. Afirma o predito doutrinador, que a Lei 12.105/2009 colocou uma pá de cal nessa discussão, incluindo, expressamente, o art. 217-A no rol de delitos hediondos, “disposto no artigo 1º, inciso VI, da Lei 8.072/90, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências” (BRASIL, 1990).

Ao analisar a Lei 8.072/90 com atenção, se verá que ela torna a vida do criminoso que pratica os delitos ali previstos, muito mais difícil, porque ela elimina ou reduz vários direitos que o indiciado, acusado ou condenado normalmente teria antes ou depois da condenação. Antes da condenação: O art. 2º da Lei 7.960/89 prediz que o prazo da prisão temporária para um crime normal é de 05 (cinco) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade (BRASIL, 1989). Quando se trata de crime hediondo ou equiparado, o prazo salta para até 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período, conforme disposto no art. 2º, § 4º da Lei 8.072/90.

O preso, via de regra, não tem direito à liberdade provisória, seja com ou sem pagamento de fiança. Via de regra, pois depende do caso concreto. Após a condenação: A Lei nº 8.072/90 estatui que o apenado não tenha direito a anistia, graça ou indulto[2] e dará início ao cumprimento da pena em regime fechado; A progressão de um regime mais severo para um mais leve demora mais tempo, pois será necessário cumprir, no mínimo, 2/5 (dois quintos) da pena, se o criminoso for primário ou 3/5 (três quintos) se for reincidente; Também o prazo para conseguir o livramento condicional é muito maior, qual seja: 2/3 (dois terços) isso se for primário, pois se o criminoso for reincidente em crime hediondo ele sequer terá esse direito (BRASIL, 1990).

O bem jurídico tutelado ou protegido no crime de estupro de vulnerável é a dignidade sexual do menor de quatorze anos e do enfermo ou deficiente mental, que tenha dificuldade em discernir a prática do ato sexual. Especificamente sobre o vulnerável em razão da idade, ensina Bittencourt (2012, p. 114), que na hipótese de crime sexual contra vulnerável, não se pode falar em liberdade sexual como bem jurídico protegido, pois se reconhece que não há a plena disponibilidade do exercício dessa liberdade, que é exatamente o que caracteriza sua vulnerabilidade. Na verdade, a criminalização da conduta descrita no art. 217-A procura proteger a evolução e o desenvolvimento normal da personalidade do menor, para que, na sua fase adulta, possa decidir livremente, e sem traumas psicológicos, seu comportamento sexual.

 

Elementos do Crime

Conforme dispõe Bittencourt (2012, p. 124), a classificação doutrinária do Art. 217-A, do Código Penal, cuida-se tratar de crime comum, ou seja, que não exige qualquer qualidade ou condição especial do sujeito ativo; o fato de somente alguém vulnerável poder ser sujeito passivo não o qualifica como crime próprio. Material: crime que causa transformação no mundo exterior, isto é, deixa vestígios; Doloso: não há previsão de modalidade culposa; De forma livre: pode ser praticado por qualquer forma ou meio eleito pelo sujeito ativo; Comissivo: o verbo nuclear implica a prática de uma ação; Instantâneo: a consumação não se alonga no tempo, configurando-se em momento determinado; Unissubjetivo: pode ser cometido por uma única pessoa; Plurissubsistente: a conduta pode ser desdobrada em vários atos, a depender do caso concreto.

A ação nuclear é a conduta típica, consistente em ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. De acordo com o § 1º do art. 217-A, incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência (BRASIL, 1940). 

Trata-se de crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa. Segundo Bittencourt (2012, p. 115), qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime de estupro de vulnerável, indistintamente, homem ou mulher, contra, inclusive, pessoa do mesmo gênero. Coautoria e participação em sentido estrito são perfeitamente possíveis, inclusive contra vítimas do mesmo gênero dos autores ou partícipes. Segundo Cunha (2016, p. 472), se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância, a pena será majorada de metade, conforme art. 226 do Código Penal.

Já o sujeito passivo, segundo o ensina Capez (2012, p. 105), é o indivíduo menor de 14 anos ou aquele que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. Atualmente, tanto o homem quanto a mulher podem ser sujeitos passivos do crime em exame. Acrescenta Bittencourt (2012, p. 115), que no estupro de vulnerável, a vítima (vulnerável) do sexo masculino também, em qualquer circunstância, quando violentada, é sujeito passivo do crime de estupro, a exemplo do que ocorria com o antigo crime de atentado violento ao pudor. Em outros termos, o crime de estupro de vulnerável também pode ocorrer em relação a heterossexual ou homossexual (homem com homem e mulher com mulher).

Nos ensinamentos de Capez (2012, p. 108), o elemento subjetivo é o dolo, consubstanciado na vontade de ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com indivíduo nas condições previstas no caput ou §1º do artigo. Não é exigida nenhuma finalidade especial, sendo suficiente a vontade de submeter a vítima à prática de relações sexuais. Esclarece Cunha (2016, p. 472), que se pune a conduta do agente que tem conjunção carnal ou pratica outro ato libidinoso com vítima menor de 14 anos ou portadora de enfermidade ou deficiência mental ou incapaz de discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, sem condições de oferecer resistência, pouco importando, neste último caso, se a incapacidade foi ou não provocada pelo autor. Trata-se de crime de execução livre.

Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos ou com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência Neste sentido, vale frisar que “em qualquer caso, a vítima deve se amoldar às características previstas tanto no caput, como no § 1º do art. 217-A, do Código Penal, não importando ou não se tenha ou não consentido para o ato sexual” (GRECO, 2013, p. 540). No caso da cópula vagínica, o estupro, por ser delito material, consuma-se com a introdução completa ou incompleta do pênis na cavidade vaginal da mulher. De acordo com Capez (2012, p. 44), o mero contato do membro do agente com o órgão genital da vítima configura o crime tentado.

