RESUMO

O sistema penitenciário brasileiro se encontra, cada vez mais, à beira de um colapso, com presídios superlotados, guerras frequentes entre facções rivais e rebeliões de grandes repercussões, contando com recursos humanos e materiais insipientes para atender a essa demanda, gerada, principalmente, por elevado índice de prisões preventivas, num sistema que mistura presos condenados com presos provisórios. Por sua vez, cabe ressaltar que, a maioria dessas prisões provisórias, são executadas após uma prisão flagrante, em decorrência do tráfico de drogas. Nesse contexto, a nova Lei de Drogas, de 2006, tem sido uma das principais causas do inchaço populacional dentro dos presídios, uma vez que endureceu as penas para pequenos traficantes, que, geralmente, são dependentes químicos que comercializam drogas e não representam perigo para a sociedade, em comparação a outros delitos de alta periculosidade. Dessa forma, a audiência de custódia tem se apresentado como uma alternativa na redução do número de presos, ao ensejar a condução do meliante detido em flagrante delito à presença de um juiz, no limite máximo de, até, 24 horas após a prisão, para que sejam avaliados os aspectos legais e materiais dessa prisão, conforme estabelecido na resolução Nº 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça. Assim, tal procedimento tem a prerrogativa de, constatada qualquer irregularidade ou ilicitude durante o ato da prisão, através da autoridade competente, determinar o relaxamento da prisão do sujeito. O presente estudo, portanto, teve por objeto fazer uma análise crítica da referida resolução, em relação aos benefícios e contribuições a serem inseridos no ordenamento jurídico, no âmbito do sistema penitenciário brasileiro, correlacionando-a à Lei de Drogas.

Palavras-chave: Audiência de Custódia. Resolução Nº 213/2015. Sistema Prisional Brasileiro. Lei de Drogas.

ABSTRACT

The Brazilian penitentiary system is increasingly on the verge of collapse, with overcrowded prisons, frequent wars between rival factions and rebellions of great repercussions, with human resources and material insipient to meet this demand, generated mainly by high rate of pre-trial detention, in a system that mixes convicted prisoners with provisional In turn, it should be noted that most of these provisional arrests are executed after a flagrant arrest as a result of drug trafficking. In this context, the new Drug Law of 2006 has been a major cause of population swelling within prisons, as it has tightened penalties for small drug traffickers, who are often drug addicts and pose no danger to them. society as compared to other high-risk crimes. Thus, the custody hearing has been presented as an alternative in reducing the number of prisoners, by leading the conduct of the detainee detained in the act to the presence of a judge, within a maximum of 24 hours after the arrest. to evaluate the legal and material aspects of this arrest, as established in resolution No. 213/2015 of the National Council of Justice. Thus, such procedure has the prerogative of, found any irregularity or illegality during the act of arrest, through the competent authority, to determine the relaxation of the arrest of the subject. The present study, therefore, aimed to make a critical analysis of the aforementioned resolution, in relation to the benefits and contributions to be inserted in the legal system, within the Brazilian penitentiary system, correlating it to the Drug Law.

Keywords: Custody Audience. Resolution No. 213/2015. Brazilian prison system. Drug Law.

INTRODUÇÃO

O sistema prisional brasileiro enfrenta uma grave crise gerada pela superlotação dos presídios, com os últimos dois anos marcados por rebeliões e massacres nos sistemas penitenciários, gerados, principalmente, pelos conflitos entre facções criminosas rivais.

Uma das causas para a superlotação das penitenciárias brasileiras é o número indiscriminado de prisões provisórias efetuadas, estando essas, muitas vezes, relacionadas à crimes de baixa periculosidade, passíveis de receber penas alternativas à pena privativa de liberdade, associadas aos demorados processos criminais, durante os quais o acusado permanece encarcerado.

A falta de infraestrutura no sistema, também, acaba por agravar esse quadro, ao misturar presos de alta periculosidade a presos de menor relevância, tornando inviável pensar em políticas públicas de ressocialização de presos no Brasil. Nesses ambientes insalubres, o crime organizado encontra espaço para se fortalecer e desenvolver suas atividades, com os líderes das facções planejando e executando a venda e distribuição de drogas de dentro dos presídios, ao passo que têm a oportunidade de recrutar e aliciar nos traficantes, visto que, muitos presos, menos perigosos, para garantir a própria sobrevivência, acabam cedendo e se submetendo à hierarquia das gangues que dominam os presídios, de modo que, quando estes últimos retornam para o convívio social, retornam com outras habilidades e vícios adquiridos durante o período de encarceramento.

