Resumo: Com o problema do crescimento da criminalidade, não só no Brasil, mas em diversas partes do mundo, é normal que se fique em latência várias discussões pertinentes à medidas de segurança pública. Neste segmento, um dos assuntos mais discutidos é a questão da liberação das armas para a população, permitindo-lhes a proteção individual. É um tema que naturalemente divide as pessoas, e que, por se tratar de segurança, as discussões costumam ser bem calorosas, sendo inclusive motivo de protestos ao longo da história, como se verá neste artigo. Ao contrário do que se imagina, o Brasil possui uma história de longa data com essa matéria, já sendo palco de políticas tanto pró-armamentistas, quando antiarmamentistas, sendo este último o que prevalece nos dias atuais.

Palavras-chaves: Estatuto. Desarmamento. Legitimidade. Eficácia. História.

Abstract: With the problem of the growing crime, not only in Brazil, but in different parts of the world, it is normal to stay in latency several discussions relevant to public security measures. In this segment, one of the most discussed subject is the issue of the release of weapons to the population, allowing them individual protection. It is a theme that naturally divides people, and that, because it is security, the discussions are usually very warm, and it is even a cause for protest throughout history, as will be seen in this article. Contrary to what one imagines, Brazil has a long history with this matter, already being the scene of policies both pro-armaments and anti-armaments, the latter being the one that prevails in the present day.

Keywords: Statute. Disarmament. Legitimacy. Effectiveness. History.

 

Introdução

O presente artigo científico tem por objetivo discorrer sobre um dos assuntos que já se mantém em destaque durante muito tempo na sociedade brasileira. Trata-se do famigerado Estatuto do Desarmamento, que em nosso ordenamento jurídico corresponde a Lei 10.826/2003, que regulamenta a circulação de armas de fogo (e seus acessórios) em todo o território nacional.

Este tema não vem sendo abordado somente aqui no Brasil, mas em diversos lugares do mundo. Hoje é possível encontrar legislações nos sentidos mais variados. Há exemplos de países que adotam desde sistemas de controle rigorosos sobre as armas de fogo (e até outras modalidades), bem como há países que adotam políticas um tanto liberais.

Nesta linha, além de adentrar na situação brasileira, será apresentado adiante países que representam os dois extremos quanto ao tema, e costumeiramente são os mais citados na realização de defesa de um posicionamento, seja favorável ou contrário ao armamento da população.

No Brasil, o tema armamento civil já foi muito discutido, e tem uma grande participação na história desse país.

Como se verá, nesta pátria há políticas dispondo sobre o armamento civil desde o período colonial. Já foram adotadas tanto legislações liberais quanto restritivas. Essas alternâncias ocorriam conforme a sua conveniência, levando em conta o posicionamento de quem estava à frente do governo.

Devido a sua relevância, a abordagem desse tema é de considerável contribuição social, visto que muito é debatido, diga-se de passagem, de forma bastante calorosa, entre pessoas pró e contra o armamento civil. Para tanto, será abordado diversos aspectos sobre o Estatuto do Desarmamento Brasileiro, desde a sua legitimidade, no que se refere a sua aprovação popular, até a sua eficácia no meio social, questionando se de fato as motivações apresentadas para restringir o uso de armas pelos nacionais se justificaram ou não ao longo do tempo.

Por se tratar de um assunto complexo, tanto que até nos dias atuais não há um consenso, por mais longo que seja a matéria, havendo a possibilidade de vários testes empíricos pelo mundo, logo este trabalho não buscará, por óbvio, esgotar o seu conteúdo.

Antes de formar qualquer opinião sobre a Lei 10.826/2003, é de suma importância apresentar os dados reais de sua consequência, positiva ou negativa.

Ante o exposto, ao final deste artigo pretende-se informar, a quem possa interessar, os números reais por trás do desarmamento da população brasileira, com o fito de responder, através de dados objetivos, a seguinte pergunta: A política desarmamentista contribuiu para redução do número de homicídios envolvendo armas de fogo?

1 Exemplos internacionais pertinentes à políticas desarmamentistas

O estudo sobre a relação entre a quantidade de armas e a ocorrência de homicídios pelo mundo segue os mesmos traços observados internamente no Brasil.

Da mesma forma como fora observado discrepâncias entre os efeitos produzidos nos estados brasileiros, há casos de países que adotaram políticas mais restritivas quanto ao acesso às armas de fogo e que possuem atualmente um dos menores números de ocorrências de homicídio com o emprego dessa ferramenta, vide o exemplo do Japão, notoriamente um dos países mais pacíficos do mundo, conforme é noticiado por grandes mídias jornalísticas, como a BBC (Disponível em: <http://www.bbc.com> Acesso em: 21/03/2018). Por outro lado a Venezuela, seguindo a mesma tendência, se apresenta como um dos países mais violentos do globo.

O inverso também ocorre, como no caso da Suíça, que possui uma população altamente armada e figura dentre a lista de países mais seguros. Na contramão, apresenta-se o Iraque, com resultados negativos.

Como se nota, a ocorrência de muitos crimes violentos, incluindo o homicídio, não é predominantemente determinada pelo número de armas nas mãos de civis, e sim por fatores alheios, que devem ser analisados caso a caso, como crise econômica e política do Estado, guerras civis, guerras entre países, etc.

Com efeito, nesse artigo científico serão destacados dois países, justamente os que figuram entre os mais citados para a defesa de qualquer dos pontos de vista: a Inglaterra e os Estados Unidos da América. Dois países que possuem um antepassado em comum, já que esse fora colônia daquela, havendo, portanto, um grande compartilhamento de aspectos culturais, inclusive em relação ao armamento civil, já que, durante o período colonial dos EUA, os ingleses possuíam uma cultura bem conservadora relativa à posse de armas, sendo esta característica compartilhada com os americanos, que ainda a preserva até os dias atuais. Conforme discorre Malcolm:

Até 1920 os povos Inglês e Americano compartilharam um legado semelhante ao da segunda teoria descrita acima: o uso de um público armado para prevenir os crimes violentos. A confiança Inglesa na capacidade das pessoas comuns protegerem suas comunidades e elas mesmas era uma relíquia dos tempos medievais. [...] os Ingleses trouxeram consigo ao Novo Mundo seu hábito de confiar nos civis para a manutenção da paz e o direito destes de possuírem armas. Na verdade, essa prática parecia tão crucial para a sobrevivência dos colonos na vastidão da nova terra que a maioria dos Americanos ainda crê que a tão difundida dependência das armas de fogo foi uma inovação colonial (2014, p. 17).

Todavia, a Inglaterra ao longo do tempo, mais precisamente no século XX, abriu mão dessa característica conservadora do povo inglês em prol do discurso de redução da criminalidade e hoje enfrenta uma legislação bastante rígida neste assunto.

 

1.1 Desarmamento na Inglaterra

Prudente se faz adentrar na parte histórica desse país para se entender a relação entre as armas e os crimes, sobretudo o homicídio, sendo esse o enfoque desse artigo.

Ressalta-se inicialmente que o armamento civil na Inglaterra teve início no século XVI. Outra informação relevante é que a Inglaterra não possuía uma polícia oficial até o XIX, portanto, a segurança da comunidade era garantida pelos próprios cidadãos, os quais (pelo menos na idade média) estavam amparados juridicamente para reagir contra pessoas que atentassem contra a ordem social (MALCOLM, 2014).

Pois bem, durante o período da idade média, a sociedade inglesa, conforme apontam alguns registros históricos, era bastante violenta se comparado com os dias atuais. James Sharp, conforme um grupo de suas amostras, estimou que entre os séculos XIII e XIV o número de homicídios rondava entre 18 à 23 ocorrências por cada 100 mil habitantes. Acrescentou ainda que esse número caiu para cerca de 15 ocorrências para cada 100 mil habitantes no século XVI, e caiu drasticamente durante o século XIX (JAMES SHARP, apud MALCOLM, 2014).

