RESUMO

A aplicação do princípio da insignificância pelo delegado de polícia ainda é tema bastante controverso no ordenamento jurídico pátrio, tanto na seara da doutrina quanto na jurisprudência, visto que os critérios que fundamentam sua validação pelas cortes superiores podem ser bastante subjetivos. As correntes a respeito dessa temática têm ido de um extremo a outro, passando de um contexto de repúdio absoluto para a mera aceitação de determinadas jurisprudências. Em virtude de utilidade pública, o tema demanda um cuidado diferenciado no que diz respeito à possibilidade de sua aplicabilidade, de ofício, pela Autoridade Policial, ainda durante a fase de investigação criminal. Para tanto, será executada uma pesquisa bibliográfica voltada para a definição atual acerca do Princípio da Insignificância durante a investigação criminal e seu reconhecimento pela comunidade jurídica brasileira, passando pela abordagem da abrangência e das limitações atinentes à atividade do Delegado de Polícia, tomando por base as decisões proferidas pelos Tribunais Superiores. Ao final do trabalho, concluiu-se que, em virtude do poder discricionário atribuído à função de delegado mediante caso concreto, a execução prática de tal princípio não configura usurpação de função, tendo em vista o fato de que o delegado é operador do direito mediante exigência do bacharelado em direito para ingressar na carreira, conservando a prerrogativa de afastar o direito repressor, devendo o tipo penal ser analisado nos aspectos formal e material.

Palavras-chave: Delegado de Polícia. Princípio da Insignificância. Investigação Criminal.

ABSTRACT

The application of the principle of insignificance by the police chief is still a very controversial subject in the Brazilian legal system, both in the area of ​​doctrine and jurisprudence, since the criteria for its validation by higher courts can be quite subjective. The currents on this subject have gone from one extreme to another, moving from a context of absolute repudiation to the mere acceptance of certain jurisprudences. Due to its public utility, the subject deserves special attention regarding the possibility of its official applicability by the Police Authority, even during the criminal investigation phase. To this end, a bibliographic analysis will be conducted focused on the current definition of the Insignificance Principle during the criminal investigation and its recognition by the Brazilian legal community, going through the coverage and limitations related to the Police Delegates activity, based on the judgments given by the Superior Courts. At the end of the work, it was concluded that, due to the discretionary power attributed to the function of delegate in a specific case, the practical implementation of such principle does not constitute usurpation of function, since the delegate is an operator of the law due to the requirement bachelors degree in law to enter the career, retaining the prerogative of removing the repressive law, and the criminal type should be analyzed in the formal and material aspects.

Keywords: Police’s Chief. Principle of Insignificance. Criminal investigation.

INTRODUÇÃO

O denominado princípio da insignificância, ou da bagatela, adveio da imprescindibilidade de se afastar do âmbito penal as condutas que, apesar de serem consideradas formalmente típicas, necessitam de tipicidade material, considerando a premissa de que não chegam a afrontar os bens jurídicos tutelados.

Também conhecido com o Princípio da Bagatela do Delegado, o referido princípio recebe concepções diferentes no âmbito da doutrina e da jurisprudência, entendendo a doutrina moderna ser a aplicação do Princípio da Insignificância pelo Delegado, com a condição de que haja embasamento legal, a partir da realização de análise técnico-jurídica sobre os fatos durante a fase investigatória ao suporto autor do delito, conforme previsto pela Lei n. 12.830/13.

Apesar de acatado sem maiores controvérsias pelos tribunais superiores, o escopo dessa pesquisa se faz necessário quando da utilização do princípio da insignificância, ex oficio, pelo delegado ainda na fase pré-processual.

Dessa forma, o presente estudo busca demonstrar, mediante pesquisa bibliográfica, argumentos técnicos embasados na lei, na doutrina e na jurisprudência, acerca dos requisitos que fundamentam a admissão da observância e execução do princípio da bagatela pelo Delegado de Polícia face à análise do fato no caso concreto.

2 A TIPIFICAÇÃO CRIMINAL E O CÓDIGO PENAL BRASILEIRO

O nosso código criminal adotou como parâmetro para apreciação analítica criminal a Teoria Tripartida, que qualifica como criminosa a conduta quando o fato concretizado for de natureza típica, ilícita e culpável, critérios estes que são cumulativos e devem ser avaliados, compulsoriamente, exatamente na ordem apresentada.

