Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar brevemente alguns dos principais aspectos que contornam o debate entre cultura e proteção ambiental, especialmente no que diz respeito ao conflito territorial advindo da implementação de Unidades de Conservação sobrepondo territórios tradicionalmente ocupados por comunidades quilombolas. São inúmeras as controvérsias ocasionadas pela lógica moderna dicotômica entre “cultura” e natureza, além dos típicos reducionismos ligados à “lógica” da modernidade. Assim, pretende-se analisar criticamente o cenário entre o discurso ambiental preservacionista e a problemática situação em que se encontram inúmeras comunidades remanescentes de quilombos.

Palavras-chave: Cultura, Comunidades Quilombolas, Sobreposição territorial, Proteção ambiental.

Abstract: This article aims to briefly review some of the one main aspects about the debate of culture and ambiental protection, especially about the territorial conflict coming by implementation of conservation units overlapping quilombolas’s comunitys. There are so many controversy caused by the ditocomic modern logic between culture and nature, beyond the typical reductions linked to modern logic. Therefore, it is intented the critical analysis between the preservationist speech scenario and the problematic situation that exists in so many remaining quilombolas’s comunities.

Keywords: Culture, Quilombolas Comunities, Territorial Overlap, Ambiental Protection.

 

INTRODUÇÃO

Este esboço, originalmente publicado no E-Book: 12º volume (Estudios Sociales) do MEMORIA DEL 56.º CONGRESO INTERNACIONAL DE AMERICANISTAS, pela Universidade de Salamanca, investe-se no papel de analisar alguns aspectos da lei que institui o regulamento do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, e sob sua implementação protecionista, os possíveis conflitos e impactos em comunidades tradicionais quilombolas e sua forma cultural de vida. Um dos principais conflitos é a chamada sobreposição de territórios quilombolas por unidades de conservação ambiental na modalidade intitulada de proteção integral.

Tendo em vista a complexidade das possíveis situações de sobreposição e todos os fatores sociais, territoriais, culturais, econômicos e existenciais que contornam esse debate, o estudo se restringiu-se a uma breve e introdutória análise do panorama jurídico e do debate entre meio ambiente e cultura[1], para além das lutas específicas e cotidianas por reconhecimento.

A lógica inicial do discurso ambientalista é eminentemente economicista: “sendo finitos os recursos do planeta, temos de economizá-los” (ACSELRAD, 2004[2]). Muito embora, a análise que leve em conta a significação existente nas relações sociais entre a sociedade e os processos ecológicos, enquanto construção do próprio significado social e existencial de um determinado grupo de pessoas, requer um exame condizente com a realidade social.

Os objetos que constituem o “ambiente” não são redutíveis a meras quantidades de matéria e energia pois eles são culturais e históricos: os rios para as comunidades indígenas não apresentam o mesmo sentido que para as empresas geradoras de hidroeletricidade; a diversidade biológica cultivada pelos pequenos produtores não traduz a mesma lógica que a biodiversidade valorizada pelos capitais biotecnológicos etc. Por outro lado, todos os objetos do ambiente, todas as práticas sociais desenvolvidas nos territórios e todos os usos e sentidos atribuídos ao meio, interagem e conectam-se materialmente e socialmente seja através das águas, do solo ou da atmosfera (ACSELRAD, 2004).

A proteção ambiental deve caminhar junto com a cultural, especialmente a cultura de quem depende da natureza para sobreviver e conservar suas tradições. Como irá se verificar, a lógica eminentemente preservacionista[3] não condiz com a realidade socioambiental das comunidades tradicionais brasileiras.

AS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO BRASILEIRAS

A atual Lei das Unidades de Conservação (o Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC, lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000), tem como fim, regulamentar os art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição da República Federativa do Brasil  - CRFB/88, e conceitua em seu artigo 2º, inciso I, a unidade de conservação como:

espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção.

A Lei do SNUC divide as Unidades de Conservação em dois grupos: (a) Unidades de Proteção Integral e (b) Unidades de Uso sustentável (artigo 7º). A existência de moradores legalmente pode ocorrer: no grupo (a)[4], na hipótese de se tratar de “Refúgio de Vida Silvestre” ou; para as hipóteses do grupo (b), que trata de “Unidades de Uso Sustentável”[5].