Também será reconhecível a tentativa quando não haja esse contato, desde que as circunstâncias deixem manifesto, por parte do agente, o intuito de conjunção carnal. Assim, deve responder por estupro tentado o indivíduo que, depois de empolgar a vítima, joga-a no chão ou para cima do leito, levantando-lhe as vestes, arrancando ou rasgando-lhe as calças, e retira o membro em ereção, procurando aproximá-lo do órgão sexual da vítima, mas vindo a ser impedido de prosseguir por circunstâncias independentes de sua vontade, como quando a vítima consegue desvencilhar-se e fugir, ou sobrevém intervenção de terceiros. Consuma-se o delito-crime com a prática do ato libidinoso diverso da cópula vagínica. Se o agente emprega violência ou grave ameaça, que são atos executórios do crime, mas não consegue realizar os atos libidinosos por circunstâncias alheias a sua vontade, há crime tentado. Com o advento da Lei n. 12.015/2009, os atos libidinosos diversos da conjunção carnal passaram a também configurar o delito de estupro, de forma que uma vez comprovada a sua realização, o crime será considerado consumado. 

A forma simples está prevista no caput e §1º do art. 217-A do Código Penal. As formas qualificadas estão contempladas no §3º: “Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: Pena — reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos” e no § 4º: “Se da conduta resulta morte: Pena — reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos” (CP, art. 217-A). O estupro de vulnerável, na forma simples e qualificada (art. 217-A, caput e §§ 1º, 2º, 3º e 4º), é considerado hediondo, consoante expresso teor do art. 1º, VI, da Lei nº 8.072/90 (com as modificações operadas pela Lei n. 12.015/2009).

Conforme instrui Capez (2012, p. 249), com o advento da Lei n. 12.015/2009, incluindo o Art. 234-A do CP, criaram-se duas novas causas de aumento de pena, incidentes sobre os capítulos do Título VI. Assim, a pena será aumentada de metade: (a) se do crime resultar gravidez: basta, desse modo, que da prática, por exemplo, do estupro, resulte a aludida consequência para a vítima. Não é necessário que a gravidez seja abrangida pelo dolo do agente; (b) se o agente transmite à vítima doença sexualmente transmissível de que sabe (dolo direito) ou deveria saber (dolo eventual) ser portador. Na hipótese, não há mais que se falar no concurso formal impróprio entre o crime contra a dignidade sexual e o delito do art. 131 do CP (perigo de contágio de moléstia venérea), constituindo a transmissão da doença uma circunstância majorante.

O crime é punido a título de dolo, devendo o agente ter ciência de que age em face de pessoa vulnerável. Conforme Cunha (2016, p. 472), na hipótese da enfermidade ou deficiência mental, permanece o alerta da doutrina, de que a qualidade da vítima deve ser, quando não espetacular, pelo menos aparente, reconhecível por qualquer leigo em psiquiatria. Em regra, o erro que conduz o sujeito ativo a desconhecer a vulnerabilidade da vítima o isenta de pena, excluindo o próprio crime, nos termos do art. 20 do CP (erro de tipo), salvo se utilizou, na execução do delito, de violência física ou moral ou de fraude, configurando, então, estupro (art. 213) ou violação sexual mediante fraude (art. 215), respectivamente. A ação penal para esse delito está prevista no art. 225 do CP:

Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação. Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável (BRASIL, 1940).

A pena cominada para o caput do art. 217-A é, isoladamente, reclusão, de oito a quinze anos. Decorrendo da conduta, lesão corporal de natureza grave, a pena será reclusão de dez a vinte anos (§ 3º); decorrendo da conduta do agente, a morte da vítima, a reclusão será de doze a trinta anos (§ 4º). Há, ainda, as majorantes especiais contidas no art. 226 do CP: de quarta parte, na hipótese do inciso I, pelo concurso de pessoas; e, de metade, se o agente enquadra-se em uma das hipóteses relacionadas no inciso II (BRASIL, 1940).

 

SOB A ESPADA DE DÂMOCLES: (IN)IMPUTABILIDADE PENAL DO PEDÓFILO PREFERENCIAL À LUZ DA PSIQUIATRIA FORENSE

Como já sabido, por mais reprovável que seja, a pedofilia não é vislumbrada por nosso ordenamento jurídico pátrio como crime. O que é reprovável legalmente são as consequências do comportamento do pedófilo, podendo caracterizar o crime de estupro (art. 213, CP), estupro de vulnerável (art. 217-A, CP), corrupção de menores (art. 218, CP) e pornografia infantil (artigos 240 e 241 ECRIAD). Barbosa (2013, s.p.), analisa a questão da responsabilidade penal no universo jurídico brasileiro, bem como confronta com os crimes que já se encontram devidamente tipificados em nosso código penal e no estatuto da criança e do adolescente, além de expor alguns dos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais acerca do assunto.

De acordo com Barbosa (2013, s.p.), citando Moraes (2004, p. 3), afirma, categoricamente, que a pedofilia não é considerada um tipo de crime, todavia, seria uma qualidade ou sentimento de quem é pedófilo, ou seja, pessoa que gosta de crianças, aquele que tem amor por crianças. Isso é sabido, uma vez que já abordado alhures, mas o mesmo autor afirma que foram os meios de comunicação, ao usar de forma irregular a expressão pedofilia, permitiu que o termo se tornasse costumeiro e popular. Etimologicamente, o vocábulo pedofilia significa amor ou amizade por criança. Obviamente, o termo de origem grego foi destituído, nas línguas neolatinas e nas anglo-saxãs que lhe tomaram de empréstimo, do significado literal. O amor e a amizade que ali estavam radicados cederam lugar a uma semântica em tudo distinta, com contornos francamente negativos.

Dessa forma, o indivíduo que corrompe ou pratica atos libidinosos contra crianças não pode ser considerado pedófilo, e sim criminoso, tendo em vista que pedofilia não se encontra tipificado como crime no Código Penal Brasileiro e nem no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECRIAD, ou seja, os pedófilos são os indivíduos que “gostam de crianças”, assim como gostam os pais, avós e etc., mas não são criminosos, podendo-se concluir que o vocábulo pedofilia quando usado para retratar os crimes sexuais cometidos contra menores são usados de forma equivocada pela sociedade.

