RESUMO

Este artigo tem por objetivo identificar a ocorrência da transição dos direitos adquiridos pelos transexuais antes da cirurgia de sexo. Uma vez que essas pessoas não se identificam com seu gênero biológico e façam a cirurgia de mudança de sexo não se sabe ao certo se os direitos inerentes à condição biológica da pessoa persistem mesmo após essa cirurgia, caindo em uma lacuna. Essa lacuna omissiva no ordenamento jurídico é a razão pela qual essa pesquisa se dá abrindo espaço para vários debates jurídicos. Com essa ideia em mente, busca-se saber os limites do direito adquirido, com seu caráter absoluto, passando pelo princípio da dignidade da pessoa humana como um caminho para chegar a uma conclusão. Dispõe-se de uma pesquisa bibliográfica, em virtude de se tratar de princípios e instrumentos adotados pelo ordenamento jurídico vigente, onde grandes juristas de notório saber jurídico passaram pelos temas abordados. O método dialético-argumentativo sendo utilizado para abarcar, dentro da realidade social, as pertinentes contradições passíveis de argumentação.

Palavras-chave: Transexual; Direito adquirido; Constitucional; Dignidade humana; Transição.

ABSTRACT

This article aims to identify the occurrence of the transition of rights acquired by transsexual prior to the sex surgery. Since these people do not identify with their biological gender and undergo sex-change surgery it is not known for sure if the rights inherent to the person’s biological condition persist even after the surgery, falling into a gap. This omissive gap in the legal system is the reason why this research gives way to several legal debates. With this idea in mind, one seeks to know the limits of the acquired right, with its absolute character, going through the principle of the dignity of the human person as a way to reach a conclusion. A bibliographical research is available due to the fact that these are principles and instruments adopted by the current legal system, where great jurists of well-known juridical knowledge went through the topics covered. The dialectical-argumentative method is used to encompass, within social reality, the relevant contradictions that can be argued.

Keywords: Transsexual; Acquired right; Constitutional; Human dignity; Transition.

 

INTRODUÇÃO

O transexual é uma pessoa que não se identifica com o gênero atribuído a si no nascimento, sentindo como se estivesse ocupando um corpo físico divergente do seu. Sente-se como uma pessoa do sexo oposto ao que possui, negando as características do seu sexo físico.

Com o advento de novas tecnologias no âmbito da medicina o transexual pode fazer uma cirurgia que alterará seu sexo para o que sente mais confortável. Discutiu-se muito acerca dos direitos dos homossexuais, deixando uma lacuna existente nas pessoas que alteraram seu sexo de origem, acerca da transição dos direitos adquiridos durante o tempo em que a pessoa era de um gênero e passou a ser de outro gênero.

Assim sendo, quando qualquer cidadão fizer a cirurgia de mudança de sexo é certo que sua realidade mudará. Diante disso é importante firmar que o Direito é uma ciência social que ao sinal de qualquer mudança de realidade deverá se adaptar. A celeridade nos avanços tecnológicos é a principal causa de muitas discussões em meios jurídicos, como bem sabemos, o ordenamento jurídico brasileiro é cheio de lacunas devido a essa mudança brusca que a tecnologia é capaz de fazer na sociedade.

Visando chegar a uma resposta para a lacuna entre os limites dos direitos adquiridos e a transição dos direitos dos transexuais se faz necessário buscarmos nos princípios que regem a Constituição da República Federativa do Brasil, em especial ao princípio da dignidade da pessoa humana. Tal princípio é o principal alicerce da Carta Magna de 1988 sendo amplamente discutido e podendo nos levar a uma resposta sobre a equidade entre os direitos individuais. Por outro lado, temos que os direitos adquiridos são absolutos podendo retroagir quando ocorre a mudança de legislação, mas o caráter absoluto desses direitos pode ser variável, já que depende do livre exercício desses mesmos direitos. Nesse intuito, é necessário avaliar várias ponderações a respeito de dignidade da pessoa humana em conjunto com os direitos adquiridos de forma a não ofender a integridade dos transexuais e seus direitos.

 

1. CONSIDERAÇÕES TERMINOLÓGICAS SOBRE SEXO E GÊNERO

Considerando a perspectiva constitucional adotada no ordenamento jurídico brasileiro que insere como uma de suas principais características o Estado Democrático de Direito e a garantia aos bens fundamentais, notadamente às conquistas de direitos básicos como saúde, liberdade e principalmente, a vida.