Ocorre que, muitas vezes as Unidades de Conservação de Proteção Integral são implementadas pelo poder Estatal sem a devida verificação da existência de pessoas que vivem na natureza (e através da natureza), de comunidades tradicionais, dos “povos da floresta”, que vivem ali há gerações e tem suas tradições o modo de vida, ameaçados por um rigor normativo abstrato.

O direito territorial quilombola fundamenta-se constitucionalmente no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e para os casos onde ocorre a mencionada sobreposição, exige-se uma leitura constitucional hermenêutica completa, que não abranja apenas a preservação da natureza, mas também, da cultura que vem preservando a mesma a centenas de anos. “pois o reconhecimento de domínio das terras ocupadas pelos remanescentes de quilombo, bem como a criação das reservas extrativistas, são formas de reconhecer direitos que preservam os recursos naturais renováveis” (TRECCANI, 2006:211).

A CRFB/88 reconhece e consagra inúmeros direitos e garantias, abarcando o seu extenso e esparso rol “a proteção do patrimônio cultural brasileiro (art. 215, caput, §1º, 3º, I e II) enquanto manifestação, e especialmente, as que resguardam as tradições dos povos participantes do processo civilizatório nacional” (BATISTA; CAVALCANTE; FORMIGA, 2017, 176).

Se compreensão e interpretação dos artigos 215, 225 e 68 do ADCT da CRFB/88 for feita de forma holística, o aparente dilema discursivo introduzido entre cultura e natureza apaga-se com uma leitura conjunta e contextual que os problemas socioambientais necessariamente exigem. O “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo” e a preservação da cultura dialogam com o equilíbrio do meio ambiente[6], pois a cultura dos povos e comunidades tradicionais exige historicamente uma relação direta e existencial com a natureza. Muito embora, o que muitas vezes ocorre é a ignorância perpetrada pelo discurso estritamente “protecionista” adotando-se esse viés em boa parte da legislação ambientalista.

Tais questões normativas, na prática, ocasionam inúmeros conflitos de cunho territorial e institucional[7] sobre o direito de reconhecimento e titulação do território onde ainda vivem os remanescentes quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais

Os remanescentes quilombolas – para além de sofrerem quanto ao não reconhecimento de seus direitos territoriais – ainda passam por problemas quanto à realização do modo de vida tradicional do grupo:  sabe-se que a roça de toco, a extração de madeira para fabricação de casas e o plantio dos alimentos são essenciais para a manutenção dos costumes das comunidades (BATISTA; CAVALCANTE; FORMIGA, 2017:175).

A exemplo do contexto do impasse territorial-ambiental, a implantação e delimitação de unidades de conservação sobrepondo quilombos que ali vivem e sobrevivem centenariamente, acaba por cercear às práticas costumeiras dessas comunidades, e muitas vezes sancionando-as por crimes ambientais através de autuações feitas aos quilombos em valores irrazoáveis às circunstâncias.

O conflito da sobreposição de territórios quilombolas por UCs desencadeia inúmeros outros conflitos e implicações. Pode-se citar as autuações ambientais, justificadas pela não inclusão de costumes tradicionais no plano de manejo, ou pela ameaça expropriatória pelo agente Estatal, e até mesmo o terror psicológico desencadeado pela criminalização de costumes básicos de subsistência (BATISTA, 2019: 28)

Muitas vezes tais autuações ocorrem pela morosidade dos procedimentos administrativos necessários ao reconhecimento dessas comunidades quilombolas, ou ainda, por conta da inexistência de um plano de manejo que possibilite (jurídico/administrativamente) a correlação da entre a comunidade e natureza ou memos uma ponderação razoável com a inteligência da exceção prevista no Código Florestal em seu artigo 42[8], e do próprio texto constitucional.

O debate torna-se ainda mais relevante, quando o fim buscado envolve populações historicamente excluídas pela existência de inúmeros problemas amarrados à homérica dicotomia homem-natureza.

A preservação das culturas e tradições quilombolas, relaciona-se diretamente à luta diária por reconhecimento.