O relator da CPI da Pedofilia, Senador Demóstenes Torres, em Relatório Final para Comissão Parlamentar de Inquérito, BRASIL (2010, p. 60), abordou em seu trabalho um conceito bastante singular sobre a temática, embasado pela Associação Psiquiátrica Americana – APA, alertando que a ciência médica, a psiquiatria e a psicologia têm visto a pedofilia de modo dual, ou seja, sob dois aspectos, ora percebendo-a como uma patologia, ora encarando-a como um desvio comportamental ao nível das parafilias, ou seja, um transtorno de excitação sexuais recorrentes e intensos que envolvem objetos, atividades ou situações incomuns e causam sofrimentos clinicamente significativos ou prejuízos no funcionamento do indivíduo e/ou suas vítimas.         

Não se trata de questão de somenos para o campo do direito, de vez que a inclusão da pedofilia entre os transtornos mentais tem o potencial de, eventualmente, tornar o pedófilo inimputável. No referido relatório, há a descrição de que no âmbito da conceituação psiquiátrica (DSM-IV/APA), a pedofilia é um transtorno da sexualidade caracterizado pela formação de fantasias sexualmente excitantes e intensas, impulsos sexuais ou comportamentos envolvendo atividades sexuais com crianças pré-púberes, geralmente com 13 anos ou menos.

Ainda fazendo referência ao Relatório Final da CPI da Pedofilia, a Dra. Tatiana Hartz, psicóloga que integrou o Grupo de Trabalhos da Comissão BRASIL (2010, p. 62) e que realizou diversas oitivas “não-revitimizantes” de crianças vítimas de violência sexual, ponderou que quanto à definição de pedofilia, temos dois importantes Manuais de Diagnósticos, o DSM-IV e o CID-10, que esclarecem que a pedofilia é um foco parafílico (para = desvio; filia = aquilo para que a pessoa é atraída) que envolve atividade sexual com uma criança pré-púbere (geralmente com 13 anos ou menos). É um transtorno sexual. Alguns indivíduos com pedofilia sentem atração sexual exclusivamente por crianças (Tipo Exclusivo), enquanto outros às vezes sentem atração por adultos (Tipo Não-Exclusivo). Ou seja, nem toda pessoa que comete ofensa sexual contra criança pode ser chamado de pedófilo. A preferência sexual por crianças também tem que ser duradoura, ou seja, aquele que molestou uma criança apenas uma vez não pode ser considerado um pedófilo.

Do conjunto de definições, extrai-se a conclusão de que a pedofilia não deve ser classificada, stricto sensu, como uma doença mental, mas antes como um transtorno na área específica da excitação sexual, sem implicar a impossibilidade de discernimento por parte do sujeito e a sua consequente irresponsabilização. Ainda nos trilhos do Relatório da CPI da Pedofilia, BRASIL (2010, p. 62), cita-se Trindade e Breier (2007, p. 82), os quais definem que a pedofilia tem sido considerada uma entidade atípica. Nesse sentido, ela não encerraria a condição plena de doença ou perturbação mental como qualificativos restritos do sujeito-corpo e, talvez, pudesse ser mais bem descrita como uma desordem distintivamente moral.

A opinião desses especialistas, longe de restar isolada, encontra eco em outros posicionamentos, isso porque o Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais, o DSM-5, não inclui a pedofilia entre as verdadeiras doenças mentais, mas sim entre as “parafilias”, termo que expressa um transtorno da excitação sexual, que nestes casos somente é possível mediante estímulos particulares. Como já observado anteriormente, a esta categoria pertencem, por exemplo, o fetichismo, o exibicionismo, o voyeurismo, o sadismo, etc.          O Relatório Final da CPI da Pedofilia (BRASIL, 2010, p. 63) faz referência à Dra. Maíra de Paula Barreto, a qual relata que não é somente o fato de possuir doença mental que qualifica o sujeito pedófilo como inimputável, mas, também, a capacidade de entender que a ação é ilícita e de se autodeterminar de acordo com este entendimento, conforme o artigo 26 do Código Penal. O dispositivo citado isenta de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

As confusões com o nome pedofilia aparecem porque se trata de uma palavra usada pela medicina, direito e pela linguagem policial, mas na verdade, o nome se refere exclusivamente a um diagnóstico médico. Como a pedofilia é uma doença que precisa ser diagnosticada por um psiquiatra, a maioria dos casos analisados todos os dias não é de pedofilia, mas abusos sexuais. Às vezes, o pedófilo não chega a cometer abusos. E quando isso realmente acontece, é feito por criminosos comuns que abusam de crianças por ocasião, por uma questão pessoal, mas nem sempre por ter o transtorno. Já o doente percebe que tem o incontrolável desejo e, muitas vezes, sofre com isso desde o início da idade adulta.

As análises parecem convergir para a constatação de que existe uma minoria de pedófilos realmente doentes, ao passo que predomina uma grande maioria composta por pedófilos tão-somente criminosos, pois eis que têm plena consciência do teor de suas intenções e atitudes. Além disso, o Relatório Final para CPI da Pedofilia (BRASIL, 2010, p. 64) cita o conceito da Dra. Fani Hisgail, uma das maiores autoridades do País no tema da pedofilia, assegurando que o pedófilo sabe o que está fazendo.

Mesmo considerando que se trata de uma patologia, ele preserva o entendimento de seus atos o que o diferencia de um psicótico. O fato de a pedofilia ser uma patologia não significa que o pedófilo não deva ser punido. Mas, livre de sua pena, ele geralmente reincide, por isso, precisa ser tratado, ainda que na prisão. O problema é que ele não vai procurar um especialista porque a patologia não o incomoda, ele não sente culpa.

Castro e Bulawski (2011, p. 17) descrevem que em grande parte dos debates que envolvem o assunto pedofilia, raramente há uma certeza plena sobre as afirmações que são lançadas, por ainda se tratar de um tema relativamente novo que instiga a novos estudos. Outra não podia ser a posição quando o objeto da discussão traz à tona a condição de imputabilidade, ou não, do indivíduo portador desse transtorno parafílico. O Código Penal, em seu artigo 26, descreve as situações que devem ser verificadas para que um indivíduo seja “beneficiado” pela declaração de inimputabilidade ou mesmo semi-imputabilidade. O citado texto legal assim dispõe:

Inimputáveis

Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Redução de pena

Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (BRASIL, 1940).