Assim, mesmo que um inimputável pratique fato considerado típico e ilícito, este não será tido como crime, por não satisfazer o terceiro critério da Teoria Tripartida, o conhecido critério da culpabilidade, requisito essencial para a consagração do crime. 

Segundo redação contida no primeiro artigo do Código Penal (BRASIL, 1940, p.01) “não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. Ou seja, o Código Penal afirma taxativamente que não haverá crime quando o fato for formalmente atípico.

Além disso, o artigo 23 do referido código imputa que:

“Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:

I – em estado de necessidade;

II – em legítima defesa;

III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”. (BRASIL, 1940, p. 05)

Este artigo, por conseguinte, faz alusão às excludentes de ilicitude, estabelecendo que, no que tange às hipóteses apresentadas nos incisos I, II e III, a ilicitude é excluída e, consequentemente, afastado o crime.

Dessa forma, observa-se que a legislação não pretendeu afastar o crime, composto por fato típico e ilícito, definindo, apenas, que determinados casos devem ser analisados de maneira distinta em relação aos demais no que concerne à culpabilidade do agente e consequente punibilidade.

Neste sentido, torna-se imprescindível o debate acerca da abrangência e das limitações relativas às atribuições próprias à função da autoridade de polícia, pois só assim, se pode inferir com maior propriedade o âmbito legítimo de exercício das atribuições policiais enquanto manifestação do “poder – dever”.

2.1 ATRIBUIÇÕES DO DELEGADO

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 trazendo a instituição de um Estado Democrático de Direito em conjunto com a proclamação dos direitos e garantias fundamentais, surgiu a necessidade de implantação de um sistema acusatório obediente a tais previsões legais, no intuito maior de proteger o acusado contra qualquer excesso que possa ser cometido pelo Estado.

Nesse contexto, a autoridade policial se apresenta como o primeiro protetor dos direitos e das garantias fundamentais do acusado, pois, além de ser o primeiro elemento a tomar conhecimento dos fatos ocorridos, é ele, também, o primeiro a estar em contato com as partes envolvidas no delito, seja a vítima, seja o autor do fato.

Entretanto, muito se tem discutido quanto sua às suas reais atribuições, principalmente, após a entrada em vigor da lei n. 12.830/13 que reforçou o entendimento de que ao Delegado de Polícia deve receber o mesmo tratamento protocolar concernentes aos magistrados, aos membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e aos advogados.

A controvérsia se dá em virtude da relutância por parte de instituições como o Ministério Público e a Magistratura em reconhecer tal prerrogativa, alegando que o Delegado de Polícia estaria se utilizando de uma função que não é sua e, consequentemente, extrapolando suas prerrogativas legais.

Assim, no atual regime democrático, o delegado de polícia detém as atribuições de tutelar os bens jurídicos mais relevantes, definidos pelo legislador quando da elaboração das normas penais, apurar as supostas práticas delituosas que lhe são submetidas, atuando com imparcialidade e equidistância dos interessados, além de ter o dever de salvaguardar  o investigado das possíveis arbitrariedades cometidas pelo próprio Estado, tendo em vista o respeito e a obediência às garantias fundamentais proclamadas pela Constituição.

2.2 INQUÉRITO POLICIAL

O inquérito policial configura, atualmente, uma ferramenta de valoração dos direitos fundamentais, enquanto conduzido pelo Delegado de Polícia de forma a garantir respeito às garantias e direitos fundamentais constitucionais, de forma imparcial e igualitária.

Dentre todos os modelos de investigação possíveis, o inquérito policial é o que mais se aproxima da legítima apuração dos fatos, por estar desvinculado das pretensões de ambas as partes interessadas, a defesa e a acusação. A investigação criminal não busca tão somente a adequação do fato à norma, tampouco a comprovação da infração penal, podendo servir, inclusive, para a conferência das imputações atribuídas ao indivíduo, impedindo a propositura de ações penais temerárias, que causariam constrangimentos ao investigado, assim como a sobrecarga de demandas ajuizadas perante o Poder Judiciário.

