INTRODUÇÃO

As transformações paradigmáticas na função do Estado na sociedade pós-moderna, decorrentes da globalização e da formação de blocos internacionais fortes, cerceiam sua esfera de atuação nos campos político, econômico e legislativo, submetendo o Judiciário a uma pressão terrível, fazendo com que a decisão judicial mude seu perfil[1]. Inevitavelmente, o juiz passa a ser uma figura de grande responsabilidade não só jurídica, mas também política. Com o Judiciário posicionando-se no centro dos debates em torno do aperfeiçoamento da democracia brasileira, a figura do juiz passa a ter grande enfoque e a ser elemento fundamental na unidade central do sistema jurídico.

1. A distância entre imparcialidade e neutralidade

            A figura do juiz plenamente neutro e do juiz imparcial pode ser vista da seguinte maneira: a primeira é algo de difícil concepção e que deve ser evitado, e a segunda, uma necessidade. Impossível conceber o juiz neutro, imune a quaisquer influências ideológicas, axiológicas ou pessoais. Robert Alexy, em sua teoria da argumentação jurídica, já afirma que os juízos de valor são indissociáveis de qualquer decisão, especialmente das de caráter jurídico. Tal conclusão serve de premissa para a construção de toda a sua tese presente no livro. Já a realidade no Judiciário brasileiro parece não permitir o devido respeito ao princípio da imparcialidade, devido a inúmeras razões que nos levam a problemas, institucionais ou não, presentes dentro do sistema jurídico e fora dele. Dito isso, importante esclarecer os conceitos de imparcialidade e neutralidade.

            A idéia de imparcialidade está diretamente ligada à questão do juiz natural e, processualmente, à condição pessoal do juiz-homem-individual.[2] O juiz, como terceiro imparcial, não poderá ter interesse algum no conteúdo da decisão. “Interesse”, nesse caso, com a conotação de vontades pessoais que trariam claros vícios à decisão.

            Imparcialidade é condição primordial para que um juiz atue. É questão inseparável e inerente ao magistrado não tomar partido, não favorecer qualquer parte, enfim, não ser parte[3]. Tamanha é a importância de tal condição que a expressão juiz imparcial pode ser rigorosamente vista como um pleonasmo, uma vez que este princípio encontra-se no rol daqueles imprescindíveis ao decurso do devido processo legal, sendo um direito fundamental do cidadão.

            A neutralidade, por sua vez, traz a idéia de independência subjetiva na formação da convicção do juiz, o que é facilmente visto como algo impossível de ser concebido, mediante o exposto inicialmente. Por mais que o juiz tente ser  frio, lógico e racional, sempre a sua psique irá se inclinar para algum dilema ou aporia que o desvie para crenças, traumas ou influências ideológicas que contornam intuitivamente a sua personalidade.

            Além da impossibilidade subjetiva de um juiz neutro, fica evidente a completa rejeição da idéia de neutralidade nas concepções modernas do Direito. Tanto é que não se fala em tal coisa como princípio da neutralidade. Essa idéia é algo ligado à tradição do direito continental, o antigo modelo de juiz no Estado Liberal, oriundo de um contexto pós-revolução francesa, onde o poder dos juízes era um inimigo a ser combatido. Daí nasce a escola da exegese e o famoso juiz “boca-da-lei”, com métodos hermenêuticos indiferentes ao contexto social.[4]

            Portanto, a neutralidade, nesse sentido, é algo a ser combatido, pois a própria lei exige do juiz as suas ponderações pessoais (LICC, art. 5º) - contanto que ligadas à auto-referência do contexto jurídico (princípios constitucionais, costumes, analogia) - representando, assim, até uma limitação ao princípio do livre convencimento, uma vez que este engloba também a liberdade para se convencer quanto ao direito e justiça da solução a ser dada no caso concreto.[5]

            É fato que uma visão distorcida da imparcialidade pode forjar um modelo de juiz alheio ao que se passa fora dos autos, dotado de uma conduta pouco participativa no processo judicial. Bem como uma neutralidade ante as demandas do ambiente que contorna e influencia o Direito: a sociedade. Imparcialidade não implica indiferença às questões sociais ou falta de comunicação com as partes. Pelo contrário, o interesse do juiz para contribuir com o andamento do processo - desde que comprometido apenas com a neutralização do conflito em questão - representa papel de grande relevância, fator essencial inclusive no pensamento de Luhmann[6], que vê o procedimento como um mecanismo social de legitimação da decisão final a ser dada pelo juiz.

