"A justiça não se enfraquece, quando o poder lhe desatende. O Poder é que se suicida, quando não se curva à Justiça."(Rui Barbosa)

INTRODUÇÃO

O princípio da insignificância tem-se mostrado assunto cada vez mais em voga no mundo jurídico, pois, consoante os ensinamentos de ROXIN, "uma ordem jurídica sem justiça social não é um Estado de direito material, e tampouco pode utilizar-se da denominação de Estado Social um Estado planejador e providencialista que não acolha as garantias de liberdade do Estado de Direito"[1].

 Debates doutrinários e jurisprudenciais em torno do tema têm-se mostrado uma constante inacabável. Sua aplicação prática, todavia, não se mostra de forma clara e objetiva na seara jurisprudencial e, com muito mais razão, não estando o assunto dissolvido em sede de Estado-juiz, completamente vazio é o acervo de debates a respeito de sua aplicação profilática frente às atribuições do Delegado de Polícia.

Com efeito, indaga-se: é conferida legitimidade à Polícia Judiciária disciplinar as suas condutas, em hipóteses determinadas, com base no “Princípio da Insignificância”?

O objetivo central deste trabalho é, justamente, evidenciar a importância da aplicação de vanguarda desse princípio já no seio da atividade policial.

Com efeito, o apego ao formalismo indeclinável, muitas vezes, mostra-se prejudicial à sociedade, porquanto tende a retardar uma melhor e mais célere atuação do Estado frente às problemáticas sociais.

O professor CARLOS ALBERTO ÁLVARO DE OLIVEIRA, ao nos trazer a definição magistral da essência da finalidade insculpida por HEILBUT em 1886, esclarece, que nem todo descumprimento de uma forma determinada deve ter como conseqüência a ineficácia do ato realizado [2]

Efetivamente, antes de a ação penal ver-se encetada, há, necessariamente, um trabalho levado a efeito pela Polícia Judiciária onde, em detrimento de casos mais graves, labora-se durante considerável lapso temporal em torno de ilícitos penais os quais, pela sua insignificância, sequer avocarão um édito condenatório relativo aos seus autores.

Assim, quiçá, por meio de uma análise mais atenta a essa problemática, possamos estabelecer, pragmaticamente, um entendimento tendente a evitar a “perda de tempo” da Polícia Judiciária com trabalhos que acabarão sendo considerados, a bem da verdade, inúteis em seu julgamento final pelo Poder Judiciário, isso tudo ante o Princípio da Insignificância.  

Com efeito, toda ciência, quer seja ou não jurídica, tem como alicerce princípios que norteiam todos os seus demais fundamentos, a fim de sustentar a veracidade de suas posições e postulados elaborados. Os princípios nada mais são do que ferramentas postas às mãos dos cientistas, que devidamente trabalhadas e cultivadas, são, seguramente, as bases de toda uma construção científica.

No que tange à aplicação do princípio da insignificância frente aos trabalhos de Polícia Judiciária, evidencia-se a carência de debates a respeito, tornando-se necessário um aprimoramento gradativo do tema.

O que deve exsurgir aos olhos do estudioso, sem demora, é uma verdade cada vez mais manifesta no mundo jurídico, qual seja: fatos de conteúdo penal insignificante não possuem o condão de avocar decisão judicial condenatória, o que torna todo o trabalho policial inútil, bem como o restante da persecução penal encetada a partir da respectiva ação penal

A metodologia utilizada nesta exposição contemplará três capítulos de fácil assimilação pelo leitor. O primeiro diz respeito a uma visão panorâmica do “Princípio da Insignificância”; o segundo, na mesma linha didática, procura avocar, de forma objetiva e panorâmica, uma concepção precisa sobre o papel e a função da “Polícia Judiciária” no seio social; e, afinal, por meio do terceiro e último capítulo, visa-se jungir os dois institutos em objetivas, hialinas e precisas hipóteses concretas, perceptíveis e passíveis de serem aplicadas, com extrema facilidade e proficiência, no dia-a-dia do labor policial.