Todavia, esses números apresentados por historiadores, mesmo os mais competentes, não podem ser tidos como precisos, isso devido não só a ausência de dados completos a serem computados, como também pela própria divergência quanto ao conceito de crimes, se comparados aos que existem atualmente. Como por exemplo, na Inglaterra medieval o ato de matar alguém, hodiernamente enquadrado simplesmente como homicídio no Brasil, era divido em três conceitos, a saber, assassinato, homicídio voluntário e homicídio involuntário. O primeiro era tido como a morte de uma pessoa que estava sob a paz do rei, de forma premeditada; O segundo conceito se assemelha ao primeiro, porém, aqui não havia o elemento premeditação; Já o homicídio involuntário assemelha-se com o que entendemos por homicídio culposo, visto não haver o elemento “dolo” na ação (PHILLIPS, apud MALCOLM, 2014).

Acrescendo esse impasse, pesou o fato de ser permitido aos cidadãos comuns matar pessoas que atentavam contra a ordem (criminosos). Essas mortes eram tidas por justificadas. Com o passar do tempo a legislação inglesa, que neste país é construída sobre os costumes (common law), passou a se tornar mais abrangente quanto a justificação de mortes de criminosos, portanto as chances de uma pessoa matar um criminoso e não ter sido interpretada como legítima defesa e, portanto, entrar para as estatísticas de assassinato ou homicídio, eram bem menores (MALCOLM, 2014).

Não bastando as problemáticas mencionadas retro, ainda havia neste período casos de mortes (assassinato/homicídios) que não eram submetidas à corte do rei. Essa isenção era conhecida por “benefício do clero” e consistia na imunidade do clero ao poder real. Mais tarde esse benefício foi estendido ainda para as demais pessoas ligadas a igreja e também aos escriturários (MALCOLM, 2014). Logo, tal feito também tem contribuição para alteração dos dados registrados.

Conforme aponta a historiadora Barbara Hanawalt, a maioria das armas utilizadas no período medieval, nos crimes em que resultavam em mortes, cerca de 73 (setenta e três) por cento eram armas brancas, em sua maioria facas. Por sua vez, o arco e flecha, antecessor das armas de fogo, não era muito utilizado (HANAWALT, apud MALCOLM, 2014). Levando em consideração que a maioria dos homicídios/assassinatos da época ocorriam em ocasião de discussão, conforme aponta Given (GIVEN, apud MALCOLM, 2014), a pouca utilidade dessa arma é até compreensível, visto que em uma discussão o agressor tende a buscar ferramentas portáteis que se encontrem mais próximos de suas mãos, como facas, garrafas, bastões, lanças curtas, entre outras.

Foi durante a metade do século XVI, já na era moderna, que as armas de fogo passaram a se tornar mais populares na sociedade inglesa, sendo inclusive um equipamento comum das milícias (MALCOLM, 2014), como era o arco e flecha no período medieval, conforme apresentado anteriormente. Os homens comuns tinham o dever de possuir armas para a manutenção da paz.

Esse período (século XVI-XVII), analisando a delicada situação vivenciada pelos ingleses, tais como a constante troca de religião oficial (alternância entre o catolicismo e o protestantismo) de acordo com a sucessão dos monarcas, a guerra externa (contra espanhóis), entre outros fatores, poderia ter se traduzido em um momento em que os homicídios e demais crimes violentos explodissem na Inglaterra. Todavia não foi o que aconteceu (MALCOLM, 2014), como mostram os números já indicados no início desse capítulo, sendo que desde esse período até o século 20, os índices caminharam por uma impressionante queda. Destaca-se que os crimes cometidos nessa época eram predominantemente patrimoniais, como furtos e roubos, e não contra a vida, seguindo a tendência já existente.

Não muito tempo depois de sua popularização, ao final do século XVII já foram vistas as primeiras tentativas de se restringir o acesso a tais armas. Por conta de ameaças às liberdades individuais (como o direito de possuir uma arma de fogo), o monarca Jaime II acabou por ser destronado, sendo substituído pelo Rei Willian de Orange e pela Rainha Maria Stuart, os quais prometeram respeitar a Carta de Direitos (Bill of Right - 1689), que simbolizou o fim do poder absoluto do “rei” e instituiu a monarquia parlamentarista, existindo até os dias atuais. Entre outros direitos, a Carta assegurava, inclusive, a posse de armas aos protestantes para a defesa própria, uma vez que estes se encontravam ameaçados pelo poder de Jaime II (MALCOLM, 2014).

Apesar da liberdade de circulação de armas, o número de ocorrências de homicídios/assassinatos seguiu em queda livre, como apontado por James Sharp (SHARP, apud MALCOLM, 2014). Acompanhando essa estatística, Lawrence Stone apontou que a média de homicídios/assassinatos no século XIII era de aproximadamente o dobro do que o século XVI e XVII (STONES, apud MALCOLM, 2014).

Nesse novo período, início da idade moderna, os crimes continuaram seguindo um padrão, qual seja um maior número de ocorrência de crimes contra o patrimônio em detrimento de crimes contra a vida (MALCOLM, 2014). Nota-se também a continuação do fato de que a maioria dos homicídios/assassinatos ocorriam durante desentendimentos momentâneos e as armas de fogo eram impopulares nessas barbáries.

No ano de 1536 houve uma inovação jurídica capaz de influenciar consideravelmente os índices de homicídios/assassinatos, o enrijecimento da Lei de Homicídios dado pelos magistrados, que passaram a adotar o entendimento de que se uma pessoa fosse morta por um integrante de alguma gangue que estivesse praticando um delito, todos deveriam responder por homicídio/assassinato (HOLDSWORTH, apud MALCOLM, 2014).

Imperioso se faz ressaltar que ao longo do século XVI e XVII diversas alterações legais versaram sobre a liberdade de posse de armas de fogo. Entre estas é possível citar o Estatuto de 1541, que limitava a quantidade de armas a serem adquiridas por alguns cidadãos; o Estatuto de 1549 que proibia o uso de munições especiais; a Lei de Caça de 1671 que vedou expressamente o uso de armas de fogo para aqueles considerados como desqualificados para atividade de caça (a Lei possuía um critério baseado na renda mínima e excluía a maioria das pessoas) e a Carta de Direitos de 1689 que assegurou aos protestantes o direito de possuírem armas (na prática foi assegurado para todas as pessoas), indo, portanto, de encontro com a previsão legal citada anteriormente, motivo pelo qual foi elaborada uma nova lei retirando as armas de fogo do rol de instrumentos proibidos (MALCOLM, 2014).

O século XVIII foi marcado pelo exagero dos legisladores na criação de novos dispositivos penais com o fito de abranger todas as situações passíveis de se causar uma desordem social, dando sempre a pena máxima, a execução. A exemplo disso tem-se a Lei do tumulto, que proibia a formação de grupos para provocar a desordem. Por sua vez, a Lei Negra fora muito mais radical ao criar muitas infrações novas, abrangendo, como dito anteriormente, todas as situações possíveis. Para driblar a pena de morte que seria a pena prevista para todos esses novos delitos, foi então criado a Lei do Transporte em 1718. Esse diploma normativo consistia na aplicação de uma pena diversa para aqueles que, originariamente, seriam condenados a pena de morte. Todavia, esse instituto não era aplicado no caso de infrações menores, como é o caso de furto. Nesse contexto muitas pessoas foram transportadas para ilhas sob o domínio da Inglaterra, destacando ainda o território dos Estados unidos da América, que ao período, por ainda ser uma colônia, recebia os desordeiros transportados (MALCOLM, 2014).

Um ponto de grandíssimo destaque, no que se refere a fator de interferência nos resultados de crimes violentos, é o caso das guerras externas. Malcolm aponta que os estudos realizados, tanto a nível nacional, quanto a nível regional, confirmaram que os tempos de guerras externas eram os que menos se registravam ocorrências de crimes violentos, ao passo que nos tempos de paz, as ocorrências cresciam novamente. Mas isso possui uma explicação, a autora destaca que a guerra fazia com que houvesse um grande deslocamento de homens que iam para o campo de batalha, e, portanto, as cidades ficavam mais tranquilas. Consta-se ainda, que pessoas desordeiras eram especialmente chamadas para colaborar na guerra.

