Logo após uma semana da revelação do ex-procurador-geral da República, Rodigo Janot, de sua suposta intenção de matar um dos ministros da Suprema Corte brasileira, um episódio de lesão corporal, com o uso de uma faca, por um Procurador da Fazenda a uma juíza, volta a estarrecer a sociedade em geral, entre profissionais do meio jurídico e cidadãos jurisdicionados.

Se de um lado, juristas cobram pela segurança dos átrios forenses para que desfilem com seus ternos suntuosos pelos corredores sem temor, a clientela dos serviços forenses se vê pasma com o reflexo da violência, tão conhecida das periferias, assumindo forma no sacrossanto espaço da Justiça. Afinal, cogita-se, se aqueles a quem a lei incumbiu por zelar pela decisão punitiva das infrações estão a cometê-las, quem mais velará pela centelha de segurança pública na qual o trabalhador deposita sua fé diariamente para voltar vivo à sua casa? Ou como nos resume Bobbio, “quem custodiará os custódios?” (2000, p. 31)[1].

A repetição do histórico de comportamento agressivo por atores do mundo jurídico revela um indicativo de que algo gangrena o sistema de valores desse espaço profissional. De fato, existem determinadas realidades de vida cuja sistemática repetição proporciona ao seu telespectador o mimetismo de repeti-lo, sorvendo para si a conduta que se lhe evidencia. Um desses modelos de violência ocorre no ambiente de trabalho. Como lembra Minayo, “existem profissões em que o estresse laboral é muito elevado, havendo uma evidente associação com comportamentos violentos”. (2010, p. 282)[2].

Após a revelação do ex-procurador-geral da República, pouco (senão nada) se viu sobre a relevância do tratamento da saúde mental dos intérpretes da justiça para uma melhor qualidade de vida e método preventivo de casos análogos. Vozes ecoaram no sentido de restrição ao porte de arma, injúrias sobre o estado mental do declarante, necessidade de detectores de metais nos fóruns, entre outras medidas repressivas e preventivas de caráter generalista. Mas o aspecto do cuidado da subjetividade humana pareceu acordar timidamente após o segundo episódio midiático de violência.

Tomar a causa de qualquer dos contextos como um caso particular dos envolvidos é revelar total desconhecimento acerca das nuances que cercam a rotina da operação de uma dos sistemas de justiça mais lentos (CNJ - Justiça em números, 2016), caros (consome 3,8% do PIB em comparação aos modestos 0,14% nos EUA e 0,32% na Alemanha) e desacreditados (FGV - IPLC Brasil, 2015) do mundo. Apontar tratamento médico aos atores dos episódios envolvidos não exculpa o real centro do problema: o Judiciário brasileiro.

E não é coincidência que as vítimas de ambos os episódios convirjam em suas posições de magistrados, ou quiçá, que a violência do mundo jurídico venha tomando forma para atingir aqueles que detêm algum poder decisório ou de controle no sistema. A questão contemporânea precisa ser discutida sob a ótica do pensamento: como vem operando os atores da Justiça?

A memória tênue precisa relembrar casos como o do magistrado parado numa blitz, sem carteira de habilitação ou placas no carro, mas que deu ordem de prisão à agente de trânsito que o teria lembrado a singela obviedade dele “não ser Deus”. Precisamos lembrar ainda do caso do magistrado do Rio de Janeiro que exigiu judicialmente ser chamado de doutor (não tendo sequer um mestrado) pelo porteiro do condomínio, fazendo seu “relevante” caso chegar ao STF (vide recurso do Agravo de Instrumento 860.598). Isso para ficarmos no primeiro grau e não nos lembrarmos do alto escalão das imoralidades, como a do desembargador de Santa Catarina (talvez canibal na menos imoral das hipóteses) que afirmou em rede social que iria para uma festa onde “comeria juízas”; do atual governador carioca e ex-juiz, mantenedor de uma necropolítica[3] de chuva de balas; ou, ainda, da confiança do senador Jucá ao afirmar a necessidade de um misterioso “grande acordo com o Supremo, com tudo”, entre tantas outras situações da história judiciária desse país...