1  O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

O princípio da insignificância foi formulado pelo célebre CLAUS ROXIN, o qual propôs a interpretação restritiva aos tipos penais, com a exclusão da conduta do tipo a partir da insignificante importância das lesões ou danos aos interesses sociais.

Como define ROXIN, o legislador não possui competência para, em absoluto, castigar pela sua imoralidade condutas não lesivas a bens jurídicos[3].

Com efeito, ROXIN reconhecia que a insignificância não era característica do tipo delitivo, mas sim um auxiliar interpretativo seu, a fim de restringir o teor literal do tipo formal, conformando-o a condutas socialmente admissíveis, em decorrência de suas ínfimas lesões aos bens juridicamente tutelados.

Importante salientar que, ao lado do princípio da insignificância, existe o princípio da adequação social, onde a conduta formalmente inserida na descrição do tipo seria materialmente atípica, caso se situasse entre os comportamentos socialmente permitidos. A ação adequada socialmente estaria, desde o seu início, excluída do tipo, uma vez que se realizaria dentro do campo da normalidade social. Em suma, consoante a lição de SANTIAGO MIR PUIG, "no puede castigarse lo que sociedade considera correcto" [4].

Saliente-se que, distintamente do princípio da insignificância, em que a conduta é relativamente tolerada pela sua escassa lesividade, no que tange ao princípio da adequação social ela absorve total aprovação da sociedade. Pode-se citar como exemplo do que se afirma aqui a conhecida circuncisão, comuníssima aos adeptos da religião judaica.

Ante o princípio da insignificância, mínimas ofensas aos bens jurídicos não justificam a incidência do Direito penal, sendo que este mostra-se desproporcionado ao castigar fatos de importância manifestamente risível (furto de alguns tomates, de alguns melões, ou, ainda, de “algumas abóboras”, consoante repercutíssima Apelação-crime do  TJ/RS, cujos excertos principais vale a pena destacar, com o intuito de se ressaltar a relevância do tema proposto neste trabalho e da necessidade de formarmos um pensamento mais uniforme no mundo jurídico sobre o assunto, evitando-se acórdãos tão calorosos como este que segue:

“É possível, para a felicidade deles, que os membros do Ministério Público não tenham serviço suficiente e podem “brincar” de recorrer das decisões desta e de outras Câmaras, o que é bastante inconveniente para nós desembargadores que, como é sabido, estamos com excesso de trabalho.

 E se não conhecesse o Procurador de Justiça que primeiro assina o requerimento, sei que é uma pessoa séria e excelente profissional, diria os representantes do Parquet estão tão desocupados que, para fazer alguma coisa, “procuram chifre em cabeça de cavalo”.  Ou gostam de piadas de mau gosto.   É o que ocorre no caso em exame: “briga” por condenação de ladrões de abóboras.

Assim, antes de adentrar na questão principal, permito-me uma sugestão, uma vez que parece faltar trabalho sério aos Procuradores de Justiça: façam uma força-tarefa e vão ajudar os colegas de primeiro grau na persecução criminal daqueles delitos realmente graves.  Tenho observado, e não importa aqui os motivos, que esta Câmara, como as demais deste Tribunal, tem absolvido réus de delitos graves, mas que, aparentemente, são culpados.  Isto porque a prova criminal não é feita ou muito mal feita ou, ainda, um mau trabalho da acusação em termos de denúncia e (ou) alegações finais.

Parem com esta picuinha, ridícula e aborrecedora, de que todas as decisões devem ser iguais àquelas dos pareceres.  Parem de entulhar esta Corte e as Superiores com pedidos realmente insignificantes: furtos ou outros delitos insignificantes, aumento de pena de dois ou três meses etc.

No caso em exame (e somos obrigados a discutir a subtração de poucas abóboras, meus Deus !), o acórdão, como se verá infra, analisou os fundamentos jurídicos aplicáveis à insignificância e concluiu por sua aplicação.   Não houve nenhuma omissão, a não ser que os autores da petição de embargos, “porque não tem nada a fazer e o ócio cansa”, querem o impossível: dispositivos legais a respeito.