Uma das teorias bastante difundidas para explicar o aumento da criminalidade, é a de que a violência social possui uma ligação com a dificuldade econômica de uma determinada comunidade. Todavia, os períodos de crise econômica foram capazes de influenciar significativamente nos crimes pertinente à propriedade, mas não nos crimes violentos. Com relação aos crimes violentos, a ocorrência de guerras externas, de fato, contribuíram muito (SHARP, apud MALCOLM, 2014).

Cockburn afirma que dos homicídios cometidos entre 1720 e 1810, apesar de serem populares, as armas correspondiam a apenas vinte e um por cento dos homicídios/assassinatos cometidos na Inglaterra. Na primeira metade do século XIX, o pesquisador descobriu que o número de ocorrências de homicídio com o uso de armas de fogo e armas brancas, juntas, correspondia a treze por cento das mortes violentas (COCKBURN, apud MALCOLM, 2014).

Durante o século XIX, período em que o cenário europeu estava bastante favorável para a geração de uma crescente violência, ainda assim, não foi o que se passou na Inglaterra. Diz-se como um cenário favorável ao caos devido a um evento histórico ocorrido no fim do século anterior, que por sua vez gerou repercussão por muito tempo no continente europeu, trata-se da revolução francesa.

Este movimento originado na França foi ganhando força com o tempo e conseguiu afetar outros países.

O motivo pelo qual esta revolução ganhou tanta repercussão em âmbito mundial é simples, esse movimento se iniciou com o propósito de alterar o cenário político e social vivenciado originariamente no âmbito interno, ou seja na França, onde uma classe de pessoas, denominada classe operária, quais sejam os trabalhadores mais pobres, passaram a promover agitações (rebeliões, etc.) com o fito de reivindicar a mudança na estrutura social, onde a família real e a nobreza ostentavam riquezas e benefícios não estendidos às classes inferiores. Sobre essa divisão social e com relação aos privilégios, assim escreve Osvaldo Coggiola:

O Primeiro Estado, composto pelo alto clero, representava 0,5% da população francesa, se identificava social e politicamente com a nobreza, e era contrário a quaisquer reformas. A nobreza, ou “Segundo Estado”, era composto por uma camada palaciana-cortesã, que sobrevivia à custa do Estado, por uma camada provincial, que se mantinha com as rendas dos feudos, e a “nobreza togada”, composta por alguns juízes e altos funcionários burgueses que haviam adquirido seus títulos e cargos, transmissíveis aos herdeiros: era aproximadamente 1,5% da população. Os dois estados privilegiados não só tinham isenção tributária como ainda usufruíam do Tesouro Real por meio de pensões e cargos públicos vitalícios. (2013, p. 290)

Este movimento formidável que reivindicava melhorias de condições para os menos favorecidos socialmente, não o fez de forma pacifica, mas sim, através do caos. Foi uma resistência armada por parte dos trabalhadores franceses. A exemplo da forma de atuação dos grupos revolucionários franceses, também escreve Osvaldo Coggiola:

[...] em resposta ao rei, a população de Paris, em 12 de julho, se mobilizou e tomou as ruas da cidade. Os líderes revolucionários conclamavam todos a pegar em armas. (2013, p. 292)

[...] A revolução estendeu-se ao campo, com maior violência ainda: os camponeses endividados ou empobrecidos saquearam as propriedades feudais remanescentes, invadiram e queimaram os castelos e cartórios, para destruir os títulos de propriedade das terras. (2013, p. 294)

Nesta senda, demonstrado a movimentação intitulada como “revolucionária” pelos franceses, volta-se agora a atenção à Inglaterra.

Como afirmado, mesmo havendo pressupostos fáticos que contribuíam para a instauração do caos, o povo inglês pode presenciar o oposto. Estima-se que a partir da primeira metade do século XIX até a Primeira Guerra Mundial, a taxa de homicídios, por exemplo, caiu em quarenta e dois por cento (GATRELL, apud MALCOLM, 2014).

Não há a possibilidade de se dizer exatamente o que gerou esse sucesso inglês no controle da criminalidade. Todavia, idealiza-se que isso se deve a atuação em conjunto de vários fatores, tais como o enrijecimento da lei, a exemplo da Lei Negra, a disponibilidade das armas para autodefesa, entre outras determinantes.

Neste período a Inglaterra estava a empregar seus soldados em conflitos externos, até mesmo contra os franceses, que naquele momento representavam uma ameaça à tranquilidade de qualquer país afetado por seus famigerados movimentos de cunho socialista. Assim, o parlamento passou a temer um levante popular dentro da própria “casa”.

Com o retorno de soldados ingleses, o que por si só, ocasiona um aumento nas ocorrências criminais, como já mencionado anteriormente, os lideres da Inglaterra passaram a temer outra ameaça, qual seja a mobilização de uma classe de trabalhadores industriais, o que lembra em partes o cenário francês,  os quais também reivindicavam por reformas. (MALCOLM, 2014)

Assim, o parlamento inglês passou a considerar tentativas de manter as armas de fogo fora das mãos de potenciais revolucionários (MALCOLM, 2014).

Foi no século XIX que surgiu unidades de polícia profissional. Todavia, por questões culturais, não foi concedido à polícia o uso de armas de fogo, pois até então o dever de assegurar a ordem sempre esteve nas mãos dos cidadãos. Logo, ao criar uma força policial e equipá-la com armas de fogo, para o publico inglês certamente seria visto com maus olhos, sendo possível até a ocorrência de rebeliões decorrentes do temor do povo em sofrer novamente nas mãos de algum tirano. Para tanto, essa nova força policial foi equipada com cassetetes (MALCOLM, 2014).

Além da criação da polícia oficial, também surgiu nessa época grupos chamados Yeomanry. Tratava-se de grupos de camponeses armados dos quais o próprio Estado se utilizava para auxiliar na tarefa de não permitir a entrada de franceses, bem como ajudar a resolver problemas internos (relativo a crimes). (F. C. MATHER, apud MALCOLM, 2014)

Ocorre que no ano de 1819 houve um grave conflito entre magistrados, apoiados por grupo de Yeomanry, e uma multidão de cartistas, revolucionários. Este conflito ficou marcado na história como o “Massacre de Peterloo”. Esse acontecimento gerou fortes discussões no parlamento, resultando na criação de mais seis diplomas normativos (F. C. MATHER, apud MALCOLM, 2014).

Dos seis Estatutos motivados pelo fato descrito acima, dois importavam em restrições no direito de possuir e/ou usar uma arma de fogo. (F. C. MATHER, apud MALCOLM, 2014). O Primeiro vedava a prática de treinamento com uso de armas de fogo para pessoas “não autorizadas”. O segundo instituiu a Lei do Confisco, que declarou a possibilidade de uma pessoa ter seu armamento confiscado se fosse suspeita de querer cometer algum crime com esse instrumento. Nota-se que ainda assim não houve de fato a proibição de se possuir ou portar uma arma.

Com novas investidas dos Cartistas, em suas reclamações, voltou à tona a discussão a respeito da possiblidade de se restringir ao cidadão comum o acesso às armas de fogo. Todavia, esta ideia não prosperou.

Em 1856 todos os condados passaram a ser obrigados a estabelecer uma força policial. Gatrell aponta que a partir de então o efetivo policial crescera surpreendentemente. Segundo ele, em 1861 havia cerca de um policial para cada 937 habitantes, já trinta anos depois esse número aumentou para um policial para cada 731 habitantes. Com o aumento do efetivo, a polícia passou a não só exercer atividades repressivas, mas também a realizar ações preventivas contra o crime. (apud MALCOLM, 2014).