Faz-se oportuno mencionar, neste diapasão, a redação do artigo 2º, § 6º da Lei 12.830 de 2013, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia:

Art. 2º: As funções de polícia e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado. § 6º O indiciamento privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídico do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias. (BRASIL,2013, p. 1).

No diz respeito ao momento do indiciamento, a lei é bem específica e sustenta que o delegado proceda com a análise técnico-jurídica, observado os princípios que conduzem o Estado Democrático de Direito, especialmente o princípio da dignidade humana, não havendo que se falar em auto de prisão em flagrante, muito menos em instauração do inquérito policial antes de finalizada a análise do caso concreto.

Além disso, a pessoa do delegado tem a incumbência de zelar pelo não desaparecimento dos indícios, vestígios e provas, que possam compor o inquérito policial, tida como peça fundamental para elucidar fato supostamente criminoso e manejar a proposição da ação penal e seu justo desfecho, levando em consideração o axioma de que na ausência de um elemento não há crime.

3 O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

3.1 CONCEITO

O princípio da insignificância não apresenta disposição expressa nem na Constituição Federal nem no Código Penal, o que acaba gerando certa divergência quanto à sua prevalência. No entanto, a ausência de definição legal ou de critérios fundamentais para seu aproveitamento não justificam a sua necessidade.  Dessa forma, a base a ser utilizada como ponto de partida para o intérprete deve derivar da aplicação do direito positivo, onde ordenamento jurídico deve ser entendido como a ratificação de regras positivadas e princípios, sendo estes ser explícitos ou não.

Enquanto princípio, a aplicação do princípio da insignificância deve ser reconhecida não apenas no que se refere à lesões corporais ou em determinados delitos patrimoniais na seara castrense, mas ainda em outros delitos que expressamente não o prevejam, como no caso nas infrações contra outros bens jurídicos comuns, até mesmo contra a Administração Pública (ROTH, 2008, págs. 30 a 38).

Na concepção de Teles (2004, p. 239), o Princípio da Insignificância se refere ao tratamento adequado a lesões insignificantes, “aquelas que ao Direito Penal, por sua natureza limitada, por seus objetivos tutelares, não interessa proibir, dada sua insignificante lesividade”. Ou seja, o Direito Penal deve operar como última escolha diante dos fatos e não como a busca principal – do contrário, viver-se-ia pela pretensão de vingança, de maneira que ignorar o aspecto da insignificância ou da bagatela equivaleria a ensejar o poder punitivo do Estado em força maior que a demandada pelo ato do autor.

O princípio da insignificância ou da bagatela, portanto, não se comporta como uma excludente de culpabilidade, mas de uma excludente de ilicitude, ao afastar do fato comunicado sua tipicidade.  De acordo com Nucci (2014. 58), sua aplicabilidade apresenta as seguintes predisposições:

1.   é necessário considerar o valor do bem lesado com a conduta, pelo ponto de vista do autor do fato, da vítima e da própria sociedade;

2.   é necessário analisar a lesão ao bem jurídico de modo amplo, ou seja, no conjunto e na totalidade da lesão, além da reincidência do réu;

3.   é necessário, por fim, considerar, particularmente, os bens jurídicos imateriais de expressivo valor social, como aqueles que, embora não tenham valor econômico expressivo, possuam valor de interesse geral.

Dessa forma, temos que o referido princípio deve ser analisado em conexão com os postulados do esfacelamento e da intervenção mínima do Estado em matéria penal, tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material, consistindo na alegação de que lesões mínimas, de insignificante significância, aos bens jurídicos tutelados, que não chegam a legitimar com proporcionalidade e razoabilidade a aplicação das severas e estigmatizantes sanções penais, tornam o fato atípico, impedindo, portanto, a atuação desse ramo sancionatório do Direito.

3.2 CRITÉRIOS PARA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO CASO CONCRETO

Embora sem previsão legal expressa, o princípio da insignificância é reconhecido pela doutrina brasileira e pelos Tribunais Superiores, tendo o Supremo Tribunal Federal, inclusive, estipulado certos critérios para a sua observância, de maneira que a devida apreciação do princípio da insignificância não fique limitada apenas ao contexto do prejuízo econômico sofrido pela vítima, mas que seja fundamentada em uma análise integral da conduta e do agente.