Por outro lado, dizer, como está na petição, que “a fim de chegar-se a constatação acerca da existência ou não de tal ofensa, torna-se necessário observar as condições econômicas da vítima, as quais permitirão chegar a conclusão se o valor do objeto material em questão chegou a ofender o bem jurídico já citado”, estão falando uma arrematada besteira.  E se o ladrão furtar cem mil reais de um grande banco, teremos um crime insignificante?  De acordo com a opinião, sim.  Em conclusão, a perda daquele valor mal arranhou o patrimônio da vítima [5].” 

Trazidos como referência os excertos principais do mencionado acórdão, os quais estampam a ocorrência, em determinado caso, de acutíssimo choque de visão entre o Ministério Público e o Poder Judiciário frente ao princípio da insignificância, é de bom alvitre mencionar que, a par disso, hoje em dia, encontra-se assente no mundo jurídico nacional que o aludido princípio (também chamado da bagatela) elide a tipicidade; mais especificamente a tipicidade material, isso com fulcro em decisão proferida pelo nosso Pretório Excelso. [6]

A divisão da tipicidade penal em formal e material, embora presente no mundo jurídico há longa data, ainda é, pasmem, uma grande novidade, para muitos professores e estudantes. Decerto, isso torna dificultosa uma maior compreensão e aceitação do princípio aqui em estudo. De qualquer sorte, partindo-se de um prisma constitucionalista da teoria do delito, esse desdobramento resulta absolutamente necessário. Efetivamente, nessa linha de raciocínio, temos a lição de Luiz Flávio Gomes: "Com efeito, partindo-se de uma concepção personalista da Constituição, que tem como valor-síntese a dignidade da pessoa humana, nenhum dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados pode sofrer qualquer limitação ou restrição senão em função da tutela de outro interesse ou bem de igual ou equivalente magnitude". [7]

ROXIN sustentava que nas infrações de bagatela não havia necessidade de uma imposição de pena. Por conseguinte, o fato não era punível. De toda a lavra de seus pensamentos, é provável que mereça destaque especial a conflagração que causou seus ensinos acerca do relacionamento entre Política criminal e Direito penal.  Resumindo sua idéia central, a Dogmática penal já não poderia ser apática em relação ao seu resultado final, ou seja, ao seu produto, ou, ainda, aos seus valores que norteiam o panorama constitucional (axiológico) em vigência. Como leciona ROXIN, "só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e que não é simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral; (...) o Direito Penal só pode assegurar a ordem pacífica externa da sociedade, e além desse limite nem está legitimado nem é adequado para a educação moral dos cidadãos" [8].

Desde 1970, com a consagrada obra de ROXIN [9], já não se pode conceber a Dogmática penal indiferente, ou mesmo distante, a da Política criminal.

Percebeu-se, peremptoriamente, que a Dogmática tem de ser aberta, tem de atuar finalisticamente (ao encalço da realização de determinados valores, como o da justiça). A ciência penal, assim sendo, insere-se hoje, certamente, no âmbito dos saberes práticos, cuja existência visa à resolução racional de determinados conflitos humanos.

A maneira tradicionalista de estudar e de ensinar a ciência penal, fundada no método puramente legalista (literalista) e subsuntivo, cuja origem viu-se no Estado moderno (término do século XVIII), encontra-se hoje ultrapassada. Mostra-se esgotado o modelo consistente em interpretar e sistematizar o Direito penal a partir da perspectiva exclusiva da letra legal.

Nos estudos acerca de uma política voltada aos crimes de pouca ou ínfima lesividade material, propugna-se pela não aplicabilidade da lei penal em relação àquelas condutas que não chegam, a bem da verdade, a gerar dano aos nossos bens jurídicos.

Aí é que surge a importância da análise do princípio da insignificância, direcionado ao operador do direito e fundamentado na idéia de proporção que a pena deve conter em relação à gravidade do ilícito penal. Nos casos de ínfimo abalo ao bem jurídico, a substância do injusto é tão pequenina que não subsiste nenhum porquê à aplicação de pena, de modo que a mínima sanção penal seria patentemente desproporcional à real significância material do episódio. O legislador, frisa CLAUS ROXIN, "não possui competência para, em absoluto, castigar pela sua imoralidade condutas não lesivas de bens jurídicos" [10].