Joyce Malcolm acompanha o que possivelmente pode ter sido o sentimento dos parlamentares ao longo do século XIX, após a consolidação das forças policiais. Segundo ela:

Armas de fogo haviam sido necessárias para ajudar a manter a paz, mas também sujeitas ao mal uso por desordeiros e criminosos. Com o estabelecimento da policia nacional o governo pode ter sentido que não era mais necessário que indivíduos armados protegessem uns aos outros e, portanto, que o Estado deveria minimizar os riscos que um público armado implicava. [...] Um dos benefícios da força de policia nacional foi o inicio das estatísticas criminais nacionais. Embora estas representem apenas os crimes registrados pela polícia, elas oferecem números reais para se trabalhar, ainda que somente para mapear tendências. Apesar de todas as restrições usuais por conta de sua falta de confiabilidade, a maioria dos historiadores tem endossado o quadro oficial. (2014, p. 120)

De análise das estatísticas oficiais, Clive Emsley afirmou que na Inglaterra e no País de Gales a taxa de homicídios em 1865, ano com maior número de casos, foi de duas ocorrências por cem mil habitantes. Acrescentou ainda que entre os anos de 1857 e 1890 dificilmente ultrapassava a marca de 400 homicídios relatados por ano (2005). Portanto, não há justificativas nesse período para a proibição das armas sob a alegação de necessidade de se frear os crimes.

Em 1870, com o intuito de retirar de circulação a maior parte dos revólveres, bem como de reduzir a aquisição das armas de fogo em geral, o chanceler do Exchequer introduziu uma lei para licenciamento das armas. Essa lei também criou um registro nacional de armas de fogo. Logo o governo passaria a ter mais controle sobre estas. Graças a este registro, estudiosos puderam se pautar em números reais para se estimar o número de armas existentes. Entretanto, como é óbvio, esses números representam apenas uma parcela da quantidade de armas realmente existentes, visto que, pelo valor cobrado pelo licenciamento, muitos trabalhadores não podiam tornar legal a sua arma, e em alguns casos, pessoas nem tinham interesse, a exemplo dos salteadores (MALCOLM, 2014).

Malcolm destaca que a imposição do licenciamento não surtiu efeitos práticos, pois não reduziu o número de crimes ao longo do século XIX até meados do século XX, nem mesmo deve ser utilizada como justificativa para o aumento de crimes durante a década de 1930 e 1950 (MALCOLM, 2014).

Em 1903 foi criada a Lei das armas curtas. Esse dispositivo restringiu a aquisição de armas curtas, compreendidas como aquelas que possuíam um cano inferior a 9 polegadas, apenas para maiores de dezoito anos que comprovassem estarem aptos para o uso, ou seja, não podendo ser alcoólatras ou loucos (MALCOLM, 2014).

Com o advento da Primeira Guerra Mundial, fora aprovada as pressas a Lei de Defesa do Reino. Entre outras medidas, essa lei dava ao governo autoridade para controlar a importação e exportação, a produção e a venda e cessão de armas de fogo (MALCOLM, 2014).

Findado a primeira grande guerra, o parlamento aprovou a lei mais restritiva e insegura quanto à liberação das armas de fogo. A Lei de 1920 literalmente proibiu a aquisição e o porte de armas, a exceção de autorização por parte da autoridade policial local. Ou seja, a regra neste momento é a proibição. Só poderia portar armas quem conseguisse provar à autoridade policial a sua boa conduta social e um bom motivo para querer portar a arma de fogo. Ainda assim, essa autoridade possuía discricionariedade para conceder ou não o certificado ao cidadão. Outro detalhe desta lei é que não havia uma limitação apenas para a arma em si, mas também para a quantidade máxima de munições que o indivíduo poderia adquirir e portar (MALCOLM, 2014).

Após o advento da Lei das armas de fogo, os crimes não fugiram muito do padrão já existente. Os crimes violentos continuaram em constante declínio, todavia observou-se que os crimes contra à propriedade sofreu um razoável aumento em virtude de invasões de propriedades. Mostrando essas informações em números, temos os seguintes dados apontados por Malcolm:

Na verdade, os 110.206 delitos informados em 1923 foram o maior número nos sessenta e sete anos em que estatísticas estavam disponíveis. Aconteceu um aumento dramático, em 1923, de invasões a lojas e obtenção por falso pretexto, respectivamente, 85 e 94 por cento a mais do que no ano anterior. Mas um relatório de 1925 sobre os homicídios e tentativas de homicídio conhecidas pela policia mostrou um declínio de uma média anual de 426 homicídios em 1909-1913 para 369 em 1923, uma queda de 13,4 por cento, enquanto que os assaltos diminuíram de 1.739 para 1.512, uma queda de 12,5 por cento. Não foi fornecida nenhuma separação de dados sobre o uso de armas de fogo nesses crimes, mas os autores do relatório concluíram: “O homicídio e outros tipos de crimes violentos contra as pessoas estão caindo firmemente. O movimento se estende, embora num grau menor, aos assaltos e outros delitos violentos menores que estão dentro da jurisdição comum das cortes sumárias.” (2014, p. 152-153).

Não obstante a regulamentação já feita, em 1937 houve mais uma inovação jurídica. Trata-se da Lei das Armas de Fogo e Imitações (Uso Criminal). Esta nova regulamentação nada mais é que um aperfeiçoamento do dispositivo anterior, pois agora passou-se a punir de forma mais dura os criminosos que  utilizassem armas de fogo. Por exemplo, se um infrator se utilizasse dessa ferramenta para tentar empreender a fuga, só pelo fato de se tratar do uso de arma de fogo, já estaria incorrendo em um tipo penal específico, o que lhe cominaria uma pena de até quatorze anos (MALCOLM, 2014).

Com o advento da Segunda Guerra Mundial, em 1939, os chefes de pessoal Britânicos seguiram a tendência contrária, ou seja, o plano neste momento não era desarmar, e sim armar pessoas com o fito de realizarem a segurança doméstica contra invasões estrangeiras. Neste período qualquer pessoa maior de dezessete até sessenta e cinco anos, que soubesse manusear uma arma, poderia se voluntariar para fazer parte da guarda doméstica do país. Esses voluntários foram isentos da obrigação de possuir um certificado (MALCOLM, 2014).

Conforme dados ainda disponibilizados pelo site do parlamento inglês, mesmo com toda a tensão de guerra nesse período, o aumento de homicídios foi ínfimo. Transcrevendo-se os números oficiais, note-se que houve uma alta de 0.4 homicídios por cada cem mil habitantes (INGLATERRA, 2014). Embora houvesse um leve aumento no número de homicídios, o Lord Chanceler destacou que a maioria dos crimes violentos não tinham a participação de armas de fogo, sendo o número de ocorrências, no distrito da polícia metropolitana, com a participação de armas, as seguintes: em 1948, 4 ocorrências; em 1949, 28 ocorrências; em 1950, 30 ocorrências; em 1951, 14 ocorrências (GREENWOOD, 1972).

Ainda assim, após a Segunda Guerra, com o retorno da “paz”, houve novos esforços para a retirada de circulação das armas sem certificado, em cumprimento à Lei de 1937.

Da segunda metade do século XX em diante, o quadro de violência na Inglaterra sofreu uma grande reviravolta. Os números que até então mostravam este pais como uma referência no continente europeu, agora demonstra um drama sofrido pela sociedade.

Esse fracasso do Estado na manutenção da ordem pública pode se dar por diversos motivos, todavia, alguns podem ser destacados.