A princípio, para a compreensão do tema, faz-se necessário distinguir sexo e gênero. Yuval Noah Harari diz que:

[...] os estudiosos costumam distinguir “sexo”, que é uma categoria biológica e “gênero”, que é uma categoria cultural. O sexo se divide em masculino e feminino, e as caraterísticas dessa divisão são objetivos e permaneceram constantes ao longo da história. O gênero se divide em homem e mulher (e algumas culturas reconhecem outras categorias)”. (HARARI, 2017, p. 157)

O termo transexual está inserido na divisão de gênero, uma vez que não representa biologicamente o indivíduo O transexual é uma pessoa que não se identifica com seu sexo, como se sua natureza biológica fosse divergente de sua mentalidade, tendo uma identidade sexual psicológica diferente. Identidade sexual relativa à característica de não se sentir como uma pessoa de seu sexo, negando-o.

A ascensão dos direitos sociais e a ampliação das tecnologias usadas possibilitaram às pessoas que não se sentem confortáveis com sexo biológico a optarem por trocar de sexo. Muitos procedimentos burocráticos são necessários para que a pessoa possa mudar de sexo. Assim, os direitos dos transexuais foram amplamente debatidos quando o Brasil começou a realizar as cirurgias para mudança de sexo, sendo omisso nesses debates acerca da transição dos direitos dos transexuais e sendo omissa qualquer lei que poderia tratar acerca do assunto, afinal, as leis específicas existentes tratam de homens ou de mulheres.

O Conselho Federal de Medicina na sua resolução 1.652/2002 relata que o transexual é “portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou autoextermínio”.  Sendo uma condição do transexual o caráter permanente do desvio psicológico não demonstrando um caráter passageiro, com isso o art. 3° da mesma resolução estabelece os seguintes critérios para a visualização do caráter permanente:

Art. 3° Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados: 1) Desconforto com o sexo anatômico; 2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; 3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente, por no mínimo, 2 anos; 4) Ausência de outros transtornos mentais”. (Resolução do Conselho Federal de Medicina n° 1652/2002, art. 3°).

Pode-se ver a existência de normas reguladoras que caracterizam o transexual. Apesar de o termo “transexualismo” ser adotado em virtude do caráter de distúrbio, não se pode a bel prazer adotar essa forma de designação, uma vez que o termo pode gerar críticas acerca da própria comunidade, e ainda, como o Estado Democrático de Direito adota a garantia de liberdades individuais, não se pode aferir tal termo em virtude de ser passível a exclusão dessa minoria dentro da própria sociedade. Apesar de amplamente difundido pela medicina, o Direito, contudo, cuida do caráter social de forma a não colaborar com a marginalização e exclusão de minorias, como os Direitos Humanos pregam desde 1948.

Tendo em vista que o Direito precisa acompanhar as diversas mudanças sociais ocorridas ao longo da história, o Direito tem por obrigação a função de harmonizar o princípio da dignidade da pessoa humana com a garantia de liberdades individuais. Em virtude disso, é necessário buscar nos princípios e outras fontes do Direito, meios legais que façam exercitar a tutela e as garantias conquistadas por esse grupo minoritário.

Uma vez que os transexuais não se identificam com seu gênero biológico e façam a cirurgia de mudança de sexo não se sabe se os direitos inerentes à condição biológica da pessoa persistem após a cirurgia, caindo em uma lacuna.

 

2. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SEUS REFLEXOS

Se por um lado temos as lacunas deixadas pelo avanço social e tecnológico, por outro temos as fontes formais do Direito. Para tal, os princípios são de extrema importância tendo em vista sanar a omissão e iluminar as obscuridades existentes no ordenamento jurídico, dentre os quais o princípio da dignidade da pessoa humana que está intimamente ligada ao alicerce da Constituição Federal, sendo assim de grande estima para o problema apontado.

A dignidade da pessoa humana é um princípio jurídico social, Celso Antonio Bandeira de Mello reforça a ideia que princípio é:

por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espirito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. (MELLO, 2015, p. 986-987)

Sendo assim, os princípios são necessários para a compreensão do sistema jurídico ao todo, e não apenas por parte. Afinal, o Direito é uno, mesmo que dividido em matérias, e não se trata apenas do sistema positivado, se trata de chancelar a sociedade, transformá-la através da humanização.