A natureza do Direito penal é, portanto, subsidiária. Subsidiária no sentido de que "somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para uma vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se" [11].

Já não basta à satisfação de justiça uma concepção apenas formal sobre o princípio da legalidade. A exigência de lei certa que diz respeito para com a clareza dos tipos, os quais não devem deixar margens a dúvidas nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos e vazios, muito bem defendida por FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO[12], já não se mostra suficiente.

No entanto, na aplicação do princípio da insignificância, deve-se utilizá-lo com cautela, considerando insignificante apenas aquilo que realmente o é, sendo que há a necessidade de serem observadas as circunstâncias objetivas e subjetivas que envolvem o caso concreto, impedindo-se que seu conteúdo possa vir a ser uma porta aberta à impunidade.

A incidência da insignificância exclui a tipicidade, mas só pode ser estabelecida mediante consideração conglobada da norma. Em outras palavras, “o fato torna-se irrelevante, em virtude da presença de todos os requisitos bagatelares (resultado, conduta e culpabilidade bagatelares), tornando-se a pena desnecessária. Sua dispensa, nesse caso, não chega a afetar o seu aspecto preventivo geral"[13].

É possível, de toda sorte, ouvirem-se críticas à aplicabilidade do referido princípio, argumentando-se, em essência, ser o mesmo incompatível com o princípio da obrigatoriedade da ação penal. O artigo 98, I, da Carta Magna, contudo, permite, expressamente, o rompimento da regra tradicional de obrigatoriedade e de indisponibilidade da ação penal pública, abrindo espaço à discricionariedade regrada, permitindo-se certa dose de disponibilidade da ação penal pública.

Se o Órgão do Ministério Público insistir em propor a ação penal, ainda que ausente a tipicidade pela sua insignificância, caberia, então, ao magistrado, a sua imediata rejeição, com fulcro no art. 43, I, do Diploma Processual Penal Pátrio.

É oportuno salientar que, em pesquisas jurisprudenciais, o princípio da insignificância vem sendo utilizado pelos tribunais superiores em todos os tipos de delito (formais/materiais, de dano/de perigo, dolosos/culposos) como instrumento de interpretação restritiva da norma penal, alcançando a descriminação de condutas que, conquanto aparentemente típicas, não lesam de forma significativa um bem juridicamente tutelado[14].

O instituto do princípio da insignificância caracteriza-se como apoio eficaz para a descriminação, sendo claro seu valor na compreensão e interpretação das normas penais, avalizando a equiparação da lei penal à dinâmica social. Essa idéia proporciona gênese a uma modificação na nossa estrutura científico-penal atual.

A intervenção penal só será legítima, pois, se houver lesividade. Um método de interpretação puramente gramatical já não possui mais o condão de se promover justiça social. MAURÍCIO ANTÔNIO RIBEIRO LOPES corrobora esse raciocínio ao afirmar que, "através do princípio da lesividade, só pode ser penalizado aquele comportamento que lesione direitos de outrem e que não seja apenas um comportamento pecaminoso ou imoral; o direito penal só pode assegurar a ordem pacífica externa da sociedade e além desse limite não está legitimado e nem é adequado para a educação moral dos cidadãos. As condutas puramente internas ou individuais, que se caracterizem por ser escandalosas, imorais, esdrúxulas ou pecaminosas, mas que não afetem nenhum bem jurídico tutelado pelo Estado, não possuem a lesividade necessária para legitimar a intervenção penal" [15].

Ao avesso do que suscitam alguns, a aplicabilidade do princípio da insignificância não gera impunidade, mas sim reflete a verdadeira garantia da função do Direito Penal. Trata-se de um aparelho de interpretação restritiva, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial, a proposição político-criminal da imperatividade de descriminalização de condutas que, não obstante formalmente típicas, não atingem de forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal.