O termo quilombo ganhou nova reconfiguração no período pós-libertação de escravos, ganhando significado sociocultural, fato extremamente importante para a “análise do processo de inserção social das populações negras na sociedade brasileira” (SANTOS, 2014, p. 26). Ainda, Santos ao trazer os múltiplos discursos e práticas presente no campo quilombola, ressalta que

A lutas por reconhecimento de direito das comunidades quilombolas devem ser compreendidas a luz do fenômeno da etnicidade, na medida em que há um processo de demarcação das identidades que se constroem no campo político através da afirmação da diferença em busca da igualdade. O campo de lutas, que denomino campo quilombola, se constitui como espaço simbólico onde o que está em jogo é o poder de impor uma visão do mundo social acerca das identidades e da unidade dessas comunidades. A afirmação das diferença exige, por parte dos sujeito, que lancem mão da múltiplas estratégias (jurídicas, burocráticas, econômicas, políticas, científicas), pois, nessa luta das classificações, impõem-se relações de força materiais e simbólicas entre os diversos interesses em jogo. Os múltiplos interesses em jogo no campo quilombola passam a ser mediados pelos discursos e práticas doas agente que “jogam” com as classificações do que seja igualdade, diferença ou mesmo quilombola, num processo dinâmico e relacional” (SANTOS, 2014:44).

Estabelecer um diálogo entre reconhecimento de identidade, cultura e do território ocupado por comunidades quilombolas é de extrema importância manutenção da cultura de comunidades que marcam sua identidade por suas tradições, seu modo de vida e costumes. 

Sobre a coexistência de comunidades tradicionais em Unidades de Conservação Girolamo Domenico Treccani (2006:212-214) esclarece:

O Art. 42. da lei do SNUC determina: “As populações tradicionais residentes em unidades de conservação nas quais sua permanência não seja permitida serão indenizadas ou compensadas pelas benfeitorias existentes e devidamente realocadas pelo Poder Público, em local e condições acordados entre as partes”. Os artigos 35-39 do Decreto nº 4.340, de 22 de agosto de 2002, regulamentam como será realizado o reassentamento. Esse processo: “respeitará o modo de vida e as fontes de subsistência das populações tradicionais (Art. 35)”. (...) O Art. 39 apresenta como deve se dar o processo de transição: “Enquanto não forem reassentadas, as condições de permanência das populações tradicionais em Unidade de Conservação de Proteção Integral, serão reguladas por termo de compromisso, negociado entre o órgão executor e as populações, ouvido o conselho da unidade de conservação. § 1° O termo de compromisso deve indicar as áreas ocupadas, as limitações necessárias para assegurar a conservação da natureza e os deveres do órgão executor referentes ao processo indenizatório, assegurados o acesso das populações às suas fontes de subsistência e a conservação dos seus modos de vida. § 2° O termo de compromisso será assinado pelo órgão executor e pelo representante de cada família, assistido, quando couber, pela comunidade rural ou associação legalmente constituída. § 3° O termo de compromisso será assinado no prazo máximo de um ano após a criação da unidade de conservação e, no caso de unidade já criada, no prazo máximo de dois anos contado da publicação deste Decreto. § 4° O prazo e as condições para o reassentamento das populações tradicionais estarão definidos no termo de compromisso”. (...) Segundo Rocha (2004, p. 27), só quem tem uma atuação incompatível com a conservação deve ser afastado: “Na realidade não poderia existir um sistema de unidades de conservação que exclua a princípio populações que representam a riqueza da diversidade humana e cultural das reservas naturais do Brasil, que desenvolveram durante gerações práticas que se apresentam harmônicas com o ambiente, e muito têm que contribuir com o processo de desenvolvimento de conceito de sustentabilidade. Somente aquelas populações que sejam incompatíveis com estas é que o sistema exclui.

O debate sobre a regularização fundiária de territórios quilombolas requer uma análise crítica pormenorizada, pois o número de conflitos é imenso e crescente diante da morosidade Estatal e o desrespeito a realidade plural composta pelas inúmeras diversidades culturais brasileiras[9].

Contudo, o objetivo dessa pesquisa, além de analisar criticamente alguns aspectos da sobreposição ambiental, é ressaltar a importância e relevância de estudar e reler a complexidade dos conflitos norteadores dessa realidade específica de sobreposição fundiária, dentre as inúmeras possíveis no atual cenário brasileiro: a sobreposição de territórios quilombolas por Unidades de Conservação, e dentro dessa estrutura conflituosa, dar ênfase à relação entre o discurso normativo ambiental e o desrespeito às culturas das comunidades que vivem em locais sobrepostos pela “proteção ambiental”, locais ocupados, muitas vezes, por séculos.

 

DIALÉTICA ENTRE NATUREZA E CULTURA

A ideia de proteção integral sob a lógica “preservacionista pura” lembra o chamado por Antônio Diegues de “mito moderno da natureza intocada”, remetendo-se a um simbolismo que representaria áreas “intocadas e intocáveis pelo homem” (DIEGUES, 2001:53). Essa mesma lógica fundamentaria a chamada incompatibilidade entre o homem e a natureza ou entre cultura e natureza.