Além disso, segundo o relatório supramencionado a literatura demonstra consistentemente que os pedófilos não podem ser considerados alienados mentais, isto porque, as estatísticas mostram que 80 a 90% dos contraventores sexuais não apresentam nenhum sinal de alienação mental, portanto, são juridicamente imputáveis (BRASIL, 2010, p. 64). Entretanto, desse grupo de transgressores, de acordo com o relatório, aproximadamente 30% não apresenta nenhum transtorno psicopatológico da personalidade evidente e sua conduta sexual social cotidiana e aparente parece ser perfeitamente adequada (BRASIL, 2010, p. 64).

Por outro lado, um grupo minoritário de 10 a 20%, é composto por indivíduos com graves problemas psicopatológicos e de características psicóticas alienantes, os quais, em sua grande maioria, seriam juridicamente inimputáveis. Desenvolvendo a questão do alcance e dos limites das parafilias, ainda de acordo com o relatório da CPI da Pedofilia, Ballone (2005, s.p.), constata a tibieza e a imperfeição teórica das teses que procuram conferir ao impulso pedófilo um componente incontrolável. Assim sendo, a inclinação cultural tradicional de se correlacionar, obrigatoriamente, o delito sexual com doença mental deve ser desacreditada. A crença de que o agressor sexual atua impelido por fortes e incontroláveis impulsos e desejos sexuais é infundada, ao menos como explicação genérica para esse crime.

Segundo Castro e Bulawski (2013, p. 18), constata-se através de um relatório elaborado pela Polícia Federal, que a maioria dos pedófilos presos pela prática de atos sexuais em face de crianças detinha conhecimento do que estavam praticando, sendo, portanto, imputáveis. De acordo com Almeida (2008, s.p.), citando o levantamento da Polícia Federal (2007), a porcentagem dos delinquentes cientes dos atos que praticavam varia entre 80% e 90%. Já, segundo afirmações de Conti (2008, p. 61), estudos realizados demonstram que 70% (setenta por cento) dos contraventores sexuais não apresentam nenhum sinal de alienação mental, sendo, portanto, imputáveis penalmente. Em 30% (trinta por cento), estariam as pessoas com evidentes transtornos da personalidade, com ou sem perturbações sexuais manifestas, sendo aqui incluídas os psicopatas, sociopatas, antissociais, além de que um grupo minoritário de 10% (dez por cento) é composto por indivíduos com graves problemas psicopatológicos e de características psicóticas alienantes, os quais em sua grande maioria, seriam juridicamente inimputáveis.

Assinalam Castro e Bulawski (2013, p. 18), o entendimento de Moraes (2002, p. 25), o qual descreve que o pedófilo mantém o juízo e, portanto, deve ser punido. Apesar de possuir um distúrbio, tem consciência do que faz, assim, não pode ser considerado um incapaz no tribunal, como acontece com os esquizofrênicos e outros portadores de distúrbios mentais, que, por não terem consciência de seus atos, terminam com a pena aliviada.

Ressaltando a existência da citada discussão, Castro e Bulawski (2013, p. 18) fazem menção a Trindade (2007, p. 82), salientando que, a despeito de a pedofilia estar elencada nos sistemas classificatórios vigentes (CID-10 e DSM-IV), tem sido considerada uma entidade atípica. De acordo com o estudioso, seria ela melhor descrita como uma desordem moral, não encerrando a condição plena de doença ou perturbação mental como qualificativos restritos do sujeito-corpo (TRNDADE, 2007 apud CASTRO; BULAWSKI, 2013).

Afirma, ainda que, como doença mental, a pedofilia colocaria o sujeito no registro dos inimputáveis; como perturbação mental, no quadro daqueles considerados de responsabilidade penal diminuída (TRINDADE, 2007 apud CASTRO; BULAWSKI, 2013). Em qualquer das hipóteses, com limitada possibilidade de um tratamento curativo definitivo. Todavia, como doença moral, a pedofilia não retiraria a responsabilidade do agente, e o pedófilo seria inteiramente responsável por seus atos, portanto, do ponto de vista jurídico, plenamente capaz.

Diante de tais considerações e estudos, Castro e Bulawski (2013, p. 18), descrevem que existe a clara percepção que grande parte dos portadores dos sintomas da pedofilia possui a capacidade de determinar-se. Contudo, admite-se a possibilidade de existência de desequilíbrio entre o instrumental psicológico de autocontrole e a intensidade dos impulsos. Com o fim de analisar esta situação, deve ser apreciada pelos peritos uma série de itens que, se presentes, demonstram uma diminuição na capacidade de contenção dos estímulos. Neste sentido, Castro e Bulawski expõem que:

1. Ausência de premeditação ou planejamento, caracterizando o ato como impulsivo. No período de planejamento, o indivíduo fantasia o ato delituoso sem estar submetido a um impulso incoercível, enquanto ainda pode avaliar suas consequências e tem tempo de providenciar solução lícita para o desejo - tratamento ou medidas preventivas, como evitar situações propícias.

2. Traços da personalidade com baixa tolerância à frustração, especialmente os imaturos e explosivos.

3. Presença de inteligência limítrofe (retardo mental subclínico).

4. Intenção de não praticá-Io, caráter de luta interna entre o impulso e os escrúpulos, o respeito à lei e ao sofrimento do outro.

5. Tentativas de lidar com o impulso patológico de maneira adequada, evidenciadas por tentativas de tratamento ou providências para evitar o surgimento de situações propícias à conduta criminosa.

6. Caráter de ato isolado ou infrequente.

7. Extraordinária intensidade do impulso, habitualmente revelada pelo sofrimento inerente ao seu controle.

8. Existência de arrependimento e preocupação com o sofrimento da vítima (CASTRO; BULAWSKI, 2013, p. 18).

Ainda assim, há entendimento de que a caracterização da total inimputabilidade do agente pedofílico, ou seja, de ser inteiramente incapaz de determinar-se de acordo com esse entendimento, deve ser vista com certa reserva, tendo em vista que as presenças desses casos, em comparação com os demais, beiram à raridade. Entretanto, deixa-se claro que a noção de inimputabilidade aqui tratada decorre unicamente da pedofilia, não se levando em conta condutas que são praticadas em face de outros distúrbios mentais que eventualmente o indivíduo venha a possuir.