O primeiro motivo a ser levantado é a diminuição da rigorosidade na aplicação e execução da pena. A Lei de Justiça Criminal de 1948 passou a optar pela aplicação de penas alternativas aos criminosos, em detrimento da pena de prisão. O governo passara a acreditar que a adoção de outras medidas diversas da prisão cumpriria melhor o papel de ressocializar o criminoso. Todavia, não foi o que se observou na prática. A priorização da aplicação de penas alternativas não se deu exclusivamente por motivo ideológico, mas também econômico, uma vez que, quanto maior a população carcerária, maiores os gastos públicos. (MALCOLM, 2014)

O segundo motivo, também ligado a Lei de Justiça Criminal de 1948, consiste na vedação de aprisionamento de menores de 21 anos. Essa deliberação custou caro à segurança pública, pois neste período pós guerra era justamente entre os jovens dessa faixa etária que houve maior crescimento de delinquência (MCCLINTOCK, apud MALCOLM, 2014).

O terceiro motivo a ser destacado é a falta de contratação de policiais (MALCOLM, 2014). Este fato inegavelmente contribuiu para a dificuldade vivenciada pelos ingleses. Partindo da informação de que o Estado vedou a utilização de armas de fogo pela população civil (bem como de armas brancas, como se verá adiante), o mínimo a se esperar do mesmo é a implantação de uma política pública capaz de atender ao anseio popular no que tange a segurança. Aliás, essa foi a motivação dada para o convencimento popular de que as novas medidas adotadas pelo governo (desarmar e policiar) eram corretas e necessárias. Entretanto, como o Estado não teve capacidade de investir suficientemente nas forças policiais, o resultado dessa receita dificilmente seria diferente, se levarmos ainda em consideração o fato de que a Inglaterra acabara de enfrentar duas grandes guerras mundiais, e o período pós guerra costuma ser marcada por um considerável aumento de crimes.

No ano de 1968 fora criada a nova Lei de armas de fogo. Novamente mais uma lei restritiva. A inovação deste dispositivo legal foi a exigência de certificação para espingardas de fogo, assim como era feito para armas curtas e rifles. Além dessa peculiaridade, a Lei de armas de fogo agravou muito o controle sobre as armas, dando mais liberdade à policia para realizar busca e apreensão, agravando as penas, e outras medidas (MUNDAY and STEVENSON, apud MALCOLM, 2014).

Surpreendentemente, a Lei de armas de fogo de 1968 surgiu devido ao anseio popular de se punir mais rigorosamente os criminosos. A população, depois de um massacre ocorrido há dois anos, passou a levantar a possibilidade do retorno da pena de morte. Como o parlamento não acolheu com empatia essa proposição, resolveu então utilizar essa nova lei contra o armamento civil para desviar o foco da evidente discussão (pena de morte). Nas palavras de Joyce Malcolm:

Essa medida, que atirou para todos os lados, parece ter sido projetada para prevenir qualquer aumento da violência que pudesse decorrer da abolição do enforcamento (MALCOLM, apud MUNDAY e STEVENSON, 2014). Os controles sobre armas e o registro das espingardas foram uma distração da discussão sobre o fim da pena capital (2014, p. 197)

Após novos eventos de destaque envolvendo armas de fogo, como por exemplo, um tiroteio em Bristol, o povo novamente se manifestou por um maior controle sobre as armas de fogo. Como resposta, eis que em 1988 criou-se mais uma Lei de armas de fogo. Esta lei inovou por restringir o uso do último tipo de arma de fogo permitido: a espingarda. Após alteração no projeto inicial, formalmente a lei dispunha que a autoridade policial deveria conceder o registro para o proprietário de espingarda (regra), salvo se ficasse comprovado que este não possuía um bom motivo para conseguir essa autorização estatal. Todavia, na prática a situação era diferente. Assim como para as demais armas, as autoridades policiais exigiam das pessoas um bom motivo para concedê-las um certificado de permissão para uso.

Por fim, em 1997 foi editada a última Lei de armas de fogo, sendo imposto, desta vez, o banimento de armas curtas de calibre maior que .22, e que as de calibre .22 fossem guardadas em clubes de tiro. Em uma reforma posterior, o governo passou a banir por completo o uso de armas curtas (MUNDAY and STEVENSON, apud MALCOLM, 2014).

Trabalhando novamente com dados estatísticos, com o intuito de apresentar os resultados práticos dessas vastas mudanças jurídicas, conforme informações disponibilizadas pelo site do parlamento inglês, ao passo que em 1900 a média de homicídios ocorridos na Inglaterra e no País de Gales indicava 9.6 ocorrências por um milhão de habitantes, em 1995 essa média subiu para 14.5 ocorrências para cada um milhão de habitantes. Destaca-se ainda que esse crescimento de homicídios foi bem suave se comparado com o quadro de crimes em geral (https://www.parliament.uk/, 2014).

Como já mencionado anteriormente, esses dados apresentados sobre números de homicídios e outros crimes violentos, não significam necessariamente que há a presença de uma arma de fogo nesses casos, muito pelo contrário. Estes são dados gerais oferecidos pelo governo inglês, dos quais, a minoria envolve a “participação” de armas de fogo. Para se ter uma ideia da participação dessas armas no crime de homicídio nesse período, em Londres, no ano de 1999, houveram apenas 54 casos (MALCOLM, 2014). Dos 1.150 casos de violência ocorridas na Inglaterra no ano de 1950, apenas 17 tinha envolvimento de arma de fogo. Na mesma tendência, dos 1.919 casos de violência ocorridos no ano de 1967, apenas 44 envolviam tais armas (MCCLINTOCK, apud MALCOLM, 2014).

 

1.2 Armamento civil nos Estados Unidos da América

Ao se tratar dos americanos, se faz primordial ressaltar que o direito de possuir armas está previsto na própria Constituição Federal, a qual expressa: Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser impedido (UNITED STATES, 1791).

Embora haja a proteção da Carta Magna americana, neste país os estados membros possuem uma grande autonomia para legislar sobre diversos assuntos, e o fazem, inclusive, quanto ao porte de armas de fogo. Existem estados onde se podem andar livremente pelas ruas com armas curtas ocultas, já em outras localidades, esse direito é mitigado. Neste sentido, estabelecer relações entre a criminalidade e as armas nos Estados Unidos é consideravelmente mais difícil, já que há multiplicidade de leis, algumas delas se contrapondo a outras (leis federais, estaduais e locais).

Já adentrando na parte histórica, os norte-americanos tiveram nacionalmente poucas leis referentes ao controle das armas de fogo, se comparado aos britânicos. Mas antes destas existiram, já havia sido criadas algumas normas locais, como por exemplo, a Lei de Sullivan no estado de Nova Iorque em 1911, a qual proibiu o porte oculto de armas de fogo não registradas (MALCOLM, 2014). Sem adentrar muito no contexto, essa lei foi elaborada devido a conflitos internos, principalmente por motivos raciais.

No ano de 1934 foi aprovada a Lei Nacional das Armas de Fogo. Este dispositivo estabeleceu a obrigação de se obter registro de determinadas armas para a sua utilização civil, o qual seria submetido à aprovação da polícia, bem como ao pagamento de uma taxa (INTERNET ARCHIVE, 1934 – Disponível em https://archive.org, acesso em 20.05.2018). As armas abrangidas, quais sejam, armas automáticas, rifles de cano serrado e espingardas com silenciadores, eram justamente as mais utilizadas por criminosos (MALCOLM, 2014). Partindo desse pressuposto, é aceitável acreditar que essa inovação jurídica realmente tinha como propósito o controle de crimes, diferentemente da Inglaterra que não possuía, em 1920, pressupostos fáticos que embasasse novas políticas.

Após ocorrência de outros episódios de violência, foi elaborada outra norma, a Lei de do Controle de Armas de 1968. Esta por sua vez, entre outra disposições, restringiu as vendas de armas por correios bem como a importação de armas militares (INTERNET ARCHIVE, 2014 – Disponível em https://archive.org, acesso em 20.05.18).

Em 1990 a Lei Brady, alterando a Lei de 1968, estabeleceu a verificação dos antecedentes criminais antes da venda de armas de fogo para um cidadão (ATF, 2017).