Como fundamento jurídico, os princípios vêm sendo cada vez mais usados, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana. A construção do caráter de humanização das pessoas vem sendo feita com o valor dado a este princípio. Tal princípio se destaca por dar valor à norma jurídica e constrói também, a noção acerca da justiça. Antes, não tínhamos sequer uma noção do que seria justiça, mas com o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos os conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade ficaram mais intrínsecos no mundo, mesmo que ainda distante da realidade de muitos lugares. O conceito de dignidade da pessoa humana que mais se encaixa na perspectiva adotada do ordenamento jurídico atual seria o de Sarlet:

(...) temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano o que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres vivos. (SARLET, 2008, p. 30)

A Constituição Federal aderiu efetivamente em seu ordenamento jurídico a dignidade da pessoa humana como parte fundamental da República Federativa do Brasil. Podemos entender pela interpretação de Sarlet que a qualidade de “ser humano” o faz merecedor de direitos e deveres que assegurem o indivíduo contra qualquer ato degradante por parte do Estado ou da comunidade, então, podemos inquerir que os transexuais precisam ter condições mínimas de existência e não podem sofrer qualquer abuso por parte do Estado.

A dignidade da pessoa humana, contudo, seria considerado um superprincípio, afinal, é usado internacionalmente e o valor dado a isso na Declaração Universal dos Direitos Humanos é máximo, luta-se para que todos os direitos elencados nessa carta sejam cumpridos. Nessa vertente Flávia Piovesan destaca:

É no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. Consagra-se, assim, a dignidade humana como verdadeiro superprincípio a orientar o Direito Internacional e Interno”. (PIOVESAN, 2005, p.41)

Um princípio máximo como é, a dignidade não só alavancou as grandes mudanças, em especial na questão dos direitos fundamentais inerentes ao ser humano. Ainda, destaca-se o caráter internacional dado ao princípio, visando a união de povos e culturas diferentes frente ao desenvolvimento social e tecnológico. Frente a essa união é necessário explicitar que os direitos adquiridos dos transexuais não passam a ser meramente direitos individuais, mas direitos exclusivos inerentes a essa minoria. No caso de uma mulher que, cumprindo todos os requisitos para alterar seu gênero, decide alterar seu gênero para homem e imediatamente é demitido por justa causa pelo seu empregador com a fundamentação de que o emprego pelo qual estava sendo contratado era atividade exclusivamente de mulheres. Certamente o princípio da dignidade irá amparar esse indivíduo, uma vez que dependia financeiramente desse emprego e que o ordenamento jurídico se centra nos princípios para a criação da justiça.

Immanuel Kant já destacava em sua época:

No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade. O direito à vida, à honra, à integridade física, à integridade psíquica, à privacidade, dentre outros, são essencialmente tais, pois, sem eles, não se concretiza dignidade humana. A cada pessoa não é conferido o poder de dispô-los, sob pena de reduzir sua condição humana, todas as pessoas devem abster-se de violá-los”. (KANT, 1986, p. 77)

Então, pode-se entender que a dignidade humana já estava sendo construído a mais tempo do que realmente se concretizou. Entende-se que o valor da dignidade é algo imensurável, e que esse direito é único à condição humana. Durante muito tempo minorias lutaram contra o abuso do direito por àqueles que perpetravam injustiças arbitrárias.

Ao longo do tempo, diversos grupos éticos e sociais adquiriram maior liberdade e abrangência sobre o exercício de sua sexualidade, entretanto, houve uma grande resistência social com relação à homossexualidade e à transexualidade. Num meio social onde existem inúmeros grupos sociais divergentes e desafiadores às noções de normalidade perpetuada pela sociedade, não há espaço para a discriminação de grupos menores. A Constituição Federal visando evidenciar a sua preocupação com o cidadão traz a definição de dignidade da pessoa humana em seu art. 1°:

A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 1°, III)

A Constituinte de 1988 deixa explícita sua preocupação com a defesa da vida, evidencia-se que a dignidade da pessoa humana exposta pela Constituição defende as pessoas de quaisquer danos físicos e psicológicos, mas ao mesmo tempo abre brecha para que possam ser feitas limitações aos direitos fundamentais, assim limitam-se direitos para que não ocorra o abuso de direitos de forma a prejudicar os outros ao redor. Afinal, nos Estados Unidos da América a brecha deixada pela primeira emenda, que versa sobre a liberdade de expressão, da causa para que as pessoas abusem desse direito para ofender outras pessoas, isso de um lado amplia a liberdade dada para cada indivíduo, mas ao mesmo tempo cria injustiças sob a faceta de agir de acordo com a lei.