Identifica-se pelos julgados dos Tribunais pátrios grande divergência sobre o tema. Mencionam Castro e Bulawski (2013, p. 19) que a despeito do debate divergencial nas decisões, citam trechos de decisões proferidas pelo Poder Judiciário, em julgamentos em que houve a alegação de que o réu era portador do transtorno pedofílico:

Apelação Criminal n° 70010540284, Sexta Câmara Criminal. Relator: Des. João Batista Marques Tovo. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Acórdão de 01 de dezembro de 2005.

Discussão diagnóstica: O exame psiquiátrico do examinado, a história coletada, não indicam a presença de uma doença mental, na acepção do artigo 26 do Código Penal Brasileiro, em seu caput. Não há a presença de alterações orgânicas, sintomas psicóticos, alterações cognitivas, ou problemas significativos nem dependência química o que corrobora a afirmação acima, quanto a ausência de doença mental. O problema relatado nos autos do processo diz respeito a uma alteração do comportamento. A pedofilia refere-se a comportamento envolvendo atividade sexual com uma (ou mais de uma) criança pré-púbere (geralmente com menos de 13 anos de idade). O comportamento sexual em questão causa prejuízo no funcionamento social e familiar. Muitas vezes, o indivíduo pedofílico ameaça a criança para evitar a revelação dos seus atos. É comum que sintam o seu comportamento como egosintônico, ou seja, não havendo um estranhamento em relação à sua conduta. Frequentemente procuram ocultar o seu comportamento, sua conduta, omitindo-os, uma vez que tem a noção de que o seu comportamento não é sancionado socialmente e legalmente.

Pelo que foi exposto, vemos que o diagnóstico da pedofilia implica a presença de um comportamento envolvendo atividade sexual com crianças. O comportamento não é observado pelo psiquiatra, assim como o é um sintoma, ou um sinal clínico, mas é referido a partir de uma variedade de fontes e contextos: a história coletada, os autos do processo que descrevem um comportamento, a confissão da criança a um médico ou a familiares, entre outros. Nem sempre se dispõe de todas essas fontes, haja vista que há com frequência a tentativa de ocultar o ato perverso.

Desta forma, como o examinando nega a presença de fantasias sexuais com a menor, que seriam a motivação do seu comportamento, resta a evidência do próprio comportamento, evidência esta que, embora não seja fornecida pelo examinado, é descrita em várias outras fontes, em diferentes contextos: a denúncia, os depoimentos da mãe, da vítima e o parecer da equipe do Serviço de Psiquiatria da infância e adolescência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Diagnóstico positivo: Pedofilia.

Comentários médico legais: Consideramos o examinado portador de Pedofilia, o que corresponde ao conceito jurídico de perturbação de saúde mental de que fala o parágrafo único do artigo 26 do Código Penal Brasileiro, correspondendo a semi-imputabilidade. O nexo causal se estabelece por uma redução na capacidade de determinação, haja vista que a perversão tem um caráter compulsivo e impulsivo (BRASIL, 2005, s.p.).

Por outro lado, nos autos da Apelação Criminal n° 481635.3/8-0000-000, da Nona Câmara Criminal cuja relatoria coube ao Desembargador Roberto Midolla, em acórdão de 08 de março de 2006, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o entendimento foi inverso.

O laudo pericial concluiu que o apelante era capaz de entender o caráter criminoso, mas sua determinação é marcada pela compulsão doentia de atividade sexual com crianças, ou seja, a pedofilia. Ocorre que isso não o beneficia, nos termos do art. 26 do Código Penal. Tentou dissimular a sua conduta perante o Juízo, mas contou com detalhes no inquérito (fls. 23, do segundo apenso). Em razão disso, a absolvição pretendida, com medida de segurança, não merece acolhimento (SÃO PAULO, 2006, s.p.).

Conforme se pôde perceber dos julgamentos supra transcritos, há divergências de aplicações dentre os casos concretos. O primeiro dos casos, julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, reconhece a semi-imputabilidade do acusado após a realização de extenso laudo pericial que concluiu que o réu não possuía doença mental, que o considerasse inimputável penalmente. Na circunstância, entretanto, entendeu-se ser ele portador do transtorno de comportamento pedofílico. Por sua vez, no que tange ao segundo caso posto em exame, percebe-se que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo sequer considerou o transtorno pedofílico alegado no feito passível da benesse de diminuição de pena, mantendo a condenação inicial ao acusado.

Pontuam Castro e Bulawski (2013, p. 21) que é notória a dificuldade de tratamento curativo do pedófilo. Mesmo que se busque em casos concretos a declaração de inimputabilidade do agente pedofílico devido aos transtornos que o afetam, é interessante destacar a dificuldade encontrada pelos profissionais que buscam a melhora clínica de tais pessoas. Isso porque, em geral, pedófilos não sentem remorso nem culpa pela prática de seus atos, imputando, inclusive, a autoria destes à sedução desenvolvida pela criança.

Aliás, por não sentir qualquer perturbação emocional no seu agir, o agente pedofílico, como os parafílicos de um modo geral, não possui qualquer espécie de motivação para mudar seu comportamento. Tampouco o agente pedofílico procurará por um tratamento psicológico, exceto se seu comportamento trouxer problemas que se tornem visíveis para a família ou a sociedade. Nos casos mais comuns de busca por tratamento, geralmente se dará, se houver dificuldades perante a justiça, o que significa mais uma tentativa de se autoproteger, do que um verdadeiro interesse em receber ajuda ou tratamento. Mascarados pela busca de ajuda ou de tratamento, o que realmente desejam é evitar a ação da justiça e alcançar benefícios secundários para prosseguirem na trajetória do abuso sem serem incomodados.

Após os muitos posicionamentos diversos sobre a imputabilidade ou inimputabilidade do pedófilo, pode-se fazer menção de uma expressão muito usada quando há visões distintas sobre o mesmo tema. Trata-se da expressão A Espada de Dâmocles originada de uma antiga parábola moral, popularizada pelo filósofo romano Cícero, em seu livro, Tusculan Disputationes, escrito no ano 45 a.C. A versão de Cícero fala sobre Dionísio II, um rei tirânico que governava a cidade siciliana de Siracusa durante os séculos IV e V a.C.  Embora fosse rico e poderoso, Dionísio era extremamente infeliz.