O desvalor do acontecimento deve ser considerado de acordo com a importância dos vários bens jurídicos resguardados penalmente e da intensidade da ofensa advinda.

O legislador, por sua vez, não pode antever em que grau e em que intensidade deve ocorrer a aplicabilidade do referido princípio no caso in concreto, cabendo essa atribuição da reprovabilidade aos aplicadores do direito, sucessivamente norteados pelo Direito que, bem longe de ser meramente normativo, é produto do próprio comportamento humano.

 A partir da ocasião em que se pretende falar do Princípio da Insignificância, é assaz necessário retroceder às vistas para o velho conceito de Tipicidade. JÚLIO FABBRINI MIRABETE define-a como "a contradição entre uma conduta e o ordenamento jurídico"", advertindo, todavia, que a doutrina a distingue do injusto, já que a antijuridicidade é a contradição que se estabelece entre a conduta e uma norma jurídica, ao passo que o injusto é a conduta ilícita em si mesma, é a ação valorada como antijurídica [16].

A tipicidade continha, para o Finalismo, a missão de especificar a conduta proibida ou permissiva, ou seja, encerrava a função de realizar o princípio nullum crimen sine lege, o que gerou um assombroso vazio no próprio conteúdo normativo, sendo, muitas vezes, o tipo enleado com a própria norma.

Notando-se que o Direito precisa ser estruturado por juízos de valores sociais, culturais, etc., percebeu-se que a incumbência do tipo penal era não exclusivamente assinalar uma conduta, mas sim direcioná-la para uma norma agora aperfeiçoada por um juízo axiológico ditado pelas próprias necessidades da sociedade. Esta norma valorada suporta um verdadeiro papel de proteção a um bem jurídico capital para a convivência em sociedade.

Nesse sentido, "o princípio da ofensividade - nullum crimen sine iniuria -, como postulado político-criminal nuclear que emana do conjunto axiológico-normativo do Estado Constitucional de Direito, ancorado nos direitos fundamentais, e ainda tendo em consideração o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, passa a constituir a essência do modelo de delito (de injusto) compreendido como fato (típico) "objetivamente" ofensivo, é dizer, fato merecedor da sanção penal porque causou uma lesão ou perigo de lesão ao bem tutelado" [17].

A alteração de perspectiva da incumbência do tipo penal possibilitou uma verdadeira insurreição quanto à interpretação de seus elementos. O princípio da legalidade deixa de ser compreendido em acepção estrita para ser considerado como uma razão de garantia, um limite da exposição típica. Autorizou ainda, a identificação do bem jurídico penalmente agasalhado, a indicação da ilicitude da conduta, ainda que esta não seja mais abarcada como elemento do tipo penal, e, político-criminalmente, também exerceu uma função pedagógica (preventivo geral), um norte ao desempenho humano à luz da gerência normativa.

Surgiu para o tipo penal, então, o próprio fato material. De tal modo, foi possível a constatação de uma tipicidade material tão importante quanto àquela formal, senão até mais formidável por comportar a idéia de danosidade social.

A ilicitude, da mesma maneira que a tipicidade, engloba o aspecto material que é a verificação da necessidade de uma danosidade social relevante para a sua configuração.

A tipicidade não se consome na concordância lógico-formal (subsunção) do fato ao tipo. A ação delineada tipicamente há de ser na maioria das vezes ofensiva ou arriscada a um bem jurídico [18].

O Princípio da Insignificância é uma forma excludente da tipicidade impedindo a configuração do Injusto Penal. O Direito Penal não se ocupa de todos aqueles comportamentos anti-jurídicos que decorrem das relações sociais, mas, tão somente daqueles mais molestadores e lesivos para os bens jurídicos. Ademais disso, só se conhece e sanciona nos fatos quando houver falhado todos os demais meios de controle formais ou informais [19].