Maria Berenice Dias afirma que a dignidade humana é o principal componente que norteia não só a Constituição Federal como todo o ordenamento jurídico brasileiro, sendo dela que se emana todas as liberdades individuais:

A regra maior da Constituição Pátria é o respeito à dignidade humana verdadeira pedra de toque de todo o sistema jurídico nacional. Este valor implica adotar os princípios da igualdade e isonomia da potencialidade transformadora na configuração de todas as relações jurídicas, sendo que qualquer discriminação baseada na orientação sexual é um desrespeito à dignidade da pessoa humana e infringe regra expressa da Constituição Federal que garante a inviolabilidade da intimidade e da vida privada. (DIAS, 2007, p. 71-72)

É importante mencionar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275, onde se decidiu que pessoas transgêneros podem alterar o nome no registro civil sem que passem pela cirurgia, pelos princípios da autodeterminação e da dignidade da pessoa humana. No caso, o ministro e relator Marco Aurélio votou defendendo a “vivência desimpedida do autodescobrimento, condição de plenitude do ser humano” (MELLO, 2018, p. 8) e ainda considerou:

dever do Poder Público, no Estado Democrático de Direito, promover a convivência pacífica com o outro, na seara do pluralismo sem admitir crivo da maioria sobre escolhas exclusivamente morais, sobretudo quando decorrem de inafastáveis circunstâncias próprias à constituição somática da pessoa. (MELLO, 2018, p. 8)

Assim, o relator e ministro Marco Aurélio Mello decidiu que, sobre o princípio da dignidade da pessoa humana é dever do Estado, promovendo assim a convivência pacífica entre as várias estratificações da sociedade. Ainda defendeu o princípio da autodeterminação que nada mais é a garantia do direito de escolha próprio, o direito de o indivíduo determinar suas próprias escolhas.

Marco Aurélio Schweizer considera “A dignidade da pessoa humana consiste em ter o ser humano garantido pela sociedade o tratamento que atenda às mesmas necessidades físicas e psicológicas de seu semelhante à mesma época e lugar” (SCHWEIZER, 2007, p. 21). Entende-se que o princípio apontado não só deve satisfazer às necessidades físicas, mas também, as psicológicas, isso inclui satisfazer a vontade psicológica das pessoas em se sentirem felizes com o que acreditam ser. Assim, temos por dignidade o bem estar social, físico e psicológico do ser humano imerso dentro da sociedade, sendo não só um direito fundamental e alicerce do ordenamento jurídico como um princípio absoluto internacional.

O direito a dignidade está intimamente ligado à saúde, desse modo para se ter uma vida digna é necessário que o Estado providencie algumas necessidades sociais. Sendo que o direito a saúde está exposto no art. 6° da Constituição Federal de 1988 com um direito social, juntamente com diversos outros. Saúde essa se tratar tanto de um bem estar físico quanto emocional e psíquico, fazendo levar em consideração que a dignidade e a saúde ambas estão presentes para que todos possam satisfazer seus desejos. Sendo a saúde ainda, ligado ao princípio da vida e a consagração desse direito se deu de forma tão tardia.

É espantoso como um bem extraordinariamente relevante à vida humana só agora é elevado à condição de direito fundamental do homem. E há de se informar-se pelo princípio de que o direito igual à vida de todos os seres humanos significa também que, nos casos de doença, cada um tem direito ao tratamento condigno, de acordo com o estado atual da ciência médica, independente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas constitucionais. (SILVA, 2004, p. 307)

Como Silva transcorre que cada um tem direito ao tratamento condigno, não só sob a óptica da ciência, mas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Evidencia-se então pela Constituição Federal de 1988 que a saúde, mesmo que tardiamente no Brasil é um direito que cabe a todos e que como já dito anteriormente, os transexuais sofrem de um distúrbio, pela visão da ciência biológica, mas sob o aspecto cultural e social eles estão apenas cerceados, sendo uma minoria das camadas da sociedade, cabendo a eles os mesmos direitos que a todos.

