O Direito brasileiro consagra a Teoria natalista, ou seja, adquire personalidade jurídica, o indivíduo que nasce com vida. Desta maneira, ainda que a lei reconheça e ponha a salvo desde a concepção certos direitos do nascituro, sabe-se que, efetivamente, tais direitos constituem mera expectativa de direitos, que serão concretizados em função do nascimento com vida. Neste sentido, pontua Silvio Venosa: (VENOSA, 2004) “ O nascituro é um ente concebido que se distingue de todo aquele que não foi ainda concebido e que poderá ser sujeito de direito no futuro, dependendo do nascimento, tratando-se de uma prole eventual; isso faz pensar na noção de direito eventual, isto é, um direito em mera situação de potencialidade” Entretanto, a posição do nascituro, apesar de centro de muitas polêmicas, não levanta maiores dúvidas acerca de ter ou não personalidade jurídica. Questiona-se sobre os seus direitos, mas sabe-se que sua personalidade jurídica estará formada com o nascimento com vida – coroando a Teoria Natalista - defendida pelo Direito pátrio. Em lado oposto da questão, situa-se, entretanto, outro indivíduo, o natimorto.

Pela definição da palavra, entende-se como natimorto, o indivíduo que “nasceu morto”. Tal situação para o Direito gera uma dificuldade intransponível, pois se o indivíduo não chegou a nascer, é fato de que não chegou a ter uma personalidade jurídica. Nesse sentido, indica Orlando Gomes (GOMES, Orlando, 2001) “ a personalidade civil do homem começa do nascimento com vida. Não basta o nascimento. É preciso que o concebido nasça vivo. O natimorto não adquire personalidade.” Desta forma, tais ensinamentos levam a fácil constatação que se o indivíduo não adquire personalidade jurídica, sua existência não gera quaisquer efeitos jurídicos.

Entretanto, tal afirmação, apesar de lógica, é falsa e recebe sua contradita.

Pois, apesar de não possuírem personalidade jurídica, os natimortos recebem atenção do Estado que se preocupa com seu registro. Nesse sentido, cita-se a Lei 6.015 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), em particular no seu art. 53: ”No caso de ter a criança nascido morta ou no de ter morrido na ocasião do parto, será, não obstante, feito o assento com os elementos que couberem e com remissão ao do óbito.”

Ora, como pode o Estado registrar quem juridicamente “nunca existiu”?

Ou não seria “existir” uma expressão correta para o caso em questão?

Uma tentativa de resposta poderia se basear numa preocupação estatística no sentido de construir melhores planejamentos sociais, ou ainda na hipótese de que todo natimorto foi obrigatoriamente um nascituro, e como tal, “sujeito de direitos”, ainda que carentes do nascimento para sua concretização. Porém, do ponto de vista jurídico, tal atitude esbarra, no mínimo, numa dificuldade intransponível: o natimorto não tem (nunca chegou a ter) uma personalidade jurídica e sendo assim vale a repetição:

Como registrar o que juridicamente “não existe”?

Como pode um indivíduo que não tem personalidade jurídica gerar efeitos jurídicos?

Por registrar, entende-se que seja consignar por escrito e neste sentido mais superficial, não haveria problema algum com o registro do natimorto. Porém, em um sentido jurídico, registrar é ato de assentar, em livro próprio, ato jurídico praticado ou títulos e documentos. Ora, se o natimorto não adquire personalidade jurídica, como poderá ter sua existência constatada para o Direito a ser escrito em livro próprio? Ademais, se ao adquirir personalidade obtém-se capacidade e com esta a aptidão genérica p/ ter direitos e contrair obrigações, entende-se que o natimorto, não tendo personalidade não teria tal capacidade de possuir direitos, nem de contrair obrigações, sendo portanto seu registro juridicamente injustificado.

Porém, o assunto é tormentoso e a existência do natimorto faz surgir uma série de paradoxos. Pois se de um lado é verdade que o natimorto não adquire personalidade jurídica e logo não tem capacidade (no sentido de possuir aptidão para ter direitos e contrair obrigações), sua existência, por outro lado, traz efeitos jurídicos, pois para a mãe gerará uma série de direitos relacionados à gravidez. E se é verdade que tais direitos não são próprios do natimorto, é inegável que sua “existência” é que impulsionou o surgimento destes direitos. Ou seja, um indivíduo sem personalidade jurídica consegue gerar efeito jurídico.

Neste sentido, embora sem ter nascido, o natimorto “existe” para o Direito. Desafiando toda a Teoria Natalista.

Instaura-se o paradoxo. Pois como negar capacidade de gerar efeitos jurídicos (direitos e obrigações) e em outro momento dar esta capacidade?

Pois se aceita a tese de que o natimorto gera efeito jurídico, estar-se-ia por conseqüência, relativizando a importância da personalidade jurídica, vez que o natimorto consegue gerar efeitos jurídicos sem a possuir, por outro lado, negar tais efeitos jurídicos ao natimorto, apenas pela inexistência da personalidade (em função da Teoria Natalista) é admitir uma visão muito estreita do Direito. É resumi-lo aos Códigos e leis, numa visão assaz positivista.

São incontestáveis os efeitos jurídicos gerados pelo natimorto e apesar do Direito apenas admitir a personalidade aos nascidos vivos, o natimorto consegue gerar direitos sem possuir tal capacidade.

Destarte, a doutrina depara-se diante um grande paradoxo que questiona o clássico conceito da personalidade jurídica, pois a situação do natimorto nos remete, no mínimo, a uma dificuldade que exige uma revisão do conceito estabelecido. Personalidade jurídica, sendo a aptidão genérica de ter direitos e contrair obrigações, apresenta-se como uma idéia incompleta. Dessa forma, creio que melhor seria admitir a personalidade jurídica como uma eventual aptidão para ter direitos e contrair obrigações. A situação do natimorto é emblemática e corrobora a exceção. Como o Direito é uma Ciência dinâmica, típica do subjetivismo do homem e das suas relações sociais, caberá aos estudantes, advogados e juristas, o estudo no sentido de reconstruir o entendimento jurídico destas relações que renascem a cada dia, pois é inegável que as exceções continuarão a existir, e se é verdade que juridicamente o natimorto pode não existir, é igualmente verdade que sua existência não poderá ser resumida a leis e ultrapassados conceitos doutrinários do Direito brasileiro.

 

Fontes:

GOMES, Orlando – Introdução ao Direito Civil, 18ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001

VENOSA, Silvio de Salvo – Direito Civil: parte geral, 4ª ed., São Paulo, Atlas, 2004

 

Como citar o texto:

VASCONCELLOS, Milton Silva de..O natimorto: relativizando a personalidade jurídica. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 169. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil/1093/o-natimorto-relativizando-personalidade-juridica. Acesso em 12 mar. 2006.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.