É notório que as armas tiveram e tem uma participação maior nos crimes, incluindo homicídios, nos Estados Unidos do que na Inglaterra. Assim explica Malcolm:

Não há dúvida de que as armas têm um papel muito maior no crime Americano do que no Inglês. De acordo com estatísticas da polícia de 1996, elas foram usadas em apenas 7 por cento dos assassinatos ingleses, mas em 68 por cento dos assassinatos americano, e a taxa de assassinatos nos Estados Unidos em 1996 era seis vezes maior que na Inglaterra (LAGAN and FARRINGTON, apud MALCOLM, 2014, p. 222).

Todavia, antes de se colocar as armas de fogo como o principal responsável pelos grandes números de crimes nos EUA, salienta-se que mesmo que fossem retirados os homicídios com armas de fogo dos EUA , para efeito comparativo, ainda se teria uma quantidade maior de crimes do que na Inglaterra, como sugere Monkkonen ao comparar a média de crimes em Nova Iorque com Liverpool e Londres no ano de 2000 (MONKKONEN, 2001, p. 178).

Entretanto, esses números não podem ser confrontados diretamente. Há inúmeros motivos que determinam essas diferenças, tais como fatores econômicos, envolvimento em conflitos externos, diferença na conceituação de crimes, e a própria cultura, que para Malcolm era um dos fatores mais fortes para a explicação dessa diferença. A autora ressaltou que os americanos, por motivo cultural, louvavam (louvam) a atitude de defender a sua propriedade a todo custo. Logo, se alguma propriedade fosse invadida, o proprietário estava acobertado por direito para atirar no criminoso. Como já retratado anteriormente, nesse ponto os americanos contrastam completamente com os ingleses (MALCOLM, 2014).

Partindo mais uma vez para os números, conforme dados fornecidos pelo FBI e reportados por uma empresa renomada na imprensa norte-americana, o número de pessoas mortas em 2016 por armas de fogo somaram a quantia de 11.004 pessoas. Agora um dado mais interessante que esse é que, dessa quantia, aproximadamente 5.500 casos foram por suicídios (BBC, 2017 – Disponível em: , acesso em 22.05.2018).

Por fim, consoante reportado pelo órgão competente, neste caso o FBI, o número de crimes em geral vêm despencando nos EUA nos últimos anos.  De análise do ultimo relatório de crimes por região, o FBI apontou um declínio de 0,8 na criminalidade entre os anos de 2016 à 2017, mesmo que tenha observado um aumento de 1,5 por cento nos assassinatos (UNITED STATES, 2017 – Disponível em: Acesso em: 22.05.2018). Esse número não parece guardar relação com o crescimento do número de armas. Atualmente as armas de fogo circulam em torno de 300 milhões de unidades distribuídas em todo os EUA (BBC, 2016 – Disponível em: <http://www.bbc.com> Acesso em: 22.05.2018).

 

2 Políticas desarmamentistas no Brasil e o advento da Lei 10.826/2003 – Estatuto do Desarmamento brasileiro

Politicas voltadas ao armamento/desarmamento civil já estão presentes na história do Brasil desde a sua época de colonização pelos portugueses. Adiante vamos descrever um pouco da relação dos brasileiros com as armas ao longo do tempo.

 

2.1 Breve histórico brasileiro

Na história do Brasil é possível identificar políticas desarmamentistas desde o período colonial. Há registros de que entre os séculos XVI e XIX (entre os anos de 1530 e 1815), a Coroa Portuguesa estabeleceu uma proibição de fabricação de armas em solo brasileiro (QUINTELA e OUTROS, 2015). Todavia, nesse período era nítido que a vedação não tinha qualquer relação com a segurança pública, e sim com o controle de milícias coloniais, que poderiam colocar em risco o poder de Portugal sobre o Brasil.

Durante a época do Brasil Imperial, a propriedade de armas de fogo era liberada para todos os cidadãos brasileiros livres, a exceção de negros e índios. Todavia, ainda persistia o plano de enfraquecer as milícias existentes. Para isso, o então Regente do Império Brasileiro, Diogo Antônio Feijó, constituiu a chamada Guarda Nacional com o fito de garantir que organizações civis não ganhassem força e tentassem realizar qualquer ato que ameaçasse o seu poder.

O período da República Velha não trouxe mudanças expressivas em relação a este tema. Entretanto, é na Era Vargas, um período ditatorial que se estabeleceu a partir de 1930, que se tem registro da primeira campanha oficial, realizada pelo governo brasileiro, para desarmar a população, diga-se de passagem, um ato muito comum em governos ditatoriais (QUINTELA E OUTROS, 2015).

Ao assumir o poder, Getúlio Vargas já tinha por objetivo inicial eliminar as ameaças ao seu governo, que num primeiro momento, eram representadas por dois grupos: os cangaceiros, organizações puramente criminosas, e os coronéis, grandes fazendeiros que possuíam grupos armados, formados por integrantes da antiga Guarda Nacional (já mencionada acima). Ambos os lados se opuseram ao poder de Vargas (QUINTELA E OUTROS, 2015).

Todavia, Vargas tinha ciência de que não podia enfrentar diretamente os coronéis, pois estes possuíam uma força bélica extraordinária, podendo, inclusive, ser equiparada às forças policiais oficiais da época. Destaca-se também que em muitos casos havia uma relação próxima entre os coronéis e os cangaceiros, onde estes trabalhavam para aqueles (QUINTELA e OUTROS, 2015). Portanto, o único meio encontrado pelo tirano para conseguir enfraquecer seus oponentes foi realizando campanhas para desarmá-los, sob algum pretexto que apresentava relevância na época.

A justificativa apresentada pelo déspota para exercer o controle sobre as armas foi semelhante à que se presencia nos dias atuais, relativa ao estatuto vigente, qual seja a de reduzir o índice de crimes envolvendo armas de fogo. Vargas utilizou como exemplo a presença dos cangaceiros no nordeste do país, os quais possuíam grande arsenal de armas de fogo e com isso espalhavam o terror por onde passavam. As campanhas alegavam ainda que tais armas chegavam à mão desses criminosos por meio dos roubos realizados nas cidades, ou seja, os cangaceiros utilizavam as armas roubadas dos “cidadãos de bem” (termo popularizado hodiernamente). Assim, pretendia retirar as armas dos coronéis, sendo os cangaceiros combatidos posteriormente por serem menos poderosos que os grandes fazendeiros retro mencionados.

Nesta senda, muitas pessoas, incluindo alguns coronéis, se renderam aos argumentos apresentados e entregaram as suas armas às forças policiais, fragilizando, assim, as suas milícias (QUINTELA e OUTROS, 2015).

Após este feito, o Governo Vargas passou a perseguir severamente os grupos de cangaceiros, efetuando várias prisões e execuções.

Mais a frente, mais especificamente em 1932, Getúlio Vargas ainda teve de enfrentar a população paulista, que lutava pela criação de uma nova constituição que se adequasse ao contexto social em que estavam (e dando fim ao governo provisório de Vargas – como estava até aquele período).

Após estes conflitos armados, Getúlio Vargas, a fim de evitar um novo confronto, editou em 1934 o Decreto Nº 24.602, o qual restringia a fabricação e o comércio de armas de guerra, bem como munições, explosivos, entre outros artigos do gênero. Assim, o Estado passou a ter o monopólio da força letal, estando em condição de superioridade em qualquer conflito que pudesse estourar posteriormente. Ainda neste sentido, no próximo governo militar, o então Presidente da República, Castelo Branco, outorga outro decreto, o Decreto Nº 55.649, de 1965, caminhando na mesma direção de restrição às armas que seguiu o governo ditatorial anterior.

Em 1997, já em clima de democracia, fora elaborado pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso a Lei Nº 9.437/1997. Este diploma normativo, de forma geral, era mais liberal quanto ao acesso às armas, no entanto, havia ainda diversas restrições, a exemplo disso a exigência de no mínimo 21 anos de idade para adquirir armas. Com essa Lei também fora criado o SINARM - Sistema Nacional de Armas, como destaca Tulio Kahn (Kahn, 2015 – disponível em: ). Destaca-se que por estar em um período democrático, o governo FHC não se utilizou da força para impor essas restrições, e sim a justificativa de contenção da crescente criminalidade, que de fato estava em alta, portanto, seu discurso foi aceito pela população.