Além do grande contingente de presos provisórios, existe o problema das condenações desnecessárias ao regime fechado, como, por exemplo, nas hipóteses de condenações a menos de oito anos de reclusão, onde o apenado pode cumprir pena no regime semiaberto ou aberto desde o início de acordo com o Código Penal. Enquanto 53% dos presos foram condenados nesses termos, apenas 18% cumprem pena em regimes mais brandos – a maior parte cumpre regime fechado, apesar das alternativas previstas em lei. Também há milhares de casos de presos que continuam no regime fechado mesmo quando poderiam passar para o semiaberto, segundo dados do Depen.

Com presídios precários e superlotados, Tendo em vista esse cenário, as audiências de custodia surgem como um verdadeiro avanço para nossa sociedade, pois, nesse momento da oitiva do réu frente a um juiz, surge a possibilidade deste último verificar os aspectos materiais da prisão e, constatada alguma ilegalidade, optar pela homologação da prisão em flagrante, convertendo-a em preventiva, se for o caso, podendo conceder a liberdade provisória ou relaxar a prisão em casos de flagrante delito.

Assim, a implantação da audiência de custódia no ordenamento jurídico brasileiro se faz essencial pelos mais variados motivos, dentre os quais se destaca a preservação dos direitos humanos do preso, a redução dos gastos com a população carcerária, a necessidade de adequação do ordenamento jurídico interno às normas internacionais contidas nos tratados e convenções dos quais o Brasil é signatário, além de possibilitar a redução das superlotações nos presídios, uma vez que, grande parcela dos encarcerados é composta por presos em flagrante.

2 CRISE NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

O sistema penitenciário brasileiro se encontra em uma situação calamitosa, com a superlotação carcerária, o ambiente propício à violência, o grande consumo de drogas, o ócio ou a inatividade forçada dos presos e o elevado índice de reincidência onde as constantes rebeliões, fugas e massacres entre os presos são uma resposta às condições desumanas e degradantes a que são submetidos. Apesar de os tratados internacionais e a legislação interna terem estabelecido diretrizes voltadas para a proteção dos direitos do preso, a realidade é bem diferente. Além da violação dos direitos à integridade física e moral do preso, a pena passa a ter um caráter cruel e massacrante aos apenados, passando, muitas vezes, por cima da legislação existente.

A crise no sistema penitenciário, por conseguinte, está relacionada com a superlotação dos estabelecimentos, desse modo existem um conjunto de fatores para chegar a esse resultado, que são eles, o aumento de prisões efetuadas durante os últimos anos, o atraso do Poder Judiciário no julgamento dos processos, e o descaso do Estado na implantação de medidas que auxiliem a reintegração do preso na sociedade.

Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen, produzido pelo Departamento Penitenciário Nacional – Depen (2014), revelam que o número de presos no Brasil aumentou 168% de 2000 a 2014. O grande número de detentos – em dezembro de 2014, eram 622 mil – coloca o Brasil na terceira posição dos países que mais encarceram seus cidadãos.

Ainda segundo dados fornecidos pelo Infopen, dentro desse número elevado de presos, cerca de 250 mil, ou 40% do total, são presos provisórios, oriundos, em sua maior parte, de uma prisão em flagrante. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) 94,8% dos casos de prisão em flagrante resultam em prisões provisórias, uma das maiores responsáveis pela superlotação dos presídios.

Teoricamente, o objetivo das penas privativas de liberdade é a readaptação social do infrator e a prevenção da criminalidade. Na prática, a legislação penal e o sistema prisional vigentes no Brasil têm se mostrado incompatíveis com estes objetivos, em razão das condições ambientais e subumanas a que são submetidos os sentenciados nas prisões brasileiras (PEREIRA, 2013).

Maria Angélica Lacerda Marin Dassi (2008), por sua vez, assevera que:

“No panorama brasileiro, o estado desordenado do sistema carcerário constitui-se mais um dos efeitos da falência dos paradigmas da modernidade. A prisão serve tão-somente para deportar do meio social aqueles indivíduos que representam um risco à sociedade. Na perspectiva foucaultiana, constitui-se um instrumento utópico de ressocialização, criado para atender aos interesses capitalistas. Ela exclui do ângulo de visibilidade as mazelas sociais, mas não recupera o infrator e não contribui para diminuir as práticas criminosas. Estabelecendo um confronto entre as disposições legais e a realidade, observa-se que os requisitos mínimos da boa condição penitenciária, preconizados pela legislação penal brasileira estão longe de serem cumpridos. Para esta constatação, basta um breve olhar sobre as prisões existentes no país”.