Acredita-se que o transexual por nunca ter se visualizado naquele gênero correspondente, nunca teve direito àqueles direitos. Engana-se quem acredita nisso, uma vez que, na penumbra dos direitos e para a lei não existe diferenciação entre homens e mulheres. Afinal, a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos bem como o Art. 5° da Constituição Federal instruí na crença de que “Todos são iguais perante a lei, independente de raça, gênero, cor e religião”. Assim, não se pode concluir nada com apenas a perspectiva da dignidade da pessoa humana, mas podemos chegar a outra conclusão: os princípios sozinhos não sanam as dúvidas do ordenamento jurídico, apesar de auxiliarem.

 

3. O DIREITO ADQUIRIDO E SEUS LIMITES

Preliminarmente, o conceito de direito adquirido é amplamente difundido como parte do patrimônio de quem o tem, podendo ser exercido a qualquer tempo. Assim, salienta-se que está dentro do dito patrimônio jurídico do portador e exigível juridicamente, sendo esse instituto atrelado fielmente ao princípio da segurança jurídica. Nesse sentido temos o conceito de direito adquirido por Gabba, exposto por Rubens Limongi França:

É adquirido todo direito que: (a) é consequência de fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo no qual o fato se viu realizado, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova a respeito do mesmo, e que (b) nos termos da lei sob o império da qual se verificou o fato de onde se origina, entrou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu. (GABBA apud LIMONGI FRANÇA, 1982, p. 205)

Ainda Rubens Limongi França diz que o direito adquirido:

É a consequência de uma lei, por via direta ou intermédio de fato idôneo; consequência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência de lei nova sobre o mesmo objeto. (LIMONGI FRANÇA, 1982, p.208).

No caso dos transexuais, os direitos adquiridos na fase pré-operatória constituem patrimônio jurídico de modo que existe a livre iniciativa de se exercitar tais direitos. Cumpre exercitar a prática, a pensão vitalícia para filhas adotada na redação dada pela lei n° 3.765/60, a Medida Provisória 2.215-10 de 2001 manteve o benefício para aqueles que contribuíssem com 1,5% das parcelas adotadas no art. 10 da dita Medida Provisória, entretanto, uma vez que a filha passe pela cirurgia de mudança de sexo, ela poderia perder o benefício já que não se trata mais de uma filha. Mas, por se tratar de um direito adquirido que já estava constituído como patrimônio jurídico, pode-se dizer que ele não será oposto.

O direito adquirido está amplamente ligado à segurança jurídica, por isso, se faz necessário traçar um parâmetro acerca disso, uma vez que a segurança jurídica é algo estritamente ligado ao Estado Democrático de Direito. Silva descreve segurança jurídica como:

(...) conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida. Uma importante condição da segurança jurídica está na relativa certeza que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída. (SILVA, 1999, p. 433)

É importante ressalvar que Silva fala em “relativa certeza”, assim a segurança jurídica não se presume absoluta. Ainda assim, a segurança jurídica deve ser respeitada, uma vez que é a base de uma sociedade justa. Um país onde a segurança jurídica não é certa, as pessoas começam a ter aversão às instituições de poderes do Estado. Somente com a segurança jurídica é possível ter a certeza e trazer confianças a essas instituições. Assim, o direito adquirido tem por dever resguardar a segurança jurídica.

A segurança jurídica está ainda, intrinsecamente ligado ao princípio da legalidade, uma vez que essa ideia surgiu no iluminismo como um meio de proteger as liberdades individuais dos cidadãos. Com isso, temos que a segurança jurídica é importante para a apreciação da transição dos direitos adquiridos dos transexuais, uma vez que visa não só proteger os cidadãos, mas também procura o equilíbrio dos direitos individuais com os interesses da sociedade, em favor do bem comum. Assim, Hely Lopes Meireles sustenta:

(...)do absolutismo individual evoluímos para o relativismo social, ao afirmar que os Estados Democráticos, como o Brasil, inspiram-se nos princípios de liberdade e solidariedade humana, daí porque a necessidade de procurar o equilíbrio entre fruição dos direitos de cada um e os interesses da coletividade, em favor do bem comum. (MEIRELES, 2008, p.137)

Em discordância a isso, tem-se por certo a proteção aos interesses da coletividade, entretanto em concordância ao princípio da dignidade da pessoa humana, não se pode tolerar numa sociedade contemporânea e heterogênea como a nossa, que o direito haja arbitrariamente em favor aos anseios da sociedade. Por essa razão, as minorias, que historicamente foram exploradas e caçadas, devem ser resguardadas pelo direito, promovendo assim uma visão de equidade.