Ele governava com mão de ferro e havia feito muitos inimigos, vivendo atormentado pelo medo de ser assassinado. O pavor do rei era tão intenso a ponto de ele dormir em um quarto cercado por um fosso e só confiar em suas filhas para raspar-lhe a barba com uma navalha. Dâmocles era um cortesão bastante bajulador na corte de Dionísio. Ele dizia que, como um grande homem de poder e autoridade, Dionísio era verdadeiramente afortunado. Dionísio ofereceu-se para trocar de lugar com ele por um dia, para que ele pudesse sentir o gosto de toda esta sorte, sendo servido em ouro e prata, atendido por rapazes de extraordinária beleza e servido com as melhores comidas.

No meio de todo o luxo, Dionísio ordenou que uma espada fosse pendurada sobre a cabeça de Dâmocles, presa apenas por um fio de rabo de cavalo. Dâmocles não podia acreditar na própria sorte, mas assim que ele estava começando a desfrutar da vida de um rei, ele notou a espada afiada, pendurada no teto. Desse momento em diante, Dâmocles perdeu o interesse pela excelente comida e pelos belos rapazes. Ele abdicou do seu posto, dizendo que não queria mais ser tão afortunado. Para Cícero, o conto de Dionísio e Dâmocles representava a ideia de que quem está no poder, vive sempre sob o espectro da ansiedade e da morte, e que “não pode haver felicidade para aquele que está sob apreensões constantes”.

A parábola mais tarde se tornou um tema comum na literatura medieval e o termo "Espada de Dâmocles" agora é usado para descrever um perigo iminente. Da mesma forma, a expressão “por um fio” tornou-se um sinônimo para uma situação preocupante ou precária. Laurent (2013, p. 42) usa a expressão “Espada de Dâmocles: A Opinião Pública Securitária”. A referência se dá pela observação do que está em jogo nos processos envolvendo presos com distúrbios psicológicos. Tudo se passa entre os juízes de execução penal e a perícia psiquiátrica. A perícia obriga os juízes a serem responsáveis pela saída dos detentos perigosos, ainda que ela não seja conclusiva sobre a loucura ou a necessidade de cuidados; entretanto, evoca diversos problemas de personalidade.

A escolha de privilegiar a perícia contra a psiquiatra não é percebida como inocente. O perito não trata. O psiquiatra acompanha pacientes durante anos, hospitalizados ou não. Dessa vez, um perito visava claramente a uma psiquiatra. Por meio disso, “cada psiquiatra sente, de agora em diante, uma espada de Dâmocles sobre sua cabeça”. Essa espada é de outra natureza que a da justiça: é a espada da opinião pública em defesa da segurança em primeiro lugar. Depois de ter compelido os juízes a romper um pacto com a psiquiatria, ela poderia dispensar os juízes.

Nos EUA, as leis do Estado da Virgínia, para avaliar os riscos de reincidência, dispensam os juízes. Uma cláusula os obriga a manter em detenção os delinquentes sexuais quando estes recebem, em uma escala de avaliação da reincidência, um escore maior que 4, determinado por uma comissão estritamente administrativa. Como se vê, há ainda muita discussão sobre a inimputabilidade do pedófilo, e por questões sociais, o judiciário ainda prefere a pena à medida de segurança, por entender que é a solução que a sociedade espera, resumindo-se à pena do encarceramento, não se preocupando com o tratamento.

 

DO INJUSTO PENAL: UMA ANÁLISE DO ARTIGO 217-A

Toda e qualquer pessoa, em determinadas situações ou circunstâncias da vida será, um dia, mais, ou menos vulnerável. Mas não é dessa vulnerabilidade eventual, puramente circunstancial, que o dispositivo penal do art. 217-A do Código Penal trata. Observadas as hipóteses caracterizadoras da condição de vulnerabilidade, concluir-se-á, sem maiores dificuldades, que o legislador optou por incluir, nessa classificação, pessoas que são absolutamente inimputáveis, embora não todas, quais sejam, menor de quatorze anos, ou alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.            

Ao analisar o art. 217-A do CP, observar-se-á uma divisão em dois tipos de prática delituosa em um mesmo artigo. Enfatiza Bittencourt (2012, p. 119) esta divisão, referindo-se aos verbos utilizados no texto da lei, sendo o primeiro o verbo ter:

a) Ter conjunção carnal com menor de quatorze anos. Ter (isto é, manter, praticar, copular) conjunção carnal com menor é uma redação abrangente (a exemplo de “com alguém”), isto é, mais aberta, o que possibilita, em tese, que menor do sexo masculino também possa ser sujeito passivo desse crime. Contudo, embora tenhamos dificuldade em admitir no crime de estupro, que se caracteriza pela posse sexual violenta, que o homem possa ser sujeito passivo do constrangimento à conjunção carnal por mulher, admitimos essa possibilidade, nesta infração penal, exatamente pela ausência de violência real (BITTENCOURT, 2012, p. 119).

Na segunda parte do art. 217-A do CP, faz-se menção de outro verbo, qual seja: praticar.

b) Praticar outro ato libidinoso com alguém. A segunda conduta tipificada consiste em o agente (homem ou mulher) praticar outro ato libidinoso com menor de quatorze anos (sexo masculino ou feminino), indistintamente. Nessa hipótese, o sujeito ativo pratica (executa, realiza, exercita) com a vítima (masculina ou feminina), incapaz de consentir, na ótica estrita do texto legal, ato libidinoso diverso de conjunção carnal (BITTENCOURT, 2012, p. 119).

Esse alguém também é o menor de quatorze anos ou com alguém que, “por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência” (BRASIL, 1940). Como já analisado anteriormente sobre os sujeitos do crime, a mulher pode ser sujeito ativo do crime de estupro de vulnerável, tendo como vítima, menor, tanto do sexo masculino quanto feminino. Observa-se que o artigo traz em seu preceito secundário a mesma pena, tanto para quem tem conjunção carnal, quanto para quem pratica atos libidinosos diversos, qual seja: Pena — reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos (BRASIL, 1940).