Dessa forma, são quatro os requisitos estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal: a ausência de periculosidade social da ação; o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; a mínima ofensividade da conduta; e, por fim, a inexpressividade da lesão jurídica provocada (ESTEFAM, 2010, p, 120)

Desta feita, de acordo com o princípio da insignificância, o Direito Penal só deve se preocupar com as condutas mais relevantes e não condutas bagatelares, ínfimas, ou seja, aquelas condutas incapazes de causar qualquer afetação a bem jurídico protegido por lei, uma vez que é pouco provável que o legislador tenha concebido a possibilidade tipificar criminalmente condutas totalmente inofensivas ou incapazes de lesar o interesse protegido.

Uma vez confirmado que o objetivo dos tipos penais incriminadores é de proteger um bem jurídico, quando determinado fato for insignificante ou irrelevante, a conduta não deve ser tida como típica:  “Adotada a teoria da imputação objetiva, que concede relevância à afetação jurídica como resultado normativo do crime, esse princípio apresenta enorme importância, permitindo que não ingressem no campo penal fatos de ofensividade mínima” .

Por último, para a sua legítima aplicação, é imprescindível que o princípio da insignificância seja analisado do ponto de vista concreto e de acordo com cada caso, não bastando que determinada atuação detenha pena ínfima ou de que seja de pequeno valor a coisa subtraída, por exemplo.

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3.3. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO DE POLÍCIA

A aplicação do referido princípio estaria fundamentado no fato de que o delegado, enquanto operador do direito, detém a prerrogativa de filtrar condutas consideradas insignificantes penalmente, tendo como base certos princípios da política criminal, como o princípio da proteção aos bens jurídicos, da intervenção mínima, da proporcionalidade, da falta de lesividade ou ofensividade ao bem jurídico tutelado na norma penal, por exemplo.

As palavras do delegado de polícia Roger Spode Brutti esclarecem o tema:

As autoridades policiais, por suposto, constituem-se agentes públicos com labor direto frente à liberdade do indivíduo. É da essência das suas decisões, por isso, conterem inseparável discricionariedade, sob pena de cometerem-se os maiores abusos possíveis, quais sejam, aqueles baseados na letra fria da lei, ausentes de qualquer interpretação mais acurada, separadas da lógica e do bom senso. (BRUTTI, 2006).

Assim, é da essencial da atividade da autoridade policial, na análise do caso concreto, confirmar a presença da tipicidade, não podendo se limitar a aplicar letra fria da lei e fazer a subsunção ao caso concreto. É preciso verificar o grau de lesividade e ofensividade ao bem jurídico, com base na jurisprudência para fundamentar a decisão e retirar da esfera penal condutas atípicas materialmente.

O art. 5º, LXV, da CF reza que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”. Verifica-se que se atribuiu ao Juiz de Direito, pela literalidade do texto constitucional relaxar a prisão qualquer ilegal. Entretanto, surgiu na doutrina hipótese denominada relaxamento da prisão em flagrante delito pela Autoridade de Polícia Judiciária.

Assim, o Delegado de Polícia, quando no exercício de suas funções enquanto polícia judiciária, após a receber uma ocorrência policial, se convencer que o fato é atípico ou a situação não é passível de ser acatada em flagrante, conduz em liberdade o suspeito, procedendo com da prisão em flagrante.

Continuando, temos que a ausência de justa causa é invoca, via habeas corpus, para trancamento da ação penal ou do inquérito policial, quando o fato imputado ao suposto infrator não constitui crime (fato atípico), quando o crime está prescrito ou quando o sujeito atuou sob uma causa excludente de antijuridicidade. Assim, a aplicação do princípio da insignificância, como causa de descaracterização da tipicidade material, leva à ausência de justa causa para a ação penal.

Neste contexto, para a incidência do princípio da insignificância só se consideram aspectos objetivos, referentes à infração praticada: mínima ofensividade da conduta do agente; ausência de periculosidade social da ação; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e inexpressividade da lesão jurídica causada.