            Essa participação ativa do juiz no processo não é uma realidade predominante no sistema jurídico brasileiro. A formação do magistrado se baseia na absorção da conjuntura positiva jurídico-estatal (em grande parte, procedimental). Falta nas escolas de magistratura o estudo científico da filosofia da linguagem (para o aprimoramento no campo da hermenêutica) aliada à sociologia jurídica, conscientizando que o papel exercido pelo juiz adentra responsabilidades políticas, pois toda decisão judicial traz reflexos no sistema político. O estudo do Direito e de ciências afins permite um maior poder de abstração, mais generalização nas decisões (no sentido de ampliação da perspectiva) e mais filosofia do que uma experiência prática jamais traria[7]

2. A parcialidade oriunda da estrutura interna do Judiciário

            Notória é a gravidade da crise no Poder Judiciário. A função a ser adotada por este órgão no contexto de atual crise do Estado Social é importantíssima, desempenhando um papel importante na defesa de direitos pela técnica que os cientistas políticos denominam “promocional”, consistente em elaborar programas que visem um desenvolvimento material dos direitos, desvencilhando-se do tradicionalismo que impunha à legislação uma bipolaridade formal entre “certo” e “errado”, entre “justo” e “injusto”. Evitando, de forma mais efetiva, a inefetividade das leis: os direitos sociais passam a tomar a forma de princípios gerais, exigindo dos juízes uma participação mais ativa em sua aplicação.

            A condição atual do Poder Judiciário parece estar em descompasso com esse papel vislumbrado pela ciência do Direito. Além disso, na base dessa crise, encontra-se a questão da alienação da figura do juiz. Acredita-se que a corrupção dentro das diversas instâncias e a grave deficiência na estrutura interna do judiciário acarreta o problema objeto dessa discussão: o mito da imparcialidade.

            Em primeiro lugar, como foi dito anteriormente, imparcialidade é condição inerente ao juiz. Uma vez sem ela, não poderá ser considerado como apto a decidir. Uma das razões que permitem essa condição é o método de promoção profissional da magistratura, baseado numa ascensão que depende da avaliação de magistrados em condição superior ao do avaliado. Um sistema que, claramente, permite o distanciamento do juiz com seu modelo ideal. Para ascender a um patamar profissional melhor, o juiz se vê obrigado a atuar paralelamente a tribunais superiores, que pregam uma uniformização jurisprudencial condizente com suas decisões prévias, deixando de lado os princípios processuais que mais lhe garantem liberdade e comprometimento com a função do Poder Judiciário: o livre convencimento e a independência funcional. Conseqüentemente, sua decisão se baseará em critérios não relacionados à síntese do processo, e resultará parcial, havendo um interesse pessoal no julgamento da questão, prevalecendo o chamado “carreirismo”.[8]

            Na concepção da teoria social sistêmica de Niklas Luhmann, o Direito, como subsistema social, trabalha com o código operacional direito/não direito, além da auto-referência, o que o torna uma especialização funcional autopoiética dentro da sociedade. O juiz, como observador interno ao sistema, deve atuar de forma condizente a esse código, auto-referencialmente, ou seja, criando o direito baseado no direito, e adotando os critérios do próprio sistema (não implicando, porém, em legalismo exagerado). A forma de hierarquização do Judiciário brasileiro permite o que se chama de corrupção de código, por parte do juiz, enquadrando a sua conduta com a atuação de tribunais superiores, favorecendo assim, à criação de uma raça de juízes “domesticados” pelos plenos que os avaliam. Desse modo, sua parcialidade fica evidente quando decide baseado em interesses profissionais, ou seja, critérios oriundos de outros subsistemas sociais que não o Direito.

Esclarecido isto, percebe-se que tal situação culmina com a impossibilidade de alcance do modelo ideal de juiz-político[9], uma vez proposto por Carlo Guarnieri, com alta liberdade, alta independência e atuação social.