Antes do advento da Lei nº 12.015/09, havia dois delitos distintos: o de estupro, previsto no art. 213, e o de atentado violento ao pudor, previsto no art. 214, ambos do Código Penal. Em ambos os tipos penais, o meio de execução era a violência ou grave ameaça. Entretanto, quando praticados contra menores de 14 (quatorze) anos, pessoas alienadas ou débeis mentais ou por quem não podia oferecer resistência, dizia-se presunção de violência, isto é, ainda que o agente não utilizasse de violência real em face da vítima, presumia-se a sua existência em razão da idade dela. Esse termo presunção levava a inevitáveis questionamentos, como por exemplo: Houve o consentimento da vítima? A vítima vivia em situação de prostituição? Havia relação de namoro entre autor e vítima?

Com a implantação da Lei 12.015/09, toda discussão nesse sentido caiu por terra, pois o critério, agora, é objetivo, qual seja: idade. Não havendo mais que se falar em presunções subjetivas. Através da atual redação, se a vítima for menor de 14 (quatorze) anos, independentemente de gênero, seja ele masculino ou feminino, ocorrerá o crime, pouco importando o histórico sexual da vítima. Após muitos debates, no âmbito do STJ, a questão foi até mesmo submetida ao rito dos recursos repetitivos - Tema 918 - no curso do julgamento do REsp 1.480.881/PI. Nesse precedente, a Terceira Seção, na data de 26/08/15, deu provimento ao Recurso Especial representativo da controvérsia, para assentar a tese seguinte:

Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime (BRASIL, 2015, s.p.).

Cumpre ressaltar que a tese firmada pela Terceira Seção do STJ vai ao encontro do posicionamento consagrado pelo STF nessa matéria, reafirmando o caráter absoluto da presunção de violência nos crimes praticados contra a liberdade sexual de vítima menor de 14 anos. A jurisprudência dos Tribunais Superiores, devidamente pacificada, cumpre o papel de zelar pelo respeito à integridade das crianças e adolescentes. Conclui-se que, de acordo com a orientação jurisprudencial pacificada no STJ e no STF, o tipo penal “estupro de vulnerável” estatuído no artigo 217-A do CP, não se admite qualquer possibilidade de flexibilização ou de prova contrária à presunção absoluta de violência praticada pelo agente contra a vítima menor de 14 anos nos delitos de natureza sexual. Como se vê, os Tribunais Superiores fecharam a tese de que, no caso de vulnerabilidade em razão da idade, ou seja, menor de 14 (quatorze) anos, pouco importa a experiência, se eram namorados, se havia consentimento, ou se havia vasta experiência sexual da vítima, a vulnerabilidade em razão da idade é considerada absoluta.

No tocante à pena do ato libidinoso, deve-se ressaltar que se trata de nítido injusto penal. Não porque não seja crime, mas por não haver escalonamento dos atos, ou seja, não é levado em conta as consequências de cada caso concreto. Embora sejam repugnantes toques lascivos por fora da roupa e beijos lascivos, é absolutamente desproporcional punir essas condutas com pena mínima de 8 anos na hipótese de estupro de vulnerável. Braga (2016, s.p.) descreve o precedente da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que entendeu pela desnecessidade do contato físico para a configuração dos delitos previstos nos artigos 213 e 217-A do Código Penal, constando no voto condutor, o seguinte teor:

A maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos artigos 213 e 217-A do Código Penal, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido (BRASIL, 2016, s.p.).

A discussão acerca do entendimento firmado no mencionado caso, provoca interessante discussão jurídica sobre os limites interpretativos dos delitos de estupro e de estupro de vulnerável. De fato, os Tribunais pátrios têm oscilado bastante ao definir a elementar normativa “ato libidinoso”, constante nos dois mencionados delitos. Quando da reforma operada pela Lei nº 12.015/2009, o legislador equiparou o ato ou permita que se pratique ato libidinoso à conjunção carnal, formando apenas um delito, o estupro, previsto no art. 213 do CP. No mesmo sentido, o indivíduo que, mesmo sem violência real ou grave ameaça, mantenha conjunção carnal, pratique ato libidinoso contra criança ou adolescente, menor de 14 anos, responde, hodiernamente, pelo crime de estupro de vulnerável, prevista no art. 217-A do CP.

Essa circunstância não implica, contudo, que todo e qualquer ato libidinoso possa ser punido com pena de reclusão mínima de 8 (oito) anos. De acordo com Braga (2016, s.p.), na década de 80 do século passado, há mais de 35 anos, Nelson Hungria (1980, p. 124) interpretava ato libidinoso como “todo aquele que se apresenta como desafogo (completo ou incompleto) à concupiscência. Como elemento constitutivo do atentado violento ao pudor”, o mesmo autor também admitia que “há uma gradação de obscenidade”. O saudoso Ministro do Supremo Tribunal Federal enfatizava, àquela época, que, por exemplo, o beijo simples e a contemplação da nudez da vítima não tinham o condão de configurar o crime de atentado violento ao pudor, punido, até então, com pena mínima de 2 (dois) anos.

Já para a atual realidade da criminalização dos delitos sexuais é bastante diferente. Hoje, a prática de ato libidinoso pode acarretar em pena privativa de liberdade mínima de até 8 (oito) anos. Por isso, a necessidade de estabelecer parâmetros objetivos de lesividade da liberdade e da dignidade sexual, para a definição do que significa a elementar “ato libidinoso”. Seria de suma importância a existência de um parâmetro segundo o qual, apenas aquelas condutas que ofendam o bem jurídico com lesividade assemelhada à conjunção carnal pudessem configurar o crime de estupro.       Desde a mudança trazida pela Lei 12.015/09, versando sobre as penas dos crimes sexuais, as condutas consideradas estupro vêm dividindo os tribunais em suas decisões:

A mudança, na época, foi apontada como um avanço por punir mais adequadamente os agressores, mas os tribunais em todo o país têm desclassificado o crime para contravenção penal punida, na prática, com multa e serviços comunitários, quando a conduta for de menor potencial ofensivo (JUS CORREGE, 2017, p. 34).

A alegação exige simples raciocínio, pois que a pena prevista para o estupro de vulnerável é de oito a quinze anos e de seis a dez anos, para punir atos menos graves, sem maior lesividade para a vítima. Em boa parte do mundo, existe um critério mínimo para diferenciar o grau de lesividade das condutas, pois na maioria dos Códigos Penais há a distinção entre as formas de agressão da dignidade sexual. Se houver uma comparação com leis penais de outros países. Sobre esse direito comparado, Braga (2016, s.p.) faz menção da pena para “atos libidinosos” em outros países, citando os Códigos Penais de países da Europa, como Alemanha, Itália, Portugal e Espanha.

