Aspectos de natureza jurídica

              Muitas e bem variadas foram as inovações trazidas ao Direito Empresarial pela Lei de Recuperação de Empresas, a tal ponto de haver criado novo ramo do direito, a que se pode dar o nome de Direito de Recuperação de Empresas. No atual estágio do direito brasileiro não há falar em “novo Direito Falimentar” ou “nova Lei de Falências”. No que tange aos crimes contra a empresa, relatados na Lei de Recuperação de Empresas e ao procedimento penal as inovações foram verdadeiramente revolucionárias e tendentes a eliminar as fraudes e a impunidade, asseguradas pelo antigo regime instituído pela revogada Lei Falimentar, promulgada pelo Decreto-lei 7.661/45.

              Justiça seja feita à antiga Lei Falimentar, pois não cabe a ela a culpa pelo surgimento da “indústria de falências”, com tantos males causados ao país. Ao nosso modo de ver, a Lei era clara e não autorizava qualquer interpretação em favor da impunidade dos crimes falimentares. O que houve foi a criação de novo direito, forjado maliciosamente pelo próprio Judiciário para perpetuar a fraude e garantir a impunidade aos criminosos. Como, entretanto, o sistema está revogado, será preferível esquecê-lo para não se “gastar muita cera com mau defunto”. Vamos então valorizar as conquistas do novo sistema.

              O passo primordial dado pela nova Lei foi o de passar para a justiça criminal o trato dos crimes por ela previstos e ação imediata à constatação de crime. Se o assunto é crime, não deveria ser objeto da justiça civil. O segundo passo consta do art.200 da Lei de Recuperação de Empresas, declarando revogados os arts.503 a 512 do Código de Processo Penal, compondo o capítulo denominado “Do Processo e do Julgamento dos Crimes de Falência”. Doravante esta questão é tratada na Lei de Recuperação de Empresas, capítulo VII, com três seções. A primeira seção, com o nome de “Dos crimes em Espécie”, descreve as espécies delituosas; a segunda, nos arts.179 a 182; prevê disposições comuns aos três tipos de procedimentos concursais: recuperação judicial, recuperação extrajudicial e falência; a terceira seção fala sobre o procedimento penal nos art.183 a 188. Essas disposições estabelecem um rito sumário para este problema.

Competência

              Compete ao juiz criminal da jurisdição em que tenha sido decretada a falência ou concedida a recuperação judicial ou homologado o plano de recuperação  extrajudicial conhecer  da ação penal pelos crimes previstos na Lei de Recuperação de Empresas (Art.183). Note-se que a Lei não usa a expressão “crimes falimentares”. A natureza desse procedimento é marcantemente penal, malgrado os crimes tenham sido apontados no processo falimentar e a denúncia ser feita ainda na área cível.

              A questão da competência foi aspecto primordial, acarretando por isso muitas conseqüências no foro competente; há princípio universal no sentido de que o foro competente predominante no Direito Penal é o do local em que o crime for cometido, o que não acontece no Direito de Recuperação de Empresas; o foro competente é o do local do juízo que tiver conhecido o procedimento concursal. Há, portanto, a simbiose entre o antigo sistema concursal e o novo, embora bastante mitigado.

              Assim sendo, compete ao juiz da vara em que tenha sido decretada a falência, ou concedida a recuperação judicial ou homologado o plano de recuperação judicial conhecer dos crimes e verificá-los e fazer iniciar a ação penal, mas compete ao juiz criminal conhecê-la.

Formação do processo

              A apuração dos crimes inicia-se com a “Exposição do Administrador Judicial”. Decretada a falência, deve o Administrador Judicial apresentar em cartório, até trinta dias o relatório da situação da empresa, em autos apartados, exposição circunstanciada. Nesse relatório, o Administrador Judicial exporá as causas da falência, o procedimento do empresário ou da sociedade empresária por seus representantes legais, antes e depois da sentença declaratória da falência, e de outras pessoas responsáveis. Apontará os atos que possam constituir crimes relacionados com a recuperação judicial ou com a falência, ou delito comum conexo a eles. Apontará os possíveis agentes dos crimes apurados. Assim diz o art.186. Ao falar  em “delito comum conexo a eles”, a Lei abre o leque de figuras delituosas, evitando discussões sobre a possível  ilegalidade dos atos praticados pelos dirigentes da empresa, que o novo Código Civil chama de “administradores”.

              Com base nas conclusões decorrentes de sua exposição, o Administrador Judicial indicará os responsáveis por esses crimes e pela falência da empresa, e, em relação a cada um descreverá o respectivo tipo legal aplicável. O pedido será instruído com laudo do perito-contador encarregado do exame  da escrituração da empresa em concurso. Ainda que não sejam encontrados documentação e livros fiscais, o que acontece muitas vezes, o laudo do perito-contador é obrigatório, nem que seja para dizer que nada foi encontrado.

              Ao se dizer que a exposição do Administrador Judicial deverá ser “circunstanciada”, esclarece que é pormenorizada, com a análise dos fatos. Esse relatório só poderá ser feito numa fase adiantada do procedimento: será preciso que os bens já tenham sido arrecadados, e tenha sido elaborado o quadro-geral de credores, os livros da empresa já tenham sido examinados pelo perito-contador que elaborará o laudo contábil.