Herrera Flores introduz sua abordagem sobre a dicotomia ocidental do “cultual versus o natural”, exemplificando a justificação mitológica da torre de babel, uma torre construída com o intuito de promover proteção contra um próximo dilúvio, proteção do homem contra a natureza, e ilustra como as formas tomadas pela sociedade “moderna ocidental” vigora-se sob uma certa autoconsciência na maneira de construir-se politicamente em bases dualistas, dicotômicas e reducionistas, tal como a ideia de “ser civilizado”; a dualidade do “civilizado versus o bárbaro; ou a ideia de culto e inculto sob a mesma lógica. O mito de origem do “Jardim do Éden” pressupõe o sair da natureza, separar-se dela, de um local paradisíaco onde o homem e a natureza viviam e conviviam harmonicamente pressupõem a mesma dicotomia, como se a natureza fosse um lugar de onde o homem devesse se elevar (2004, p. 37-39). Este “elevar” acaba por justificar a ideia de homem civilizado, e afastá-lo “elevando-o” de quem não se “eleva” da natureza. 

A dialética não é compatível com a interculturalidade é necessário transformá-la em uma “tenção dialógica”, não deve-se convencer, nem vencer, nem tolerar (à espera do momento de mudar o próximo), é preciso compartilhar, reconhecer, e chegar ao topos comum entre culturas, talvez assim seja possível “enfrentar” uma realidade plural e seus problemas (PANIKKAR, 1990:51-53).

No brasil, a principal corrente defensora do equilíbrio entre natureza e cultura é o Socioambientalíssimo, preocupando-se com a elaboração de um sistema sustentável, condizente com a justiça social e a coexistência harmônica entre natureza e culturas tradicionais dentro das unidades de conservação (FRANCO; DRUMMOND, 2012: 359-360). A dicotomia inflexível e segregacionista presente na lógica preservacionista eminentemente utilitarista é incompatível com a atual leitura constitucional e com o “ideário socioambientalista: o homem pela natureza. A natureza pelo humano” (LIMA, 2002:18). 

 

A LUTA POR RECONHECIMENTO E A LÓGICA DA RACIONALIDADE MODERNA

A discussão sobre a ocupação de territórios quilombolas contraria o desenho moderno individualista de propriedade herdado do ocidente e “importado” pelo sistema jurídico brasileiro.

A propriedade moderna e o individualismo têm seus conceitos entrelaçados no ocidente sob ideais marcadamente liberais. Assim, a construção da propriedade moderna encaminha-se com a ideia positiva que introduz um sistema jurídico baseado em direitos objetivos e subjetivos, onde o individual transmuta-se sobre uma ficção de soberania e através do contrato social o estado surge como aquele que detém o poder de todos e por todos e aquilo que não estiver prescrito na norma estatal desenha-se como liberdade do indivíduo[10].

A noção de indivíduo na sociedade moderna pressupõe o reconhecimento ainda que como indivíduo de liberdade própria integrante de uma diversidade cultural específica. Essa liberdade quando reconhecida a priori e “desrespeitada” provoca um novo impulso por reconhecimento social de determinada cultura. Tal processo dentro de uma estrutura institucionalizada pela sociedade moderna, ganha um desenho e força específica na luta por reconhecimento de determinado grupo (HONNETH, 2014:7-11).

A mesma discussão sob o enfoque ambiental permeia a racionalidade moderna que regra a abstração normativa e o controla funcionamento da máquina estatal “As contradições entre a racionalidade ecológica e a racionalidade capitalista se dão através de um confronto de diferentes valores e potenciais, arraigados em esferas institucionais e em paradigmas de conhecimento” ensejando o confronto dialético sobre o processo de legitimação, também normatizado pela mesma racionalidade, acabando por servir como instrumento de poder (dentro dos mecanismos institucionalizados) na luta por reconhecimento (LEFF, 2001:134).

A lógica da unidade econômica rural e o estilo étnico próprio de uma cultura remetem a racionalidades sociais constituídas como sistemas complexos de ideologias, valores e práticas que são irredutíveis a uma lógica unificadora. Neste sentido, a racionalidade ambiental não é a expressão de uma lógica, mas sim, o efeito de um conjunto de interesses e de práticas sociais que articulam ordens materiais diversas que dão sentido e organizam processos. Estes processos especificam o campo das contradições e relações entre a lógica o sistema econômico e a positivação de leis de proteção à natureza (LEFF,2001:134).