Com o fim de se aplicar o princípio da insignificância não se tem como analisar a substância da culpabilidade do agente, se a conduta não foi sequer típica. Verificado que o fato é atípico, precariamente vale, para o deslinde da questão, a personalidade do réu[20], inclusive porque, na ocasião da tipicidade, o Direito Penal é um direito do fato e não do autor [21]. Sendo, assim, inconveniente qualquer check-up da personalidade do acusado quando se debater acerca do princípio da insignificância.

1.1 excertos jurisprudenciais a respeito do princípio da insignificância

De suma importância torna-se, ainda, a fim de se ressaltar a importância do tema e sua posição atual no pensamento jurídico nacional, avocarem-se, ainda que se tratem de meros exemplos, à leitura, as seguintes decisões jurisprudenciais: 

Uma vez verificada a insignificância jurídica do ato apontado como delituoso, impõe-se o trancamento da ação penal por falta de justa causa. Princípios da razoabilidade e da proporcionalidade [22].

Princípio da insignificância. O resultado (sentido jurídico-penal) deve ser relevante, quanto ao dano, ou perigo, ao bem jurídico tutelado. De minima non curat Praetor. Modernamente, ganha relevo o princípio da insignificância. O delito (materialmente examinado) evidencia resultado significativo. Deixa de sê-lo quando o evento é irrelevante. Não obstante conclusão doutrinária diversa, afirmando repercutir na culpabilidade, prefiro tratar a matéria como excludente da tipicidade, ou seja, o fato não se subsume à descrição legal [23].

Além dos Tribunais Superiores, também os Tribunais Regionais Federais vêm decidindo, reiteradamente, que os delitos de pequena monta, destituídos de potencial lesivo, devem ser considerados materialmente atípicos.

Penal. Apelação criminal. Descaminho. Apreensão de mercadorias em pequena quantidade e de pequeno valor. Princípio da insignificância.

Embora a conduta se enquadre na norma contida no artigo 334, § 1º, "d" do Código Penal, o Direito não pode se restringir apenas ao formalismo da lei, sendo, portanto, coerente a proximidade de sua interpretação com a nossa realidade social.

O direito penal tem como objetivo a proteção qualificada de bens jurídicos, atuando quando os instrumentos oferecidos por outros ramos do direito, não se apresentam suficientes a reprimir determinada conduta, e também, quando a lesão ao bem jurídico é realmente grave.

De acordo com o laudo mercealógico, verifica-se que foram apreendidas mercadorias em pequena quantidade e de pequeno valor, sendo certo que a jurisprudência é orientada no sentido da irrelevância do procedimento. Precedentes do STJ.

Assim, não há como considerar lesiva a conduta de meros camelôs, de baixa instrução que estão lutando para sobrevive[24].

2 POLÍCIA JUDICIÁRIA

 Polícia e repressão são duas palavras que impregnam uma semântica consideravelmente pejorativa no Brasil pós Ditadura Militar. Repressão era um conceito conexo unicamente com a performance subterrânea dos órgãos de segurança pública, figadalmente jungida com a tortura e o desaparecimento de opositores ao regime de governo ditatorial.

A Polícia não era órgão de conservação e garantia da paz e da tranqüilidade públicas, porém órgão de repressão, nesta ocasião percebida no aspecto pejorativo.

Desvanecida a Ditadura e acomodado o Estado Democrático de Direito, referidas palavras - repressão e polícia - permaneceram carregando aquele sentido negativo, já que as chagas abertas na sociedade muitas vezes precisam de anos para as suas cicatrizações. Além disso, estão sujeitas à atuação consciente dos homens para alterar uma doutrina densamente alojada.

         No que tange à repressão, é uma das diversas formas de performance dos órgãos de polícia. Os órgãos de polícia operam de maneira preventiva e repressiva. Em quaisquer dos casos aspiram ao estrito cumprimento da lei. Reprimir é, deste modo, nada mais nada menos que empregar a força estatal para forçar ou obrigar o implemento da lei. Perceba-se que a repressão não obra sobre todos, indistintamente, no entanto apenas sobre aqueles que extravasam os lindes traçados pela Lei. No entanto, a sua implicação pedagógica é para todos. Não há e nem pode haver repressão como um fim em si mesmo. A repressão não é uma represália do Estado, porém é um exemplo que deve ser versado a todos.