Segundo pesquisas recentes, sete em cada dez presos que deixam o sistema penitenciário no país, voltam ao crime. Logo, temos uma das maiores taxas de reincidência do mundo. O preso não tem sua dignidade respeitada nas cadeias públicas, o inferno a que são submetidos só os fazem se afundar cada vez mais e enxergar que o único caminho possível para suas vidas é o crime (PEREIRA, 2013).

2.1 APLICAÇÃO DAS PENAS

Criada em 1984, a Lei de Execuções Penais dispõe sobre o procedimento executivo penal, reunindo em seus 204 artigos desde a justificativa de institucionalização, passando pelo tratamento dispensado ao preso, até os métodos judiciais, prevendo as condições para bem lidar com o detento enquanto este cumpre a pena que lhe foi estipulada.

No Brasil, a pena pode ser de três tipos: privativas de liberdade, restritivas de direito e multa, conforme o art. 32 da Lei de Execuções Penais:

Art. 32 - As penas são: 

I - privativas de liberdade;

II - restritivas de direitos;

III - de multa. (BRASIL, 1984)

Para efeitos do presente trabalho somente será analisada a pena privativa de liberdade que, conforme disposto no Código Penal, consiste na constrição do direito de ir e vir, recolhendo o condenado em estabelecimento prisional com a finalidade de, futuramente, o inserir novamente na sociedade, bem como prevenir a reincidência.   

O Código Penal, em seu artigo 33, em seu caput, prevê duas espécies de pena privativa de liberdade: a reclusão e detenção. A princípio, não há diferenças entre a pena de reclusão e de detenção, mas elas existem, mesmo que poucas, como, por exemplo, o início de cumprimento da pena, a pena de reclusão destinada ao crime de maior gravidade, podendo iniciar o cumprimento da pena em regime fechado. Por outro lado, já o delito de menor gravidade é punido com detenção, cujo regimente de cumprimento de pena poderá, no máximo, iniciar-se em regime semiaberto, no entanto nada impede que o condenado a pena de detenção cumpra sua condenação em regime fechado, por força da regressão de pena, a qual poderá ocorrer durante a execução da pena, conforme disposto no art. 33 da LEP:

Art. 33 - A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto. A de detenção, em regime semiaberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime

§ 1º - Considera-se: 

a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média;

b) regime semiaberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar;

c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado.

§ 2º - As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso:  a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado;

b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semiaberto;

c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto. (BRASIL, 1984)

Vale ressaltar que, de acordo com o Código Penal, se o condenado for reincidente o regime prisional, independente da pena deverá ser o fechado, não importando o tempo da pena. Além disso, para a pena de detenção não existe pena em regime fechado, devendo iniciar o cumprimento da pena em regime semiaberto ou aberto, o condenado reincidente iniciará o cumprimento da pena em regime semiaberto, admitindo o regime fechado apenas no caso de regressão.

No caso do regime fechado, o detento deve, obrigatoriamente, trabalhar no período diurno, em conformidade com as aptidões e ocupações do condenado anteriores ao cárcere, devendo ainda, ser compatível com a execução da pena e permanecer isolado no período noturno, de acordo com o previsto no art. 34 da LEP, em cela individual com área mínima de 6m2.

No entanto, no Brasil, com as prisões superlotadas, o isolamento noturno é impossível, com os apenados sendo abarrotados em celas coletivas, sem nenhum tipo de higiene ou salubridade.

No caso do regime semiaberto, o preso pode ser colocado em cela coletiva, desde que observadas às condições adequadas para a existência humana, ou seja, a cela deve ser arejada ter condicionamento térmico adequado, e observado sua capacidade máxima para habitação de presos.

O cumprimento desse regime dar-se-á em colônia agrícola industrial ou similar, conforme artigo 91 da LEP, sendo o trabalho externo admitido, a ser autorizado ou pelo juiz ao estabelecer a sentença ou pela direção da Unidade Prisional, desde que cumprido um sexto da pena, conforme artigo 37 da lei de execução penal.

Por último, temos o regime aberto, baseado na autodisciplina e senso de responsabilidade do condenado, não havendo obstáculos contra fugas, onde o sentenciado tem a possibilidade de trabalhar, sem vigilância, podendo, inclusive, frequentar cursos ou exercer outra atividade autorizada, devendo recolher-se durante a noite e em dias de folgas na Casa de Albergado, local designado para o recolhimento.

O condenado, porém, fica condicionado a cumprir à certas condições legais previstas no artigo 115, incisos I a IV da LEP devendo ainda, obedecer as condições judicias previstas no caput do artigo 115 da LEP, cuja recusa, em obedecer, seja ela expressa ou tácita (o comportamento do condenado, faz crer que não seguirá as regras impostas não lhe será garantido tal regime, ou seja, diante da recusa do condenado em cumprir as condições que lhe foram impostas, o juiz poderá regredir sua pena para um regime mais rigoroso.