O pensamento moderno amarra-se à uma razão universalizadora, ha existência de um “homem racional”, que traz uma ideia simplificadora da definição aristotélica de homem como “zoon lógon échon” através do qual ou quem o logos transita. Ocorre que “a razão não é todo o logos” existe uma certa inteligibilidade “espiritual e material” ligada a definição de logos, nas palavras de Panikkar (1990:42) “podemos expresar esto de una forma algo más existencial, usando otra perspectiva y, simplemente, diciendo que el individuo no es todo el hombre.” .

Ainda segundo o autor, há de se superar um triplo reducionismo da concepção moderna de ser humano: (a) “a razão não é todo o logos”, “irracional y arracional” não são sinônimos dos termos “ilógico y alógico”, traduzindo a expressão final do parágrafo anterior “o indivíduo não é todo o homem”; (b) “O logos não é todo o homem”, todos os esforços de transcender o logos tem como logos o veículo, tal abrangência refere-se a capacidade de sentir de inteligir, analisar, interpretar outras perspectivas de compreensão, outras formas de consciência, não pode ser reduzido a um único denominador comum. Poderia se afirmar que o homem não é toda humanidade; (c) “o Homem não é todo o ser” ou a humanidade não é toda realidade (PANIKKAR, 1990:42-44).

Dentro de um cenário desanimador, onde a normatividade carrega consigo a chamada racionalidade universalizadora, os “povos brasileiros” transformam-se legalmente em “povo” (artigo 225 da Constituição Federal - CRFB/88), ignorando-se a complexidade dos indivíduos e suas culturas. Resta assim, lutar por reconhecimento de direitos e por uma releitura de institutos jurídicos que condizem com a realidade. Só podemos alcançar uma clara consciência sobre os requerimentos futuros de uma justiça social “si junto con la evocación de las luchas libradas sobre el suelo normativo de la Modernidad nos aseguramos de las demandas que aún no han sido satisfechas en el proceso histórico de reclamo de las promesas de libertad institucionalizadas” (HONNETH, 2014:11).

 

CONCLUSÃO

O problema da sobreposição de territórios quilombolas por unidades de conservação se alarma cada vez mais, tendo em vista a morosidade do Poder Público de resolver os litígios existentes e a interpretação positivada da lei causam mais problemas do que os especificamente narrados no presente artigo.

Muito embora, os “direitos não podem ser deturpados em nome da desestrutura e imobilidade administrativa” (LIMA, 2002: 19).  

Quanto a discussão sobre direito ao uso da terra no local onde comunidades quilombolas sobrevivem, releva-se a realidade de que muitos quilombos dependem da subsistência do solo, do uso da madeira extraída no próprio terreno para a fabricação de casas e do plantio do próprio alimento. Para tanto, a inteligência contida nos própria artigo da CRFB/88 resguardam tal equilíbrio, assim como, a lógica das Unidades de Uso Sustentável no SNUC.

Nos casos de sobreposição, deve-se viabilizar, pelo plano de manejo  das Unidades (ou outros meios), uma preservação que transcenda a discussão economicista e sobre a propriedade, incluindo-se ao debate, questões sócio econômicas e garantias e objetivos constituintes basilares, como o do partido 3º, III, CRFB/88.

A convivência harmônica da cultura humana e da natureza deve dialogar com preservação da cultura enquanto natureza, em um país multicultural como o Brasil, tamanha interculturalidade representa uma conquista democrática.

 

REFERÊNCIAS

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BATISTA, Leonardo Matheus Barnabé. Cultura, território e ambiente: uma análise jurídica da sobreposição de territórios quilombolas por unidades de conservação no Jalapão. 2019. 100 f. Dissertação (Mestrado em Direito Agrário) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2019. Disponível em: < http://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/9882>. Acesso em setembro de 2019.

BATISTA, Leonardo Matheus Barnabé; CAVALCANTE, Jéssica Painkow Rosa; FORMIGA, Armando Soares de Castro. RESERVAÇÃO DA CULTURA E OS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS: OS POVOS QUILOMBOLAS NO ESTADO DO TOCANTINS E O DILEMA ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS E SANÇÕES AMBIENTAIS. In: CAðLA, Bleine Queiroz; BOAS, Marco Anthony Steveson Villas; CARMO, Valter Moura do (Org.). DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL. 7. ed. Palmas: Escola Superior da Magistratura Tocantinense, 2017. p. 163-180.