Em atenção aos direitos adquiridos, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) põe na redação do §2°, art. 6° que:

§ 2° Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém que por ele possa exercer, como aqueles do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, §2°, art. 6°)

Como estabelecido por esse parágrafo vemos que uma das condições visíveis é a capacidade de exercer tal direito sob a condição preestabelecida inalterável. Na lei 3.765/60 um dos pré-requisitos para a obtenção da pensão vitalícia é a característica de ser do sexo feminino, sendo essa uma das prerrogativas para exercitar o direito da pensão vitalícia. Mas a lei máxima do nosso país chamada Constituição Federal em seu art. 5°, inc. XXXVI diz que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Desse modo existe um vazio entre a LINDB e a Constituição Federal, sendo a LINDB uma lei, ela não poderia prejudicar o direito adquirido. Mas analisando por outra óptica, na LINDB contém as normas que norteiam o ordenamento jurídico brasileiro. No caso, temos normas com forças iguais, mesmo sendo hierarquicamente diferentes.

O art. 6° da LINDB estabelece: “A lei em vigor tem efeito imediato e geral, respeitados o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Estabeleceu-se, por esse artigo a irretroatividade da lei nova, ou seja, a lei nova não poderá prejudicar o direito adquirido. Pode-se presumir então, que, apenas Emendas Constitucionais limitam o direito adquirido enquanto parte da Constituição Federal vigente. Entretanto, o direito adquirido não pode ser suprimido nem abolido por Emendas Constitucionais, mas pode ser delimitado pela via constitucional. Assim sendo, aparentemente, nenhum julgado de tribunais pode estabelecer a retirada de um direito adquirido. Por essa vertente, podemos entender que o direito adquirido não é limitado pelo Poder Judiciário, mas apenas o Poder Legislativo Federal pode versar sobre a matéria e limitação de um direito adquirido, exceto, se o próprio Legislativo fosse omisso. Como bem se sabe, o Poder Judiciário pode, através de analogia, versar sobre matéria legislativa, em casos de lei omissa quanto à matéria julgada.

Olhando pelo vértice do termo já conceituado, temos que o direito adquirido é disponível, a qualquer momento, para aquele que o porta, mas indisponível para todo o resto. Assim, o Estado não pode interferir no direito adquirido de um indivíduo, por ser algo líquido e certo. Temos que o direito adquirido pode atravessar o vértice da Constituição Federal de forma que, se uma nova Constituição entrasse em vigência, o direito adquirido persistiria como um direito líquido e certo, a menos que a nova Constituição expressamente rejeitasse aquele direito. Entretanto, por se deparar com um aparente conflito de normas, temos que dar por claro que todas as normas do ordenamento jurídico brasileiro devem obrigatoriamente obedecer ao que está previsto na Constituição Federal. Por essa vertente podemos entender que o direito adquirido independe da condição anterior do possuidor, uma vez que estando em seu patrimônio não se sujeita a lei nova. Não obstante, Ivo Dantas leciona:

Já dissemos que um texto constitucional é resultado de um hiato constitucional, vale dizer, de um processo revolucionário. Não se vincula a nenhum preceito jurídico-positivo que lhe seja anterior, muito embora, também nesta hipótese, os valores sociais e o Direito natural funcionem como limitações ao exercício do Poder Constituinte. Por isto, e em consequência, poderia a nova Constituição desconstituir direitos adquiridos tal como aconteceu com a atual Constituição de 1988. Entretanto, neste caso - e já o dissemos -, há um pressuposto de ordem formal: a ressalva do não respeito aos direitos adquiridos com fundamento na Constituição anterior terá que vir expressa, não podendo ser objeto de meras deduções interpretativas. (DANTAS, 1997, p. 58/59)

Estabelecido assim, que o direito adquirido tem a sua ressalva prevista na lei máxima do ordenamento jurídico brasileiro, e no caso, a Constituição Federal não restringiu nenhum direito adquirido até então, apesar de ter delineado os contornos de alguns.