Art. 115. O Juiz poderá estabelecer condições especiais para a concessão de regime aberto, sem prejuízo das seguintes condições gerais e obrigatórias:

I - permanecer no local que for designado, durante o repouso e nos dias de folga;

II - sair para o trabalho e retornar, nos horários fixados;

III - não se ausentar da cidade onde reside, sem autorização judicial;

IV - comparecer a Juízo, para informar e justificar as suas atividades, quando for determinado. (BRASIL, 1984)

Dessa forma, percebe-se que o regime fechado não é a única alternativa de punição, sendo, apenas a mais severa dentre as existentes, a ser utilizada nos casos em que outras medidas não sejam satisfatórias para enquadrar o delito cometido.

2.1.1 PRISÃO PROVISÓRIA 

Sendo a prisão provisória uma das principais causas para a superlotação dos presídios e, consequentemente, fator contribuinte para a grave crise carcerária que assola o país, faz-se necessário analisar seus contornos principais.

São os arts. 11 e 12 do Código de Processo Penal, os artigos principais a estabelecer as condições para a realização da prisão preventiva:

Art. 311.  Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.         

Art. 312.  A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria (BRASIL, 1941)

         

Assim, a prisão preventiva poderá ser decretada, de acordo com o art. 311, em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal pelo juiz, de ofício, por requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente ou por representação de autoridade policial, sendo limitado a tal autoridade requerê-la apenas na fase pré-processual.

Mais, adiante, o “§ 6º, do art. 319 da LEP: “a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar”. 

Desse modo, percebemos que o legislador estabeleceu que a prisão preventiva deve ser a última opção a ser adotada, quando nenhuma outra medida cautelar puder ser utilizada. Tal procedimento se justifica em face de a prisão preventiva constituir-se uma pena privativa de liberdade aplicada antes mesmo do julgamento do acusado, contrariando os princípios da presunção de inocência, do direito à ampla defesa e ao contraditório e, ainda, ao devido processo legal.

Destarte, a prisão preventiva só poderá ser decretada em crimes dolosos com pena privativa de liberdade superior a quatro anos; se houver prévia condenação por crime doloso com sentença transitado em julgado; se o crime envolver violência doméstica contra mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, visando garantir a execução das medidas protetivas de urgência; e se houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la – após a identificação, porém, é obrigatório que o preso seja liberado, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.

3 AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

A audiência de Custódia, também conhecida, simplesmente, como Audiência de Apresentação constitui ato pré-processual que garante a observância ao princípio da presunção de inocência, representado através do direito que todo cidadão preso tem em face do Estado, que é o direito de ser apresentado imediatamente à autoridade judiciária competente, tão logo seja possível, para que seja feita a oitiva do preso em flagrante e analisados os termos em que se deu essa prisão.

Assim, faz-se oportuno destacar que a Constituição de 1988 assegura a garantia da presunção de inocência, em seu artigo 5º, inciso LIII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Nas palavras de RAMOS (2016, p. 689):

A presunção da inocência consiste no direito de só ser considerado culpado de determinado delito após o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória, também denominada presunção de não culpabilidade. Há duas aplicações típicas da presunção de inocência no processo penal brasileiro: (i) no processo de conhecimento e (ii) na execução da pena criminal definitiva.

Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada e proclamada pela 183ª Assembleia da Organização das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, garantiu, explicitamente, a presunção de inocência:

XI.1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.

Dessa forma, a audiência de custódia, dentre outras garantias, possibilita a observância ao princípio da presunção da inocência, assegurando, consequentemente, os direitos e garantias concernentes à figura do preso não atingidos pelo ordenamento jurídico quando da sua prisão, uma vez que este não perde sua condição de pessoa humana nem a titularidade dos direitos como o direito à vida, à dignidade, à integridade física e moral.

Nucci define a audiência de custódia (2016, p. 1118) da seguinte maneira:

” [...] audiência realizada, após a prisão em flagrante do agente, no prazo máximo de 24 horas, para que o juiz, pessoalmente, avalie a sua legalidade e promova as medidas cabíveis (manter a prisão, relaxar o flagrante ou conceder liberdade provisória). Não há, ainda, lei estabelecendo a sua existência e qual o seu procedimento”.