              A exposição circunstanciada será o segundo relatório do Administrador Judicial. Deverá ele fazer o primeiro relatório, apresentando exposição semelhante. Essa primeira exposição judicial deverá ser feita no prazo de 90 dias, contados a partir da assinatura do termo de compromisso.

              A segunda exposição do Administrador Judicial deve conter os mesmos elementos da primeira, mas será mais minuciosa, sendo por isso chamada de “circunstanciada”. O prazo para a sua apresentação é de 90 dias a contar da entrega da primeira exposição. Podemos então dizer que o prazo máximo para a entrega da “Exposição Circunstanciada” será de 90 mais 90 dias a contar da posse do Administrador Judicial.

              Os crimes previstos na Lei de Recuperação de Empresas(assim fala a Lei, não falando em “crimes falimentares) são de ação pública incondicionada; não está condicionada a pedido de interessado, mas é movida diretamente pelo Ministério Público que atuar no processo de falência ou recuperação. Louvável a nova terminologia adotada, por vários motivos: em primeiro lugar, pode haver crimes na fase de recuperação judicial, sem haver falência; em segundo lugar, o termo “falimentar”, “falência”, “falitário” e outros cognatos, perderam parcialmente expressão e significado no novo ramo do Direito Empresarial, criado com a LRE.

A denúncia

                          Se não houver provas a produzir ou se estas já tiverem sido produzidas, vão os autos ao Representante do Ministério Público, que poderá oferecer denúncia ou não. Se o RMP achar que não houve crimes  concursais, não encontrando fundamento para a denúncia não o faz.. Neste caso, os autos ficam em cartório, à disposição do Administrador  Judicial ou dos credores; se estes não se conformarem com o parecer do Curador de Massas Falidas(RMP). Poderão destarte oferecer queixa-crime contra os dirigentes da empresa falida.

                          É possível, porém, que o juiz não se conforme com o parecer do RMP, por ser de opinião de que estão patenteados crimes. Remeterá então os autos para o Procurador Geral, que poderá adotar parecer do promotor ou oferecer denúncia. Portanto, se o RMP achar que não há motivo para denúncia e o juiz concordar com esse parecer, o Administrador Judicial também, e os credores aceitarem, não se poderá queixar de falta de iniciativa. 

                           IMPORTANTE E DELICADA DISPOSIÇÃO CONSTA DO ART.187-2º: EM QUALQUER FASE PROCESSUAL, SE SURGIR INDÍCIOS DE CRIMES PREVISTOS NA LRE, O JUIZ DA FALÊNCIA OU DA RJ CIENTIFICARÁ O RMP. INTERPRETAMOS ESSA DISPOSIÇÃO COMO O FRACIONAMENTO DA AÇÃO PENAL A UM CRIME OU GRUPO DE CRIMES. ASSIM SENDO, O RMP, AO SER COMUNICADO DA EXISTÊNCIA DE CRIME, OU SE ELE PRÓPRIO CONSTATAR ESSA EXISTÊNCIA, PODERÁ DAR INÍCIO Á AÇÃO PENAL, SEM PRECISAR DA EXPOSIÇÃO CIRCUNSTANCIADA, OU DE BLOCO DE CRIMES. PODERÃO SER ABERTOS VÁRIOS PROCESSOS PENAIS, SEM AS DELONGAS QUE CARACTERIZAVAM OS PROCEDIMENTOS DA ANTIGA LEI FALIMENTAR.

                           Vejamos o prazo para o oferecimento da denúncia: o art.187-1º da LRE remete a matéria ao art.46 do Código de Processo Penal, vale dizer, o prazo de cinco dias se o autor estiver preso. Entretanto, poderá o RMP, estando o réu solto ou afiançado, decidir aguardar a apresentação da exposição circunstanciada, tendo então o prazo de 15 dias para oferecer denúncia.

Efeitos da denúncia

                            A denúncia feita pelo Curador, ou queixa-crime feita pelo Administrador Judicial ou pelos credores acarreta AÇÃO PENAL contra os dirigentes da empresa falida. Poderão ser condenados inclusive á prisão. A condenação impedirá legalmente o empresário de exercer profissões cujo registro exija atestado de antecedentes, como leiloeiro, corretor de imóveis, corretor de seguros, representante comercial autônomo, e várias outras.

                             É outra  inovação de profundo alcance: separar a sorte da empresa da sorte dos empre-sários que a dirigem. Era realmente absurdo o que acontecia no regime anterior: a ira judicial dirigia-se à empresa, salvaguardando-se porém a figura dos causadores da desgraça dela: os seus dirigentes. Transferindo para a pessoa do dirigente da empresa a responsabilidade e os rigores da lei pelos crimes que ele cometeu em nome da empresa, a LRE desferiu golpe de morte à ação funesta dos “arareiros”, figura agora destinada ao declínio.