3. A parcialidade oriunda da corrupção

            A corrupção entre os magistrados é um notório fator que prejudica o princípio da imparcialidade. Irrelevante detalhar aqui as diversas práticas ilícitas que acontecem entre litigantes, advogados e juízes. Esse problema não tem relação direta com as características da instituição do procedimento judicial ou com a estrutura do Judiciário, mas sim com a natureza humana. É um problema que existe e sempre existirá, pois parte de um indivíduo em si.

            A teoria dos sistemas sociais de Luhmann serve de prisma para explicar essa questão. O homem, como unidade central do sistema psíquico e orgânico, encontra-se fora da sociedade. Visto sob essa perspectiva, o sistema psíquico (homem) representa uma organização de elementos que operam com o pensamento, liberto num ambiente que atua como unidade para uma diferenciação por parte da sociedade. Sistema e ambiente são claramente diferenciados a partir dessa organização (que mantém vivo o sistema), onde o ambiente não tem poder de determinação sobre o sistema, e vice-versa. O homem como sistema psíquico, portanto, encontra-se liberto da atuação da sociedade e de seus subsistemas sociais, inclusive o Direito. A corrupção, segundo estudos científicos, é uma patologia de índole psicológica, com formação dentro do sistema psíquico, estando, assim, fora da seara de atuação das estruturas com especialização funcional da sociedade (direito, política, economia, etc.)[10]. Contudo, pode ser trabalhada por essas mesmas estruturas. O que pode ser feito é a criação de mecanismos que impeçam a fruição de tal prática, ainda que sendo uma forma de resolução concentra, superficial e mecanicista, como em Descartes. Mas aí que está a questão exposta sob a ótica luhmanniana: é a única forma de lidar com o problema, haja vista a maneira como ele nasce.

CONCLUSÃO

            Percebe-se que a verdadeira reforma a ocorrer no judiciário é a mudança de mentalidade por parte dos juízes[11], além, claro, da estrutura de promoção profissional, que acarreta graves vícios na prestação jurisdicional. Esses problemas permitem o desenho de um modelo defeituoso de juiz, distanciado de sua verdadeira função

            Com juízes sem interesse próprio no processo, mas com interesse social a ser revelado na sentença, a imparcialidade distancia-se da condição de mito e o Judiciário abre suas portas através do princípio da inafastabilidade[12].

NOTAS

(1) Campilongo, 2002: 29-30

(2) Portanova, 1995:77

(3) Portanova, 1995:79

(4) Campilongo, 2002:30

(5) Portanova, 1995: 245

(6) Luhmann, 1980: 32-35

(7) Luhmann, 2004: 54 – “Legal education can afford to provide more abstraction, more generalization of decisions, and even more philosophy than will ever be applied in practical work”.

(8) Rocha, 1995

(9) Guarnieri, 1993: 36

(10) Luhmann, 2004

(11) Dallari, 2002: 82

(12) Portanova, 1995: 82

BIBLIOGRAFIA

CAMPILONGO, Celso F. (2002). Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad.

CAPPELLETTI, Mauro. (1999). Juízes Legisladores?. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira (trad.). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor.

DALLARI, Dalmo de Abreu. (2002) O poder dos juízes. São Paulo: Editora Saraiva.

GUARNIERI, Carlo. (1993). Magistratura e política in Italia. Pesi senza contrappesi. Bologna: II Mulino.

GUERRA FILHO, Willis Santiago. (1997) Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-Moderna: introdução a uma teoria social sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado.

LUHMANN, Niklas. (2004). Law as a Social System. Klaus A. Ziegert (trad.). Oxford Social Legal studies. Edição original: 1993.

__________. (1980). Legitimação pelo procedimento. Brasília: Editora da Universidade de Brasília.

PORTANOVA, Rui. (1995). Princípios do Processo Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado.

ROCHA, José de Albuquerque. (1995).

 

Como citar o texto:

GOMES, Rafael Benevides Barbosa..Imparcialidade no judiciário brasileiro: análise crítica e fundamentos sistêmicos. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 155. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/pratica-forense-e-advogados/929/imparcialidade-judiciario-brasileiro-analise-critica-fundamentos-sistemicos. Acesso em 5 dez. 2005.

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