Dessa forma, a audiência de custódia consiste na apresentação do preso à autoridade competente, após a prisão em flagrante, no intuito de ter avaliada a legalidade dessa prisão e os aspectos a ela concernentes, de modo garantir a integridade física do detento, com essa apresentação imediata e, assim, assegurar  a observância ao princípio da inviolabilidade à dignidade da pessoa humana, tendo por objetivos reduzir os abusos e as violências praticadas pelos agentes policiais, além de buscar reduzir os índices de prisões ilegais.

3.1 AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NOS TRATADOS INTERNACIONAIS

Apesar não ter uma delimitação específica no âmbito dos tratados internacionais, a audiência de custódia teve seu esboço definido em pactos como o Pacto de San José da Costa Rica e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, onde ambos estabeleceram a concepção de que toda pessoa presa, detida ou retida seja levada, tão logo seja possível, à presença de um juiz, sem, no entanto, sem criar institutos jurídicos.

3.1.1 PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS

Assim, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, um dos três documentos constituintes da Carta Internacional dos Direitos Humanos, aprovados pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 19 de dezembro de 1966, e aprovado pelo Congresso Nacional brasileiro por meio do Decreto Legislativo número 226, de 12 de dezembro de 1991, estabeleceu as primeiras diretrizes a respeito da audiência de custódia.

Dentre outras especificações, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos determinou que toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais, sendo que ninguém poderá ser preso ou encarcerado arbitrariamente, salvo pelos motivos previstos em lei, revelando-se, portanto, uma verdadeira cartilha de princípios garantistas no que diz respeito à invasão do Estado no direito de liberdade:

1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais. Ninguém poderá ser preso ou encarcerado arbitrariamente. Ninguém poderá ser privado de liberdade, salvo pelos motivos previstos em lei e em conformidade com os procedimentos nela estabelecidos.

2. Qualquer pessoa, ao ser presa, deverá ser informada das razões da prisão e notificada, sem demora, das acusações formuladas contra ela. (BRASIL, 1992, p. 02)

Mais à frente, em seu artigo 9º, parte 3, temos que:

Art. 9.3 Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência e a todos os atos do processo, se necessário for, para a execução da sentença. (BRASIL, 1992, p. 02)

Dessa forma, o referido pacto estabelece que qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz e terá o direito de ser julgada em prazo razoável.

3.1.2 PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA

O Pacto de San José da Costa Rica, também conhecido como Convenção Americana de Direitos Humanos foi assinado em 22 de novembro de 1969, na cidade de San José, na Costa Rica, e ratificado, posteriormente, pelo Brasil através do Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992. Dentre os diversos comandos preconizados, o Pacto de San José da Costa Rica estabelece, em seu artigo sétimo, as linhas estruturais para a audiência de custódia. A saber:

Art. 7º - Direito à liberdade pessoal:

1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais.

2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas.

3. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários.

4. Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da detenção e notificada, sem demora, da acusação ou das acusações formuladas contra ela.

5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. (CIDH, p. 03)

Assim, verifica-se que o Brasil, ao assinar e, posteriormente, ratificar o Pacto, tem a responsabilidade e o dever de verificar se os instrumentos de lei estão sendo cumpridos e se seguem as normas internacionais de Direitos Humanos e consequentemente aplicar possíveis sanções aos responsáveis, utilizando de inúmeros recursos de jurisdição.

3.2 AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NO CÓDIGO PROCESSUAL PENAL

O Código de Processo Penal, assim como os tratados internacionais, apenas, fornece um esboço dos procedimentos relacionados à audiência de custódia, sem, contudo, delimitá-la ou citá-la explicitamente, como por exemplo, no parágrafo único do art. 69, nos arts. 301, 302 e 303:

Art. 69. (...)

Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. (BRASIL, 1941)

Os arts. 301, 302, 303 do CPP, por sua vez, estabelecem as modalidades de prisão em flagrante aplicadas no Brasil:

Art. 301.  Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.

Art. 302.  Considera-se em flagrante delito quem:

I - está cometendo a infração penal;

II - acaba de cometê-la;

III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;

IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.

Art. 303.  Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência. (BRASIL, 1941)

Ao magistrado, quando do recebimento do auto de prisão em flagrante, de acordo com o art. 310 do CPP, caberá tomar uma das três decisões a seguir:

(...)

Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

I - relaxar a prisão ilegal; ou (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. (BRASIL, 1941)

Dessa forma, ao analisar as disposições acerca da prisão em flagrante contidas no CPP, a audiência de custodia, nada mais é, do que a oitiva do agente, pelo juiz, antes de decidir sobre uma das opções do art. 310 do CPP, onde ele arguirá, também, sobre a legalidade ou abusos cometidos no ato da prisão.