                              Parece-nos que agora os efeitos da Lei não param na empresa, mas se estendem às pessoas que tenham participado da sua bancarrota. É o que diz claramente o art.179:

            “Na falência, na recuperação judicial e na recuperação extrajudicial de sociedade, os seus sócios, diretores, gerentes, administradores e conselheiros, de fato ou de direito, bem como o administrador judicial e o gestor judicial, equiparam-se ao devedor ou falido para todos os efeitos penais decorrentes desta Lei, na medida de sua culpabilidade”.

              Em seguida, o art.180 diz que: a sentença que decreta a falência ou concede recuperação judicial é condição objetiva de punibilidade das infrações penais descritas nesta Lei”. A prática de infrações penais é própria de pessoas físicas, de pessoas naturais, e não de pessoa jurídica, neste caso, a empresa. Por isso, às pessoas naturais se dirige a sanção penal. E chegaremos à mesma conclusão a respeito dos efeitos da condenação por crimes previstos na LRE como o impedimento para o exercício de cargo ou função em Conselho de Administração, diretoria ou gerência das sociedades sujeitas à LRE, bem como à impossibilidade de gerir empresa por mandato ou gestão de negócio. Portanto, as pessoas naturais é que ficam inabilitadas ao exercício das atividades empresariais.

              E não deve passar desapercebida a afirmação do art.179: fala também em “gerentes”. O gerente é, na maior parte das vezes funcionário da empresa. Nos golpes anteriores, nas “araras”, os donos da empresa, escondiam-se atrás do gerente, jogando em cima dele todas as atribuições diretivas das atividades empresariais. O gerente assumia então, consciente ou inconscientemente, o papel de “laranja” e podia alegar desconhecimento do que faziam seus patrões. Doravante, seja  como for, ele vai  assumir responsabilidade pelos crimes, juntamente com seus patrões.

              A inabilitação para o exercício das atividades empresariais atinge a pessoa da empresa falida, mas, como seus dirigentes a ela se equiparam para os efeitos penais, infere-se que eles estão inabilitados também. Esses efeitos não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença, e perdurarão até cinco anos após a extinção da culpabilidade, podendo, contudo, cessar antes pela reabilitação penal.

              Vai mais adiante a ação corretiva da Lei para corrigir os males do antigo regime. Assim que transitar em julgado a sentença condenatória, será notificada a Junta Comercial, como também outros órgãos para que tomem as medidas necessárias para impedir  novo registro em nome dos inabilitados. Assim sendo, não podem eles constituir nova empresa ou ingressar como sócio de outra, ou ocupar cargos nos órgãos da S/A. O autor deste artigo conhece uma dupla de “arareiros” que aprontou a falência de 27 “araras” em São Paulo, durante mais de vinte anos. Nunca tiveram condenação. Excetua-se um deles que teve prisão decretada, mas porque sua filha a requereu por não ter recebido pensão alimentícia a que o réu tinha sido condenado.

              Notam-se muitas críticas à nova Lei, alegando alguns o caráter de inconstituciona-lidade, mormente no que tange aos aspectos penais. Diremos entretanto o que está ocorrendo: nossa Lei foi calcada na lei francesa de 1985, que substituiu outra de 1967. E no entanto, já se encontra nas mãos de professores da Universidade de Paris, a Panthéon-Sorbonne, a nossa Lei traduzida e estão preparando a reforma do sistema francês com base na nossa Lei, que eles consideram extraordinária.

A prescrição dos crimes

              Este aspecto era o calcanhar de Aquiles no antigo regime, embora não na Lei Falimentar(de1945).  A LRE arredou esse problema, declarando no art.182 que a prescrição dos crimes previstos na LRE reger-se-á pelas disposições do Código Penal. Começa a correr do dia da decretação da falência ou da concessão da recuperação judicial.

               A prescrição era a arma predileta da “indústria de falências” para garantir a impunidade. Durante  todo o transcorrer do projeto da LRE, e teve essa luta a duração de doze anos, lutamos para reverter a situação. Ao transferir as normas da prescrição para o Direito Penal, alargou-se o prazo prescricional, mas não foi isso o grande triunfo. Ao constatar o crime deve o RMP intentar a ação penal e, não o fizer, poderão outros interessados entrar com queixa-crime. Não fica mais na dependência de inquérito judicial, que garanta o decurso do prazo.

Foi um passo extraordinário no sentido de coibir fraudes.

Sebastião José Roque – Bacharel, mestre e doutor em direito pela Universidade de São Paulo –Professor da Universidade São Francisco - Autor da primeira obra de Direito de Recuperação de Empresas publicado no Brasil – Autor do anteprojeto inicial, de que resultou a Lei de Recuperação de Empresas.

Nota: o autor deste artigo coloca-se à disposição gratuita dos leitores, para quaisquer esclareci-mentos sobre a Lei de Recuperação de Empresas, podendo se dirigir por nosso intermédio ou diretamente pelo e-mail: sebasroque@ajato.com.br 

 

Como citar o texto:

ROQUE, Sebastião José..A Lei de Recuperação de Empresas estabelece novo estatuto penal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 169. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/1100/a-lei-recuperacao-empresas-estabelece-novo-estatuto-penal. Acesso em 13 mar. 2006.

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