Assim, pressupõe-se que o direito adquirido dos transexuais tem seus limites, mas não está vinculado ao seu gênero e sim às imposições das leis do ordenamento jurídico brasileiro. Sem ressalvas, entretanto com relação a essa lacuna, e com os princípios como fonte principal do ordenamento jurídico vigente, podemos realizar que sem a imposição de leis o direito adquirido ainda não é absoluto, afinal, o absoluto significa soberania e o homem não tem essa soberania dentro da sociedade, sendo o direito, apesar de tudo, relativo. Dentro e de acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, podemos dizer que o direito adquirido não conhece limites, sendo líquido e certo.

 

CONCLUSÃO

Podemos afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana nos mostra que as minorias devem ser protegidas sob a égide do Direito, uma vez que sendo perseguidas e marginalizadas pela sociedade devem ser resguardadas e protegidas pelas leis, buscando a equidade e a justiça.

O transexual, apesar de sua condição ser admitida como doença, de acordo com a resolução do Conselho Federal de Medicina, deve ser visto como uma minoria da sociedade. Os direitos fundamentais fazem crer que as minorias devem ser protegidas e tem seus respectivos direitos como qualquer outro cidadão, devendo ser respeitados e ser dado tratamento digno. Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana deduz que o tratamento igual e garantir oportunidades e direitos a todos de forma a corroborar com o sentimento de humanização global são necessários, dessa forma, pode-se inquirir que a transição dos direitos adquiridos dos transexuais antes e após a mudança de sexo é algo plausível e tem sua causa e fundamentação embasadas principalmente nesse princípio.

Pela definição de equidade, tratar a todos de forma a suprir às necessidades únicas de cada ser humano é estritamente necessário para a compreensão da transição desses direitos. Afinal, se as mulheres, homossexuais, crianças e homens são diferentes biologicamente, os transexuais também têm os direitos e garantias excutidos na Constituição Federal, o dever do Estado de proteger esses indivíduos e garantir a felicidade, dignidade e inserção na comunidade de forma e não gerar discriminação.

Acerca dos direitos adquiridos, pudemos inserir um parâmetro de conceituação de forma que, confirma-se que o direito adquirido não conhece limites enquanto dentro de uma Constituição e de um ordenamento jurídico que não impõe esses limites. Na Constituição Federal do Brasil, pode-se notar que não se impôs nenhuma restrição ao direito adquirido antes da promulgação desta. Claro que as Medidas Provisórias podem estabelecer esses limites, mas não se tem na especificidade atual, nada que limite o direito adquirido dos transexuais. Para as ciências biológicas, eles para todos os efeitos, continuam sendo aquilo que nasceram homens ou mulheres, apenas com um distúrbio mental. Mas, para as ciências sociais a adequação e inserção na sociedade de forma a serem garantidos a própria felicidade, os transexuais são do sexo que optaram ser. Não sendo necessária nenhuma cirurgia para que isso seja prestigiado.

Por fim, conclui-se que os direitos adquiridos dos transexuais de antes para após a cirurgia de mudança de sexo existe através do entendimento dos teóricos apresentados, mas ainda deve existir uma pacificação do assunto pelos tribunais, assim como houve com a partilha de bens para homossexuais em regime de união estável. Provavelmente, essa discussão ainda há de prosseguir em tribunais, afinal, os casos de transexuais ainda são muito isolados e não são tão expostos nem atraem a mídia.

 

REFERÊNCIAS

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______. Decreto-Lei n° 4.657 de  4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Disponível em: . Acesso em 29 abr. de 2018.

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Data da conclusão/última revisão: 14/5/2018

 

Como citar o texto:

MOURA, Mateus Turíbio de; MARQUES, Vinicius Pinheiro..A transição dos direitos adquiridos dos transexuais de antes para após a operação de mudança de sexo. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 29, nº 1531. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/4064/a-transicao-direitos-adquiridos-transexuais-antes-apos-operacao-mudanca-sexo. Acesso em 21 mai. 2018.

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