É importante frisar que não é a audiência de custódia, contudo, que detém a prerrogativa de determinar se a prisão em flagrante será convertida em prisão preventiva ou temporária. Independente da audiência ou não, o indivíduo só responderá ao processo preso, se estiverem presentes todos os requisitos essenciais para a definição das prisões temporária ou preventiva.

Não se pode deixar de mencionar, ainda, que, que mesmo que o agente aguarde o processo em liberdade, ao final do mesmo, sendo decidido por sentença condenatória, se for o caso, o causador será recolhido à prisão.

4.4 AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA CONFORME A RESOLUÇÃO N. 213/2015 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

Ao Brasil, enquanto signatário de ambos os pactos, cabe propiciar os meios para que essas diretrizes sejam atingidas. No entanto, até muito recentemente, não havia legislação estabelecida quanto à audiência de custódia. O Conselho Nacional de Justiça, em 20158, tentou preencher essa lacuna e, assim, contribuir para a redução na crise no sistema prisional brasileiro, ao unificar e disciplinar o instituto da audiência de custódia enquanto ato processual.

Assim, conforme a Resolução nº 213/2015 do CNJ, em vigor desde 1˚ de fevereiro de 2016, o art. 1˚ conta com a seguinte redação:

Art. 1º Determinar que toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão. (BRASIL, 2015, p.02)

A audiência de custódia tem o escopo de assegurar o direito à presunção de inocência que todo cidadão preso tem em face do Estado, devendo, portanto, o mesmo, de ser apresentado à autoridade judiciária competente, num prazo máximo de 24 horas, para que sejam averiguadas as circunstâncias que fomentaram a prisão em flagrante.

Tal procedimento tem o intuito de garantir a integridade física do detento, com essa apresentação imediata e, assim, assegurar a observância ao princípio da inviolabilidade à dignidade da pessoa humana, tendo por objetivos reduzir os abusos e as violências praticadas pelos agentes policiais, além de buscar reduzir os índices de prisões ilegais.

4.5 BENEFÍCIOS DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

O objetivo principal da audiência de custódia consiste em a autoridade judicial analisar a legalidade das prisões em flagrante, de modo que, mediante ao suspeito, o magistrado irá decidir se existe a necessidade de se converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, se a detenção pode ser relaxada, ou, ainda, se o preso pode ser liberado provisoriamente com ou sem medidas cautelares. Nessa oportunidade, além de ouvir o preso e o seu advogado ou defensor público e, na minha opinião, também o Ministério Público, o magistrado pode se informar sobre os seus antecedentes com a leitura da respectiva folha.

Cabe mencionar, nesse contexto, que a audiência de custódia, em regra, não encerra o processo. Longe disso. Apenas decide, antes mesmo de iniciado o processo, sobre a legalidade da prisão em flagrante e a necessidade ou não da prisão preventiva.

Dessa forma, assegurando a apresentação imediata, ou, ainda, “sem demora”, a audiência de custódia tem a possibilidade de reduzir a violência policial, não raramente, praticada no momento da abordagem no flagrante e nas horas subsequentes, uma vez que, os responsáveis pela apreensão/condução do preso terão prévia ciência de que qualquer alegação de tortura poderá ser levada imediatamente ao conhecimento da autoridade judicial, da Defesa (pública ou privada) e do Ministério Público, na realização da audiência de custódia, considerado momento propício para a fiscalização de eventual tortura provocada por policiais na fase investigatória, haja vista a concentração de diligências destes com o objetivo de formar o arcabouço probatório.

A audiência de custódia atua como controle jurisdicional efetivo e rápido sobre a legalidade da prisão, além de satisfazer outros objetivos essenciais para a boa administração da Justiça criminal, como, por exemplo, ensejar a desocupação das Delegacias de Polícia que, indevidamente, mantêm indiciados suspeitos de crimes por força da prisão em flagrante, em manifesto prejuízo para as atividades normais de investigação, detenção e realização de inquéritos, procurando transformar agentes de polícia e demais funcionários em improvisados guardas de presídio.

6 DA LEI DE DROGAS E SEU EFEITO NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

A atual Lei Antidrogas, de 23 de agosto de 2006, institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), inovando, assim, o tratamento penal referente a usuários e traficantes de entorpecentes ilícitos. Quanto aos primeiros, a referida lei, despenalizou o consumo, substituindo a pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos, diferentemente da Lei anterior (Lei 6.368/76), a qual previa a punição de seis meses a dois anos de detenção para os indivíduos que portassem drogas ilícitas para uso próprio. Já quanto aos segundos, elevou a pena mínima de três anos para cinco anos de reclusão, sendo somente um ano a menos da pena mínima de reclusão prevista para o homicídio simples, prevalecendo assim, o modelo repressivo na Lei de Drogas.