Azado falar aqui naquilo que em Direito Administrativo avalia-se por “Poder de Polícia”.  É em alto grau comum às pessoas enlear Poder de Polícia, que tem sua concepção e conceituação nos limites da doutrina administrativista, com “função ou atividade policial”, que são coisas que não se confundem. Se, por um aspecto, as funções policiais são específicas de alguns órgãos públicos, na maioria das vezes denominados “polícia”, por outro o Poder de Polícia é intrínseco a todo o Estado, na proporção em que por meio de seus órgãos, intromete-se nas atividades regulares dos cidadãos.

         Polícia Judiciária possui o papel precípuo de apurar as infrações penais e a sua autoria, por meio do inquérito policial, procedimento administrativo com particularidade inquisitiva, o qual serve, em regra, de sustentáculo à pretensão punitiva do Estado estabelecida pelo Ministério Público, Senhor da ação penal pública[25] .

A persecução penal, ordinariamente, inicia-se por meio da investigação criminal, com o Estado angariando subsídios para o exercício do jus puniendi em juízo, razão pela qual, em sendo o inquérito policial peça procedimental de contumaz importância para o Estado, devidamente disciplinado pelo Código de Processo Penal, embora prescindível, não é ele mera peça de informação como a doutrina e a jurisprudência, praticamente pacífica, o cognominam [26]. Ele é, isto sim, peça de informação de alta relevância. Lida com o sagrado direito à liberdade e, em sendo propriamente conduzida, seguramente propiciará uma maior probabilidade de sucesso no estágio do direito de punir do Estado-Administração, bem como de justiça na fixação da pena pelo Estado-Juiz, quando da análise das circunstâncias judiciais[27].

Ao considerar-se o inquérito policial um procedimento inquisitivo, não há que se falar da aplicação, nesta fase, das garantias do contraditório e da ampla defesa, reservadas à instrução processual, pois que só aí há acusação e defesa. Com efeito, somente a partir da aceitação da denúncia, em se tratando de persecução oriunda de investigação criminal ou inquérito policial, pode-se falar em “acusado” [28].

Por certo, o inquérito policial não abrange as consagradas garantias constitucionais. Ele evidencia-se, especificamente, por um conjugado de atos praticados por autoridade administrativa [29].

O texto constitucional, ao afiançar ao preso a assistência de um advogado, não exige a sua presença aos atos procedimentais, nem que a autoridade policial deva obrigatoriamente constituir um para acompanhar o seu interrogatório[30], mais sim, constitucionalmente lhe é assegurado ser assistido por um advogado de sua livre nomeação, caso deseje e o promova [31]. Isso, por certo, mostra-se coerente, haja vista, como acima já dito, que em inquérito policial não existe contraditório e ampla defesa, a serem exercidos somente em processo judicial ou administrativo[32].

Por outro lado, a presença do advogado, ainda que prescindível no inquérito policial, é recomendável, mas apenas recomendável, diante da possibilidade de deficiência de justa causa para a sua instauração em desfavor do investigado, da possibilidade de pleitearem-se diligências, do pedido de liberdade provisória, de relaxamento de prisão em flagrante, bem como de inibir qualquer arritmia de conduta que possa advir por parte do agente policial do Estado, por meio de hábeas corpus ou representação à Corregedoria de Polícia.

De tal modo, permite-se discorrer em defesa no inquérito policial, em sentido amplo, mas não em ampla defesa, agindo o advogado para garantir a observância dos direitos e garantias individuais traçados na Constituição da República.

No que concerne ao segredo da investigação, é ele da essência do inquérito. Não o guardar é muitas vezes fornecer armas e recursos ao delinqüente, a fim de frustrar a atuação da autoridade, na apuração do crime e da autoria [33].

No que pese, todavia, o disposto no art. 20 do CPP, observamos que, com o advento do Estatuto da OAB[34], lei federal de âmbito nacional, a aplicação do sigilo nos inquéritos policiais viu-se mitigada, atingindo a discricionariedade do Delegado de Polícia na direção do procedimento.