Na Alemanha, o Código Penal prevê o crime de abuso grave de criança, previsto no § 176a e punido com pena mínima não inferior a um ano, quando, entre outras condutas, “uma pessoa maior de 18 anos consume ato carnal com criança, ou execute ações sexuais parecidas, ou deixe com ela deixe praticar ações parecidas com o ato carnal, que estejam associadas com uma penetração no corpo”.

Na Itália, o abuso contra criança é punido, no art. 609 bis do Código Penal, com a pena de cinco a dez anos de reclusão, contudo, há a redução em dois terços da pena, caso a lesão à vítima não seja grave. Em Portugal, o art. 172º do Código Penal estabelece que “quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos”. Na Espanha, o art. 181 do Código Penal estabelece que “aquele que sem violência ou intimidação realize atos que atentem contra a liberdade sexual de outra pessoa, será castigado com pena de doze a vinte quatro meses” (BRAGA, 2016, s.p.).

A ausência de previsão legal, no Brasil, de um delito intermediário entre a figura prevista no art. 65 da Lei de Contravenções Penais e o art. 217-A do CP não pode ser interpretada em desfavor do réu. Inevitavelmente, no atual contexto, por ato libidinoso apenas pode se entender a conduta que ofenda o bem jurídico dignidade sexual em proporção semelhante à conjunção carnal. Conforme assinala Braga (2016, s.p.), de fato, pode se dizer que falta no ordenamento jurídico brasileiro uma norma específica para acobertar a situações como toques lascivos por fora da roupa, ou de outras condutas que ofendam os bens jurídicos dignidade ou liberdade sexual com gravidade bem menor do que a conjunção carnal.

Não por acaso, tramita, perante a Câmara dos Deputados, emenda aditiva ao Projeto de Lei nº 5.452/2016, de Relatoria do Deputado Federal Fábio Ramalho, em que se propõe a instituição de “causa especial de diminuição de pena nos casos de ato libidinoso diverso de conjunção carnal de menor gravidade”. (BRASIL, 2016). A emenda aditiva se justifica, segundo a exposição de motivos, em razão da necessidade de se punir de forma proporcional e razoável condutas específicas, o que daria mais liberdade para o julgador, ao analisar o caso concreto, possibilitando, por exemplo, a substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direito.

Não se nega a reprovação na conduta do agente, que se põe a contemplar menor de 14 anos, para fins de satisfação da libido, porém, não se pode dizer que essa ação tem a lesividade necessária para configurar o crime previsto no art. 217-A do CP. O que se busca, portanto, é que haja razoabilidade e proporcionalidade no tipo penal secundário referente ao ato libidinoso diverso da conjunção carnal, pois de outra forma, haverá continuidade em decisões contraditórias, e, pior, o risco de injustas condenações por excesso de zelo pelos juristas legalistas.

 

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se desta forma, que a prática de agressão sexual vem sendo relatada desde os primórdios das mais diversas formas, o presente trabalho buscou analisar e demonstrar as diversas acepções de vulnerável e até mesmo salientar os aspectos legais conceituais de estupro, percebendo a dignidade da vítima. A sociedade está em constante transformação, bem como os seus valores o que torna o Direito mutável. Consequentemente, casos que relacionam a vulneráveis, abarcados pelos menores de 14 anos exigem maior respaldo por parte do julgador, porque enfrentam vários outros agentes sociais no caso concreto levados a tutela jurisdicional. O legislador então se preocupou em abster-se das circunstâncias fáticas, e adotando o simples meio de corroboração pela materialidade do ato sexual, buscando a necessidade de proteção ao menor incapaz. Esta proteção encontra amparo constitucional, com proteção integral no sistema democrático de direito, os direitos humanos de seres vulneráveis estão garantidos o pleno desenvolvimento físico, mental, social e sexual.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto-Lei Nº. 2.848, de 07 de Dezembro de 1940. Código Penal.  Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. Disponível em: . Acesso em: 21 mar. 2018.

______. Lei 7.960 de 21 de dezembro de 1989. Dispõe sobre prisão temporária. Disponível em: . Acesso em 21 mar. 2018.

______. Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8072.htm> Acesso em: 26 mai. 2017.

______. Projeto de Lei nº 5.452, de 2016 (Apenso o Projeto de Lei nº 5.798, de 2016). Disponível em Acesso em: 05 set. 2017.

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NOTAS:

[1] ESPAÑA. Ley Orgánica 11/1999, de 30 de abril. Modificación del Título VIII del Libro II del Código Penal, aprobado pela Ley Orgánica 10/1995, de 23 de noviembre. Disponíevel em: . Acesso em 01 ago. 2017.

[2] ANDREUTTI, Ricardo Antônio. Anistia, graça e indulto: diferenças essenciais: Empório do Direito. Publicado em 05 jan. 2017. Disponível em: . Acesso em 31 jul. 2017, s. p. ANISTIA: Deriva do grego amnestía, que significa esquecimento, ou seja, extinguem-se as consequências de um fato que em tese seria punível. É atribuição do Congresso Nacional, por meio de lei federal, a concessão da anistia. Todos os efeitos de natureza penal deixam de existir. É causa extintiva da punibilidade do agente. GRAÇA: É a concessão de “perdão” pelo Presidente da República por meio de decreto. Trata-se de uma espécie de perdão estatal. É causa extintiva da punibilidade. É correto afirmar que a graça é o indulto individual. INDULTO: Também é concedido pelo Presidente da República por meio de decreto. É coletivo, pois possui um caráter de generalidade, ou seja, abrange várias pessoas.

Data da conclusão/última revisão: 25/3/2018

 

Como citar o texto:

COTTINI, Alexsandro Sartoni; TEIXEIRA, Sangella Furtado; FERREIRA, Oswaldo M; RANGEL, Tauã Lima Verdan..Estupro de vulnerável e as parafilias: uma análise do art. 217-A. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 29, nº 1519. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/3979/estupro-vulneravel-as-parafilias-analise-art-217-a. Acesso em 5 abr. 2018.

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