Assim, quando o delegado de polícia, no exercício das funções, verificar a insignificância jurídica da conduta, uma vez que não colocou em risco o bem jurídico protegido pela norma penal, que em tese, se amolda em uma figura típica formal, impõe-se que não se seja ratificada a voz de prisão ou se instaure o inquérito policial por falta de justa causa. Portanto, a falta de justa causa opera para que seja dispensável movimentar a máquina do estado repressor, quando instantaneamente se constata que o fato é atípico.

3.4 DOUTRINA

Uma parte da doutrina entende que há previsão expressa da insignificância no Código Penal Militar nos seus artigos 209 § 6º e 240 § 1º. Assim, temos que:

Art. 209 § 6º No caso de lesões levíssimas, o juiz pode considerar a infração somente como disciplinar”.

Art. 240 § 1º. “Se o agente é primário e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou considerar a infração como disciplinar” (grifo nosso, porque é nessa última figura que se encontra a expressão da insignificância, sendo as anteriores descritivas do chamado furto privilegiado). 

Dessa forma, é nítido que em ambos os casos, o legislador sopesou a insignificância para afastar o caso do Direito Penal e remetê-lo ao Direito Administrativo Disciplinar, de modo que existe um limite explícito para a afirmação geral de que na legislação pátria não há previsão do Princípio da Insignificância. A indicação dos dois casos acima do Código Penal Militar enseja o que se convencionou denominar de “exemplum  in contrarium”, o qual “impede uma generalização indevida, ao mostrar que ela é incompatível com ele, e indica, portanto, em qual direção somente a generalização é permitida.

No entanto, não se deve ignorar o previsto apontamento previsto no art. 10, § 1º, do Código de Processo Penal (CPP), o qual estabelece que “[...] a autoridade fará minucioso relatório do que tiver sido apurado e enviará os autos ao juiz competente” (BRASIL, 1941, p.3). Cabe, portanto, observar que o CPP fala em minucioso relatório, induzindo à descrição clara das diligências, bem como ao exercício de efetivo juízo de valor sobre as provas delas resultantes.

Paralelamente às questões doutrinárias apresentadas, é indiscutível que a superlotação das penitenciárias, em boa parte, proveniente da privação de liberdade daqueles que cometem pequenos delitos, associada à parca infraestrutura prisional e gastos públicos exorbitantes com a população carcerária, somados aos prós e contras do confinamento, tanto na esfera individual quanto na esfera coletiva, tiveram grande valor na valorização da aplicação do critério da insignificância no Brasil.

3.3 JURISPRUDÊNCIA APLICADA À VALIDAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO DE POLÍCIA

Nesse padrão vem à baila a anotação de Mirabete e Fabbrini:

“A excludente de tipicidade (do injusto) pelo princípio da insignificância (ou da bagatela), que a doutrina e a jurisprudência vêm admitindo, não está inserta na lei brasileira, mas é aceita por analogia, ou interpretação interativa, desde que não contra legem”.

Recentemente a Terceira Seção do STJ e o Plenário do STF uniformizaram o entendimento de que a reincidência, por si só, não impede a aplicação do Princípio da Insignificância. Isto não quer dizer que se deva aplicar obrigatoriamente a insignificância no caso de reincidência, dependendo da análise do caso concreto. O STF entende que mesmo reincidente, ao agente em caso de furto simples insignificante, poderá ainda ser fixado o regime inicial aberto de cumprimento de pena, com base no Princípio da Proporcionalidade, contrariando o texto expresso do artigo 33 do Código Penal que vedaria tal forma de regime inicial.

Na jurisprudência também tem sido comum a invocação dessa suposta imprevisão do Princípio da Insignificância de modo geral na legislação pátria, inclusive para denegar sua aplicabilidade:

“Por sua vez, também não há que se falar em absolvição por crime de bagatela, posto que no direito brasileiro o princípio da insignificância ainda não adquiriu foros de cidadania, de forma a excluir tal evento da tipicidade penal, sendo irrelevante o fato do bem subtraído ser considerado, para os fins penais, como sendo ínfimo ou desprezível.” (TJSP: 14ª Câmara Criminal, Rel. Des. Fernando Torres Garcia. Apelação Criminal no. 990.08.089790-0, j. 05.03.2009, v.u.)”.