Diante de todo esse contexto, mais estarrecedor do que os episódios atuais de agressão, talvez seja acreditar que ainda existem resistentes e sãos juristas em atividade na amência que se tornou o meio de trabalho, repleto de desprezo, grosserias, arrogâncias e vaidades. Lakatos e Markoni, ao lembrarem-se do estudioso americano Ross, pioneiro nas pesquisas de controle social, apontam que quatro são os instintos humanos nesse aspecto: “simpatia, sociabilidade, senso de justiça e ressentimento ao mau trato”. (ROSS apud LAKATOS; MARKONI, 2006, p. 236)[4].

As consequências desse último instinto podem ser avaliadas a partir de um experimento na Teoria dos Jogos chamada “jogo do ultimato”. Nessa experiência interativa, dois jogadores devem dividir determinada quantia de coisas. O primeiro jogador deve fazer uma proposta de divisão da forma que desejar, cabendo ao segundo aceitar a parte oferecida ou rejeitar, mas, na hipótese de rejeição, tanto o primeiro quanto o segundo ficam sem nada. O pensamento esperável seria aceitar qualquer coisa, pois, racionalmente, qualquer coisa é melhor do que nada. Porém, estudos[5] demonstraram que se a divisão não for minimamente justa (perto da metade), a maior parte das pessoas prefere ficar sem nada a ser injustiçado; de modo a, também, impingir ao outro uma perda e se regozijar por isso.

A aplicação da teoria nos episódios atuais tem mostrado um reflexo de um ressentimento latente de injustiça diante de tantos maus tratos do sistema judiciário. Aflorado em ódio, a catarse da violência é uma consequência que transforma o menos esperado dos homens bons num justiceiro. É do jusfilósofo alemão Ihering a lição:

Para a justiça, que violou o direito, inexiste acusação mais grave do que a encarnada na figura do homem que se transforma em criminoso pelo senso de justiça lesado, pois ele é a sombra ensanguentada dessa justiça. A vítima de uma justiça venal ou parcial quase chega a ser expulsa, à força, da senda do direito, transformando-se em vingador e executor de seu direito pelas próprias mãos e, quase sempre, ultrapassa o fim imediato, tornando-se inimigo declarado da sociedade, um ladrão e homicida. (IHERING, 2000, p. 94)[6]

A premissa de que injustiças e imoralidades resultam na metamorfose do injustiçado no justiceiro, do violado em violador, da vítima para algoz, acarretará inevitavelmente a falência da própria sociedade. Mas as reais disfunções, todavia, estão muito além da subjetividade desses sujeitos; “estão nas mangas dos Senhores Ministros/ Nas capas dos Senhores Magistrados” (Titãs, Vossa Excelência).

[1] BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 7ª ed., São Paulo: Paz e Terra, 2000.

[2] LAKATOS, Eva Maria; MARCONI; Maria de Andrade. Sociologia geral. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2006.

[3] Termo cunhado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe. Excelente artigo a respeito de Rômulo de Andrade Moreira tece maiores considerações: A “necropolítica” e o Brasil de ontem e de hoje. Justificando: 2019. Disponível em: < http://www.justificando.com/2019/01/08/a-necropolitica-e-o-brasil-de-ontem-e-de-hoje/>. Acesso em 04 out. 2019.

[4] MINAYO, Maria Cecília de Souza. Vulnerabilidade à violência intrafamiliar. In: Violência Doméstica: Vulnerabilidades e Desafios na Intervenção Criminal e Multidisciplinar. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.

[5] Ver PAIVA, Fabiana Silva. O processo de decisão sob a perspetiva da economia comportamental e da neurociência. 2013. Tese de Doutorado.

[6] IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. São Paulo: Martin Claret, 2000.

Data da conclusão/última revisão: 4/10/2019

 

Como citar o texto:

LIMA, Lucas Correia de..A Justiça no jogo do ultimato. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1661. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/cronicas/4588/a-justica-jogo-ultimato. Acesso em 23 out. 2019.

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