E, por fim, durante o governo Lula, em 2003, foi novamente aprovada uma lei altamente restritiva – a Lei 10.826/2003 – que permanece em vigor até os dias de hoje (Kahn, 2015). Novamente seguiu-se o discurso de contenção de crimes, que de fato possuía validade, pois os índices continuavam subindo. Porém, não se pode deixar de mencionar que, neste período, essa medida destoava completamente com o interesse da maioria da população. Isto restou claramente comprovado através do Referendum realizado em 2005, onde mais de 60% da população votante decidiu pela não proibição da comercialização de armas de fogo no Brasil.

 

2.2 Motivação para a inovação jurídica e sua legitimidade

Como já supramencionado, após adentrar no período de democracia em que vivenciamos (após os governos militares), o governo brasileiro, durante o mandato do então presidente Fernando Henrique Cardoso, passou a voltar a sua atenção ao controle das armas.

Todavia, neste momento, por se tratar de uma democracia, não era mais aceitável a imposição de uma política deste cunho, sem a aprovação popular. Assim, as campanhas governamentais apontaram justificativas com o fito de alcançar o convencimento das pessoas de que o controle sobre as armas poderia ser algo benéfico pra coletividade.

As justificativas apresentadas à época foi a de que o acesso facilitado às armas estaria por ajudar no crescimento de crimes violentos, uma vez que quanto mais armas estivessem em circulação, mais armas poderiam estar nas mãos erradas, além do fato de que maiores seriam as ocorrências de acidentes domésticos por disparos não intencionais. Outro discurso propagado foi o de que muitas armas de cidadãos “de bem” (que pode ser entendido como aqueles que agem dentro da legalidade) acabariam parando nas mãos de criminosos, por meio dos furtos/roubos residenciais, logo, por mais que o cidadão seguisse todos os procedimentos legais para se manter dentro dos padrões exigidos pela legislação, e, por tanto, ampliando a sua segurança, não o estaria fazendo, pois as suas armas corriam o risco de parar na mão de bandidos e arriscando, assim, ainda mais a sua incolumidade.

Estas justificações pautadas na contenção de crimes violentos eram deveras plausíveis, uma vez que, de fato, desde o início da gestão FHC, em 1995, o número de homicídios, por exemplo, estava subindo expressivamente. Para representar essa afirmativa, entre os anos de 1995 e 1997, o número de homicídios subiu de 37.128 casos para 40.507. Para tanto, em 1997 foi publicado a Lei 9.437, conhecido como o Estatuto do desarmamento deste período. Mesmo com as restrições impostas para se ter acesso às armas, do ano de 1997 à 2003, o número de ocorrências saltou para  51.043 casos registrados, sendo neste ano, já no governo Lula, publicado um novo diploma normativo ainda mais restritivo, a lei 10.826/2003 (ainda em vigência). Todos esses números retro mencionados estão presentes em relatório divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (WAISELFISZ, 2015), analisando-se os dados presentes no Sistema de Informação sobre Mortalidade – SIM, vinculado ao Ministério da Saúde.

Todavia, este último diploma normativo possui uma peculiaridade. Em seu artigo 35 temos o seguinte texto, in verbis:

Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei.

§1º Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005.

§2º Em caso de aprovação do referendo popular, o disposto neste artigo entrará em vigor na data de publicação de seu resultado pelo Tribunal Superior Eleitoral (BRASIL, 2003).

Ocorre que o mencionado referendo ocorreu conforme exposto, sendo estabelecido pelo Decreto Legislativo 780 a seguinte pergunta a ser respondida pelos cidadãos votantes: "o comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?"

Surpreendentemente, quase dois terços da população, 63,94% conforme a apuração do Tribunal Superior Eleitoral, pra ser mais preciso, votou “Não”, contrariando desta forma a pretensão do legislador em restringir ao máximo o acesso às armas.

Entretanto, tal expressão popular não produziu efeitos práticos, visto que a proibição passou a ser aplicada independentemente desta derrota nas urnas.

3 Afinal, o desamamento foi melhor caminho para garantir a segurança pública?

Com a publicação da Lei 10.826 de 22 de dezembro de 2003, passou a ocorrer por todo o Brasil vários movimentos para a formação de opiniões, tanto a favor do Estatuto, diga-se de passagem, com grandes nomes da mídia televisiva brasileira, bem como a maioria dos parlamentares, quanto contra o Estatuto.

Como já visto no título anterior, essa corrida ideológica ocorreu devido a previsão no referido diploma normativo, mais especificamente em seu artigo 35, §1º, de que a proibição de venda de armas de fogo em solo brasileiro dependeria da aprovação da população, por meio de referendo popular, a qual seria realizada no mês de outubro de 2005. Conforme já transcrito em título anterior e destacado novamente:

Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei.

§1º Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005. (BRASIL, 2003) (grifo nosso)

Todavia, o governo não contava que essa restrição não seria muito bem recepcionada pelo público.

Realizado regularmente o referendo popular, no período mencionado na nova legislação, aconteceu que a população optou, em grande maioria pelo NÃO, demonstrando a repulsa pela adoção da medida mais restritiva, qual seja à proibição de venda de armas de fogo no Brasil, ressalvados apenas os profissionais da segurança pública constantes da Constituição Federal. Consoante o Quadro Geral presente no site do TSE (disponível em: http://www.tse.jus.br – acesso em 22.05.2018), o voto contrário a proibição se sobressaiu com aproximadamente 63.94% dos votos válidos, ou seja, quase dois terços do eleitorado.

Com respeito a essa manifestação da população de forma contrária ao que os legisladores esperavam, Bene Barbosa escreve que “o referendo de 2005 foi a primeira prova de que o Estatuto do Desarmamento é uma peça jurídica totalmente dissonante com a vontade popular, e com efeitos práticos negativos” (2015).

Não se pode deixar fora da pauta, também, a discussão sobre os verdadeiros motivos da adoção dessa regulamentação mais severa das armas. Há que se questionar as reais intenções do legislador, visto se tratar de uma medida governamental bastante impopular.

Durante a corrida pelos votos, vários foram os motivos apresentados para justificar a sua necessidade, muitas delas, inclusive, aparentemente rebatidas pela oposição. 

Dentre os vários motivos levantados para conquistar a aprovação da regulamentação, conseguindo, portanto, a legitimidade necessária, consoante estipulado pela própria lei, pode-se destacar as seguintes, conforme suscita Yago F. Moura:

A restrição ao acesso às armas foi adotada como um meio de reduzir os alarmantes índices de violência, sendo uma das medidas mais aconselháveis, pois retira de circulação um dos instrumentos mais utilizados nos crimes, tal posicionamento é defendido por Túlio Kahn e André Zanetic que, ao efetuarem pesquisas quanto aos efeitos do desarmamento civil dentro do estado de São Paulo, chegaram à conclusão de que “o Estatuto contribuiu para acentuar a diminuição do número de armas em circulação a partir do final de 2003, sendo parcialmente responsável pela queda dos homicídios no Estado” (QUINTELA, apud MOURA, 2017).

Outro argumento utilizado é o de que a retirada das armas do meio social aumenta a segurança familiar, pois dessa forma irá se coibir os acidentes domésticos com o envolvimento de armas (MOURA, 2017. p. 11.)

Destaca-se, por fim, como mais um dos vários argumentos utilizados para a aplicação da Lei 10.826/2003, que os países onde o acesso às armas é facilitado são mais violentos (MOURA, 2017. p. 11).

Em contrapartida, os opositores dessa política (pró-armamentistas), rebatem veemente essas afirmações.