Resumindo, a jurisprudência pátria dos tribunais superiores decidiu que, em regra, a reiteração delitiva não permite a aplicação do benefício da insignificância, objetivando evitar o fortalecimento da criminalidade, para que o crime não receba incentivos, salvo, se no caso concreto restar comprovado que a aplicação da insignificância seja socialmente recomendável. A bagatela não pode ser banalizada, não pode ser um instrumento de impunidade do agente. A dogmática deve estar ligada à questões de política criminal. A insignificância não se presta ao criminoso habitual, caso contrário estaria se descriminalizando o furto de bens considerados insignificantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A legislação comum, até o momento, não traz nenhuma previsão expressa do Princípio da Insignificância. Entretanto, este princípio tem reconhecimento tanto na doutrina quanto na jurisprudência, de modo que ambos admitem sem maiores dificuldades a aplicabilidade no Direito Penal Brasileiro do Princípio da Insignificância, seja em casos de previsão expressa (excepcionais), seja na ausência de previsão, enquanto princípio implícito derivado da lesividade ou ofensividade e da intervenção mínima, bem como da própria concepção de dignidade da pessoa humana, a qual não pode ser submetida ao calvário da seara criminal por uma bagatela.

Em seguida, se faz oportuno destacar que o Princípio da Insignificância não pode ser aplicado indistintamente a quaisquer delitos. Neste ponto a parca regulamentação legal do tema deixa lacunas indesejáveis, as quais vêm sendo preenchidas pela jurisprudência, de modo que se torna importante elencar os critérios adotados pelo STF no HC 84.412/SP para viabilizar uma aplicação escorreita e justa do referido princípio: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressividade da lesão jurídica provocada,

Ou seja, no regime democrático moderno, a ação tipificada deve revelar-se ofensiva ou perigosa para os bens jurídicos tutelados pela lei penal, fazendo com que o julgador ultrapasse a análise lógico-formal de conhecimento do fato positivado e aplique os princípios fundamentais do Direito Penal Moderno.

A partir da análise contextualizada, constatou-se que a autoridade policial pode, sim, aplicar de oficio, o princípio da insignificância na fase pré-processual da persecução penal, conforme preconizado pela doutrina e observado nos compêndios da jurisprudência, quando o delegado tem a discricionariedade de lavrar ou não o flagrante, após observar a tipicidade material do fato. Desse modo, a determinação da lavratura do auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia não se constitui em um ato automático, a ser por ele praticado diante da simples notícia do ilícito penal pelo condutor. Em face do sistema processual vigente, o delegado de polícia tem o poder de decidir da oportunidade ou não de lavrar o flagrante.

Diante do exposto, é plenamente sustentável, à luz do sistema jurídico, que o Delegado de Polícia possa, através da discricionariedade que lhe é atribuída, mediante análise do caso concreto, optar por não lavrar autos de prisão em flagrante acerca de infrações que são, em tese, materialmente atípicas.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 126.613, da 17ª Vara Federal Especializada Criminal da Seção Judiciária do Estado da Bahia, Brasília, DF, 18. De fevereiro de 2015.

BRUTTI, Roger Spode. O princípio da insignificância frente ao poder discricionário do delegado de polícia. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1230, 13 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9145/o-principio-da-insignificancia-frente-ao-poder-discricionario-do-delegado-de-policia. Acesso em: 05 ago. 2019.

ESTEFAM, André. Direito Penal. Volume 1. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 120.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal Parte Geral. V. 1, 15 ed. - Niterói: Impetus, 2013.

MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume I. 29ª. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 102.

NUCCI, Guilherme. Manual de direito penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

ROTH, Ronaldo João. O Princípio da insignificância e o Direito Penal Militar. Revista de Estudos e Informações – Justiça militar de Minas Gerais. Nº 21, março de 2008, págs. 30 a 38

TELES, Ney Moura. Direito Penal. Volume I. São Paulo: Atlas, 2004, p. 239.

Data da conclusão/última revisão: 3/8/2019

 

Como citar o texto:

PIOTTO, Daniel Piotto, SILVA, Rubens Alves da..Aplicação do princípio da insignificância pelo delegado de polícia durante a investigação criminal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1645. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/4500/aplicacao-principio-insignificancia-pelo-delegado-policia-durante-investigacao-criminal. Acesso em 21 ago. 2019.

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