Dessa forma, no que diz respeito aos os crimes ligados ao tráfico de drogas, a lei supracitada enrijeceu o tratamento penal. Para o traficante a pena mínima foi elevada para 05 anos de reclusão e para quem o financia pode chegar 20 anos de reclusão. Da mesma forma ocorreu com as regras processuais, as quais proíbem a liberdade provisória e o direito de recorrer em liberdade, salvo primariedade e bons antecedentes, neste último caso.

Entretanto, apenas a vedação de liberdade provisória prevista na Lei 11.343/2006, que disciplina o tratamento ao crime de tráfico de drogas, não é suficiente para justificar a conversão de prisão em flagrante em prisão preventiva, sem que os elementos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal estejam presentes, quais sejam:  garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

6.1. IMPACTO DA LEI DE DROGAS NO SISTEMA CARCERÁRIO

Com o advento da Lei Nº 11.343 se originou o discurso de “Guerra às Drogas”, trazendo graves consequências para a sociedade como um todo, num contexto em que a exclusão social e a inclusão prisional marcaram o cenário da política criminal brasileira trazidos pelo proibicionismo gerado pela referida lei, que passou a ser a primeira opção para procedimentos relacionados ao tráfico de drogas.

Segundo dados divulgados pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) de junho de 2014, é possível verificar a intensificação do número de presos, principalmente, em função das prisões efetuadas relacionadas ao tráfico de drogas. Além disso, segundo o levantamento mencionando, a taxa do tráfico de drogas por gênero é bastante distinta, sendo 25% entre os homens e 63% entre as mulheres 20, as quais muitas vezes são esposas/companheiras de presos que levam pequena quantidade de drogas ao interior dos estabelecimentos prisionais. (DEPEN, 2014)

Carvalho (2016), afirma que houve um aumento significativo de pessoas encarceradas em razão do delito de tráfico de drogas:

Em 2007 o tráfico de drogas representava 15% da população carcerária, sendo que os delitos de roubo simples e qualificado e latrocínio atingiam 32%. Em 2011 há uma mudança substancial: o tráfico é responsável por 24,43% dos apenados, e o roubo simples e qualificado e latrocínio decrescem para 28%. 2

Assim, segundo o autor, a análise da composição da população carcerária brasileira em relação ao delito imputado permite sustentar a hipótese de que o punitivismo nacional tem como referência o delito de tráfico de entorpecentes.

Analisando a Nova Lei de Drogas, é possível identificar, praticamente, a mesma disposição presente nos arts. 28 e 33, em que este último dispõe sobre as condutas de adquirir, ter em deposito, transportar, trazer consigo ou guardar drogas, entre outras treze modalidades, bem como o artigo 28 define como crime o indivíduo que adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal.

O §2º do art. 28 versa sobre a possibilidade de a droga ser destinada a uso pessoal, sem, contudo, fixar valores ou quantidades, deixando essa categorização a critério da autoridade judicial:

§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

Destarte, não há o estabelecimento de critérios objetivos para distinguir traficantes e usuários, o que estaria intensificando a prisão de supostos traficantes, na opinião de Seibel:

Desde que a atual Lei sobre Drogas (11.343/2006) entrou em vigor, o número de presos por crimes relacionados às drogas no Brasil dobrou. A falta de clareza na lei está levando à prisão milhares de pessoas que não são traficantes, mas sim usuárias. A maioria desses presos nunca cometeu outros delitos, não sendo criminosos a priori, não tendo relação com o crime assim chamado “organizado” e portavam pequenas quantidades da droga no ato da detenção para seu próprio consumo.

Desse modo, percebe-se que a constatação do consumo ou do tráfico depende da avaliação pessoal da autoridade policial, de modo que a criminalização de indivíduos com pequena quantidade de drogas, tem resultado no aprisionamento em massa de supostos traficantes. Entretanto, não é o narcotraficante poderoso, organizado e violento que tem sido levado à prisão, mas sim o usuário de drogas e o pequeno comerciante, em virtude da discricionariedade policial e das autoridades da justiça criminal.

6.2 AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E A LEI DE DROGAS

A Lei de Drogas de 2016 estabelece em seu Art. 44, que o delito de tráfico (Art. 33) – classificado como crime hediondo – não admitiria liberdade provisória e tampouco a conversão da pena de prisão em restritivas de direitos, como prestação de serviços à comunidade.

No entanto, em maio de 2012, no julgamento do HC 104.339, o STF entendeu ser inconstitucional a previsão da Lei de Drogas que veda a concessão da liberdade provisória no caso de tráfico, reafirmando, na decisão, a concepção de que a regra deve ser a liberdade, enquanto a prisão constitui exceção.

