Conforme sufragado pelo famoso ditado popular: não há nada tão ruim que não possa piorar!  E, de fato, a piora no ambiente jurídico, sobretudo no tocante à proteção das garantias e direitos individuais, deu-se recentemente, com a publicação da Lei nº 13.606/18, que, a pretexto de autorizar o parcelamento do Funrural e outras questões atinentes a este tema propriamente, trouxe em seu bojo, quase que por engano ou de maneira despercebida, uma escamoteada e sorrateira permissão para a União efetuar o bloqueio de bens de seus devedores, sem a necessidade de obter - para tanto - a (sempre indispensável) ordem judicial (!).

Dessa maneira, a teor do art. 25 desta lei, basta que a Procuradoria da Fazenda Nacional (PGFN), ao identificar determinado bem pertencente ao seu devedor, o notifique para a realização do pagamento do débito tributário já inscrito em dívida ativa, no prazo de 5 (cinco) dias, sob pena de, não o fazendo, tornar aquele bem indisponível.

Como não poderia deixar de ser, muito embora essa norma ainda dependa de regulamentação para a sua implementação, várias vozes já se levantaram contra tal procedimento, denominado de “averbação pré-executória” pela PGFN, que defende a sua legalidade ao argumento, em suma, de se tratar do meio apropriado para se afastar o risco de fraude à execução do crédito tributário inscrito na dívida ativa.

Por outro lado, as alegações contrárias a tal medida giram em torno de sua patente inconstitucionalidade, porquanto violadora do devido processo legal e, por conseguinte, do exercício ao contraditório e a ampla defesa, isso sem se falar na sua notória característica de sanção política, tantas vezes já reprimida pela Suprema Corte, a exemplo dos julgados que culminaram com a edição, dentre outros, dos verbetes nº 70, 323 e 547, que, objetivamente, vedam a apreensão de bens por parte do Estado quando esta se dá com o objetivo de obrigar ou forçar o contribuinte a pagar tributos ou quitar débitos.

O que mais salta aos olhos, no entanto, é que dita inconstitucionalidade, neste caso em particular, parece ter contaminado essa norma até mesmo antes do seu nascimento, se considerado como tal a sua publicação.

Melhor explicando, em atendimento ao disposto no Parágrafo Único do art. 59 da Carta Magna, que prevê que a lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis, foi editada a LC nº 95 no longínquo ano de 1988, que, nesse exato sentido, estabeleceu em seu artigo 7º que “o primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação”, observados, em especial, os princípios de que, excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto e não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão, como se infere dos incisos I e II deste dispositivo legal.

Pois bem, sem prejuízo de outros princípios que, a toda evidência, também restaram violados, é certo que legislador (intencionalmente ou não, é irrelevante) deixou de observar os ditames contidos na referida lei complementar e, principalmente, no citado art. 7º, incisos I e II, na medida em que, mesmo fazendo constar no art. 1º da Lei 13.606/18 que esta se prestaria à instituição do “Programa de Regularização Tributária Rural (PRR) na Secretaria da Receita Federal e na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional”, houve por bem aproveitar essa espécie de “carona legislativa”, para incutir em seu texto o malsinado artigo 25, que, como visto, trata, única exclusivamente, da chamada “averbação pré-executória”, ou seja, da nova modalidade de bloqueio de bens que prescinde de ordem judicial.

Com efeito, levando-se em consideração que, a teor da LC nº 95, a lei ordinária só deve conter um único objeto e âmbito de aplicação, não podendo, por sua vez, tratar de matéria estranha àquela especificada em seu artigo primeiro ou que com o objeto lá mencionado não se vincule, seja por afinidade, pertinência ou conexão, como sustentar que um dispositivo que trata, especificamente, do aludido bloqueio de bens, possa ser admitido no meio de outros trinta e nove, que, em obediência, justamente, ao artigo 1º da Lei 13.606/18, tratam, única e exclusivamente, do Programa de Regularização Tributária Rural (PRR) e das matérias que – aí sim - lhe são vinculadas por afinidade, pertinência ou conexão?!!

Realmente impossível, posto que não existe qualquer vinculação (seja por afinidade, pertinência ou conexão) entre as normas que se referem ao Programa de Regularização Tributária Rural (PRR) e a tal averbação pré-executória.

Por essa razão, em especial, isto é, pela absoluta ausência de vinculação entre o instituto do bloqueio de bens e a matéria veiculada pela Lei 13.606/18, é que se disse lá atrás que a norma inserta em seu artigo 25 já nasce eivada de inconstitucionalidade, pelo menos sob o seu aspecto formal, dado o desrespeito ao processo legislativo constitucional, ou melhor, à própria LC nº 95 (art.º 7º).

Nessa linha de raciocínio, Alexandre de Moraes, hoje Ministro do STF, ao comentar o mencionado artigo 59 da Constituição Federal (in Atlas, 8ª edição, página 1020), já advertia que “o respeito ao devido processo legislativo na elaboração das espécies normativas é um dogma corolário à observância do princípio da legalidade, consagrado constitucionalmente, uma vez que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de espécie normativa devidamente elaborada pelo Poder Competente, segundo as normas de processo legislativo constitucional”.

A bem da verdade, mesmo que, hipoteticamente, o art. 25 da Lei 13.606/18 restringisse a medida de bloqueio em comento às questões atinentes ao Programa de Regularização Tributária Rural (PRR) ou agrárias de um modo geral, a sua inconstitucionalidade manter-se-ia hígida diante da violação ao devido processo legal, do seu caráter de sanção política e etc., o que torna a vida ou as atividades do contribuinte, já tão combalido por bloqueios excessivos, realizados sem a devida fundamentação legal e que tais, ainda mais caótica.

Data da conclusão/última revisão: 22/1/2018

 

Como citar o texto:

COSTA FILHO, Gilberto..Ainda sobre o (odioso) bloqueio de bens sem ordem judicial. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 28, nº 1503. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-civil/3887/ainda-odioso-bloqueio-bens-sem-ordem-judicial. Acesso em 31 jan. 2018.

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