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WALTER, Carlos. GONÇALVES, Porto. Os Descaminhos do Meio Ambiente. São Paulo: Editora Contexto, 2006.

 

NOTAS:

[1] Para uma análise mais completa sobre o tema, ver: BATISTA, Leonardo Matheus Barnabé. Cultura, território e ambiente: uma análise jurídica da sobreposição de territórios quilombolas por unidades de conservação no Jalapão. 2019. 100 f. Dissertação (Mestrado em Direito Agrário) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2019. Disponível em: < http://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/9882>.

[2] Versão digital sem numeração de páginas.

[3] As posições teóricas preservacionistas e conservacionistas no Brasil fundem-se “em uma visão única sobre o que a proteção à natureza deveria representar”; ver FRANCO; DRUMMOND, 2012:343-346.

[4] Artigo 8º da CRFB/88 diz que: “O grupo das Unidades de Proteção Integral é composto pelas seguintes categorias de unidade de conservação: I - Estação Ecológica; II - Reserva Biológica; III - Parque Nacional; IV - Monumento Natural; V - Refúgio de Vida Silvestre”.

[5] Sobre, ver artigos 13 a 21 da Lei 9.985, de 18 de julho de 2000.

[6] Sob uma análise das micro-realidades que compõem o imenso patrimônio histórico e plural brasileiro, tal fato é facilmente averiguável, muito embora, ainda que sob análise estritamente abstrata e “positiva”, afiguram-se um vasto rol normativo que compõem a relação entre cultura e meio ambiente: “a Política Nacional do Meio Ambiente, instituída pela Lei n° 6.938, de 31 de agosto de 1981; o Novo Código Florestal, instituído pela Lei n° 4.771, de 15 de setembro de 1965; a Política Nacional da Biodiversidade, cujos princípios e diretrizes foram estabelecidos pelo decreto 4.339, de 22 de agosto de 2002; e, dentre os que dão maior ênfase à proteção cultural: o Plano Nacional da Cultura, previsto na Constituição desde 2005, pela Emenda Constitucional 48111, e o Sistema Federal de Cultura, instituído pelo Decreto n° 5.520, de 24 de agosto de 2005.” (MENDES, 2009:146-147,)

[7] Referindo-se ao moroso processo que viabiliza a efetividade do artigo 68 do ADCT da CRFB/88, previsto pelo Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, que apesar do trâmite burocrático, é atualmente o único instrumento legal (regulamentar) para o reconhecimento, delimitação, e emissão dos títulos coletivos de propriedade que as comunidades quilombolas atualmente tem, e apesar disso, encontra-se sendo questionado pela ADI 3239 – STF.

[8] Referindo-se à Áreas de Preservação Permanente e de Reserva Legal.

[9] Situações jurídicas são inúmeras, Girolamo Domenico Treccani expõem algumas das possíveis situações de conflito: “(...) Terras quilombolas incidentes em terras públicas federais, estaduais e municipais, devolutas ou arrecadadas e matriculadas em nome da União, mas ainda não destinadas; a) Terras quilombolas incidentes em terras públicas ilegalmente registradas em nome de “grileiros”; b) Terras quilombolas incidentes em terras públicas ocupadas por posseiros não quilombolas; (...) Terras quilombolas incidentes em terras públicas federais afetadas; a) Terras quilombolas incidentes em terrenos de marinha, várzea, marginais de rios e ilhas; b) Terras quilombolas incidentes em unidades de conservação; c) Terras quilombolas incidentes em áreas de segurança nacional (áreas localizadas na faixa de fronteira e militares); d) Terras quilombolas incidentes em terras indígenas; (...) Terras quilombolas incidentes em terras particulares legalmente constituídas (propriedade privada)” (TRECCANI 2006:201- 234).

[10] Ver VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005: 703-720.

Data da conclusão/última revisão: 11/9/2019

 

Como citar o texto:

BATISTA, Leonardo Matheus Barnabé..Breve análise sobre a sobreposição de territórios quilombolas por unidades de conservação ambiental. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1654. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-ambiental/4548/breve-analise-sobreposicao-territorios-quilombolas-unidades-conservacao-ambiental. Acesso em 25 set. 2019.

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