Sensível à situação precária do sistema prisional brasileiro, relacionado, especialmente, à superpopulação carcerária, o próprio Supremo Tribunal Federal, tem editado sucessivas decisões que buscam fortalecer medidas alternativas à prisão, nos casos relacionados ao tráfico de drogas, reservado, de fato, o encarceramento, para crimes graves, que envolvem violência ou grave ameaça à pessoa.

Anos depois, em 2016, a Suprema Corte, no julgamento do HC 118.533, entendeu que o chamado tráfico de drogas privilegiado – quando o agente é primário, tem bons antecedentes e não se dedica a atividades criminosas ou integra organizações criminosas – não deve ser caracterizado como crime hediondo. Por decorrência, em tais casos, é possível, além da redução da pena de um sexto a dois terços, a fixação de regime aberto ou mesmo a substituição da pena de prisão por restritivas de direito.

Dessa forma, quando houver a prisão em flagrante e seja constatada, desde o início, a hipótese do tráfico privilegiado, em audiência de custódia, deverá ser concedida liberdade provisória ao preso, tendo em vista que, mesmo condenada, deverá a pessoa descontar sua pena em meio aberto, o que, à evidência, demonstra a desnecessidade da prisão cautelar.

No campo das drogas, as audiências de custódia podem corrigir, de imediato, uma grande injustiça. Na análise do caso, mesmo de maneira preliminar, a pessoa presa com pouca droga, com enorme possibilidade de ser usuária, pode ter seu flagrante imediatamente relaxado, podendo-se evitar a prisão de um usuário sob a falsa premissa de ser traficante.

Certamente que não se deve falar em impunidade nesses casos, uma vez que o indivíduo flagranteado responderá, sim, a um processo, podendo vir a ser condenado. A diferença é que terá a oportunidade de cumprir penas alternativas à privação de liberdade, considerando que o encarceramento nessas hipóteses, de pessoas jovens, pobres e primárias, tem-se mostrado ineficaz, custoso, com graves consequências sociais e para o sistema prisional brasileiro, contribuindo em larga escala para a superlotação das penitenciárias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Lei de Drogas instituída em 2006 é destinada ao combate do “inimigo” da sociedade, representado na figura do traficante organizado, violento e enriquecido, construída pelo Estado e pela mídia. No entanto, são os pequenos comerciantes de entorpecentes, “varejistas”, e até mesmo usuários, que estão são encarcerados em massa.

Sob o pretexto de combate às drogas, a lei enrijeceu as penas dedicadas aos traficantes, ao passo que deixou de especificar quais seriam as quantidades apreendidas correspondentes a tráfico e ao consumo pessoal. Assim, desde que entrou em vigor, a Lei e Drogas aumento, em muito, o número de prisões em flagrante associadas ao trafico de drogas, resultando no consequente aumento da população carcerária.

Num cenário onde o sistema prisional encontra-se em crise, com as penitenciárias superlotadas, o sistema judiciário abarrotado de processos, rebeliões deflagradas com vários números de mortos, o instituto da audiência de custódia tem se apresentado como uma alternativa para melhorar esse quadro e reduzir o número de presos temporários.

Ao providenciar que o flagranteado seja apresentado à autoridade judicial competente, no prazo máximo de 24 horas, a audiência de custódia evita que o encarceramento seja a primeira opção para o detido, averiguando, o juiz, nesta oportunidade, os elementos constituintes da contravenção, bem como o cometimento de possíveis irregularidades pela autoridade policial durante a realização da diligência, podendo proceder com o relaxamento da prisão ilegal, converter  a prisão em flagrante em preventiva, ou ainda, conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. 

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______. Decreto Nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em 12 ago. 2019.

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______.. Lei n.º 12.403, de 4 de maio de 2011. Diário Oficial da União. Poder Executivo, Brasília, DF, 5 maio 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12403.htm. Acesso em: 17 ago. 2019.

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Data da conclusão/última revisão: 17/8/2019

 

Como citar o texto:

SÁ, André Luiz Silva; SILVA, Rubens Alves da..O instituto da audiência de custódia nos moldes da resolução 213/2015 do Conselho nacional de justiça: contribuições para a crise no sistema prisional brasileiro e sua correlação com a lei antidrogas. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1646. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/4508/o-instituto-audiencia-custodia-moldes-resolucao-2132015-conselho-nacional-justica-contribuicoes-crise-sistema-prisional-brasileiro-correlacao-com-lei-antidrogas. Acesso em 26 ago. 2019.

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