Quanto a primeira justificativa, no que tange a busca pela redução dos crimes, sobretudo homicídios, há que se relevar que restou claro que este objetivo não foi alcançado. Temos notadamente uma política pública fracassada, uma vez que o crescimento dos homicídios, como outros crimes, estão em um patamar impensável, conforme os dados divulgados pelo próprio Sistema de Informação sobre Mortalidade – SIM – que é mantido pelo Ministério da Saúde (SIM, 2010 - Acesso em 22.05.2018).

A segunda alegação, referente à proteção familiar, Bene Barbosa, especialista em segurança pública, rebate alegando que no Brasil as armas de fogo não possuem um papel relevante na morte de crianças, nem mesmo de adultos, conforme listado em sua obra, onde os acidentes com tais armas ficam nas últimas posições nos casos de mortes acidentais (2015, p. 92-96).

A última versão destacada, a afirmação de que países desarmados são mais seguros, é notadamente o argumento mais imprudente a se fazer na defesa do pensamento antiarmamentista, pois, conforme Yago F. Moura, “os índices demonstram uma grande relatividade quanto ao assunto, sendo considerados vários fatores, como a cultura, por exemplo, para a explicação dessa grande variação de realidades” (2017, p. 11).

Conforme já apresentado nesse artigo, a ausência ou presença das armas não tem se mostrado como fator de maior influência nos resultados de criminalidade.

Corroborando essa tese tem-se o exemplo da Inglaterra, que mesmo com a liberdade de armas por longo período de tempo, não havia apresentado maiores problemas. Entretanto, o mesmo não pode ser dito nos dias atuais, que coincidentemente, as armas encontram-se banidas.

Pode-se ainda ir além e traçar uma comparação entre os Estados Unidos e o Brasil, onde o primeiro permite o uso de armas, já o segundo restringe fortemente. O Brasil em 2014 registrou o impressionante número de 42.291casos de homicídios, ao passo que, em 2016 em solo americano se contabilizou o total 11.004 mortes, das quais metade correspondiam a suicídios. Ou seja, a liberação de armas não corresponde necessariamente a um aumento de crimes.

De fato, a retirada das armas de circulação não foi uma das medidas mais acertadas do governo brasileiro no combate ao crime.

Dia após dia, programas televisivos despejam informações sobre o crescimento da violência no Brasil. Fontes não oficiais já estimam que no último ano, o número de mortes já rondava na faixa de 80 mil ocorrências.

É notório que o problema da segurança pública é muito mais amplo que a mera liberação das armas aos civis. Seria muito mais vantajoso para a sociedade se o próprio Estado tivesse condições de garantir a incolumidade pública.

Equiparando, o Brasil hoje está seguindo os mesmo passos da Inglaterra no período de transição entre o século passado e este século. Fora retirado dos cidadãos a prerrogativa de usar da força letal para se auto proteger, e ao mesmo tempo o Estado não está adotando nenhuma outra medida séria para garantir que não seja necessário o uso de armas pelos cidadãos.

A soma destes dois fatores é o que há de mais prejudicial à segurança pública, pois o Estado ineficiente (não por falta de recursos, mas pela má administração) gera duas consequências. A primeira é a sensação de impunidade pelos criminosos, como já é visível em nossa sociedade, os quais passam a agir com mais confiança de que obterão sucesso em suas investidas criminosas. A segunda consequência é decorrente da primeira. Ao se ver em uma posição de extrema desvantagem, já que em casos, há organizações criminosas com um nível de organização e poder bélico maior que o do estado (a exemplo do Primeiro Comando Capital de São Paulo, que dificilmente será um dia desmantelado pelas forças policiais se não houver qualquer mudança significativa na forma de atuação), alguns cidadãos, até então obedientes às leis, passarão a optar por adquirir armas por meios clandestinos para se ter uma mínima sensação de segurança.

Coincidentemente, estes fatos já ocorreram na Inglaterra no século passado. Quando o governo passou a proibir o uso de armas, muitas pessoas optaram por esconder suas armas dentro das residências, ao invés de registrar e correr o risco de perder a posse.

Nessa linha, enquanto o governo não colocar a segurança pública como uma de suas prioridades, a população continuará vivenciando essa instabilidade e desacreditando na seriedade do Estado.

 

Considerações finais

Como se pode extrair deste artigo, é notável que essa temática está mais ligada à discussão de vieses ideológicos dos governantes, que acreditam que o seu posicionamento é mais correto e eficiente no tratamento da segurança pública, do que à resolução do problema visado, que por motivos éticos, vamos acreditar aqui na boa-fé desses administradores públicos,  que se dizem estar sempre em busca da paz social.

De fato, ambos os lados possuem dados reais, com as experiências de diversos países, que demonstram a efetividade dos dois lados. Mas como isso é possível? Como pode, tanto o armamento, quanto o desarmamento funcionarem?

Em síntese, o controle ou não sobre as armas de fogo é só uma dos fatores, que, na verdade, vai definir o rumo tomado por uma sociedade, de acordo com outros fatores alheios. Armas de fogo não são pessoas, não possuem convicções próprias, não lutam por uma causa ou mesmo pelo sustento próprio, não possuem preconceitos, nem buscam por vingança. São apenas ferramentas, como quaisquer outras, que diga-se de passagem, em países desarmados como a Inglaterra, se tornam mais populares nos crimes do que esta. E acrescentando ainda, a média de crimes neste país vem aumentando consideravelmente. Isso demonstra que as pessoas tem suas próprias motivações e vão usar o que estiver ao seu alcance para atingir seus objetivos, sejam eles nobres ou ilegais.

Melhor exemplificando isso, o Brasil é uma grande prova de que os vários elementos do contexto social vivenciado (extrínsecos às armas) é o que de fato é mais relevante para a probabilidade de se atingir bons resultados na segurança pública ou a desordem, elementos esses tais como a cultura, a economia, que pode gerar aumento de crimes contra o patrimônio (não há que se falar em regras, entretanto vide o caso inglês), os conflitos externos, que tende a tornar a sociedade mais violenta ao seu término (por motivos óbvios e já explanados no primeiro capítulo), o nível de assistência social prestado pelo Estado e a boa representatividade dos governantes, e etc.

Portanto, não se mostra correto lançar a responsabilidade pela criminalidade em cima de uma mera ferramenta utilizável como qualquer outra, não se questionando aqui a sua eficiência em detrimento das outras.

Todavia, para a melhora do quadro da segurança pública brasileira, é preferível a adoção de outras medidas que já deveriam ter sido adotadas pelo governo, a ponto de não se fazer realmente necessário lançar a responsabilidade de defesa para os próprios cidadãos, vez que manter a incolumidade pública é uma das funções do Estado, que por sua vez possui recursos suficientes, porem muito mal administrados.

Como sugestão, pode-se destacar o maior investimento no policiamento, não só na quantidade de agentes públicos empregados, mas também na valorização de seu trabalho por meio de melhores equipamentos e remuneração. A adoção de uma legislação criminal mais rigorosa, começando a partir do aprimoramento das investigações, visto que no caso de homicídios, apenas uma pequena porcentagem das investigações encontram êxito na identificação dos criminosos, bem como a reavaliação dos benefícios concedidos aos condenados pela justiça, como progressão de pena a partir de 1/6 (regra geral), induto natalino, entre outros.  Essas são apenas as medidas diretas na área da segurança, sendo também analisado as diversas outras áreas, como a educação e a flexibilização do mercado de trabalho para a geração de mais ofertas de emprego, por exemplo.

 

Referências

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Data da conclusão/última revisão: 14/6/2018

 

Como citar o texto:

SILVA, Marcos Antonio Duarte; MOURA, Yago Fumagalli De..Estatuto do desarmamento: desarmar a população aumentou ou diminuiu os homicídios no Brasil?. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 29, nº 1549. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/4133/estatuto-desarmamento-desarmar-populacao-aumentou-ou-diminuiu-os-homicidios-brasil-. Acesso em 1 ago. 2018.

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