No entanto, não houve anulação desse poder discricionário da Autoridade Policial, de modo que, nas investigações em que o sigilo seja indispensável para a apuração da infração e da sua autoria, ou exigível no tocante ao interesse da sociedade, deve a autoridade policial representar, fundamentadamente, à autoridade judiciária competente, a fim de que o princípio da publicidade seja restringido, com vistas ao MP, por ser o destinatário final da informatio delicti.

Referido proceder é coeso com a propriedade inquisitiva do inquérito policial, em que não se desempenha defesa propriamente dita, vetando-se a possibilidade de ciência prévia da diligência a ser efetivada oportunamente[35], a qual poderia ver-se frustrada, em virtude de uma possível performance precoce e ágil do advogado interessado.

Vale mencionar que o Estado possui poderes para a sua organização, conservação, determinação de suas diretivas e consecução de seus fins.

Todo poder estatal é poder político, mas convencionou-se denominar poder político unicamente aquele que se agrupa e é desempenhado prontamente pelos Poderes de Estado - Legislativo, Executivo e Judiciário - como órgãos governamentais dos Estados Democrático Modernos. Ficou estabelecido que os demais poderes, desempenhados pelos órgãos da Administração Pública, constituem-se em poderes administrativos, dentre os quais se arraiga o Poder de polícia.

Poder é a capacidade de deliberar e cominar a decisão aos seus destinatários. Nessa acepção, o poder exprime-se em todos os grupos e comunidades, desde a família, que se apóia no pátrio poder, até o Estado, que se sustenta no poder político, emanado da aspiração popular, que é o suporte da Soberania Nacional. Poder, assim, é a própria emanação de soberania do Estado[36].

Poder de polícia, por sua vez, é o engenho de frenagem de que dispõe a Administração Pública, para ater os abusos do direito individual. Por meio desse mecanismo, que é uma peça de toda Administração, o Estado (em significado amplo: União, Estados e Municípios) prende a atividade dos particulares que se desvendar contrária, nociva ou inconveniente ao bem-estar social.

Convém distinguirmos, neste ponto, a polícia administrativa da polícia judiciária. A polícia administrativa é aquela que incide sobre bens, direitos ou atividades, ao passo que a polícia judiciária incide sobre as pessoas.  Desse modo, poder de polícia judiciária é privativa dos órgãos auxiliares da Justiça [37], enquanto que o poder de polícia administrativa difunde-se por todos os órgãos administrativos, de todos os Poderes e entidades públicas. Explicando, quando a autoridade apreende uma carta de motorista por infração de trânsito, exercita ato de polícia administrativa. Agora, quando prende o motorista por infração penal, pratica, então, o ato de polícia judiciária.

Poder de polícia, em seu significado amplo, envolve um sistema total de regulamentação interna, pelo qual o Estado procura não só preservar a ordem pública, senão também instituir para a vida de relações dos cidadãos aquelas regras de boa conduta e de boa vizinhança que se supõem imprescindíveis para serem evitados conflitos de direitos e para garantir-se a cada um o deleite ininterrupto de seu próprio direito, isso até onde for razoavelmente conjuminado com o direitos dos demais.

Administração Pública tem o poder de especificar e executar medidas restritivas do direito individual em beneficio do bem-estar da coletividade e da preservação do próprio Estado. Como salienta José Afonso da Silva, a separação de poderes tem por fundamento a procura da especialização funcional e a independência orgânica no exercício de cada uma das atribuições típicas do Estado[38].

A noção de Poder de Polícia, diga-se de passagem, encontra-se patente em nossa legislação, valendo fazer referência ao Código Tributário Nacional que assim dispõe:

Considera-se poder de polícia a atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a "Prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”  [39].

2.1 poder de polícia

A extensão do poder de polícia é hoje muito ampla, abarcando desde a proteção à moral e aos bons costumes, a preservação da saúde pública, a censura de filmes e espetáculos públicos, o controle das publicações, a segurança das construções e dos transportes, o mantimento da ordem pública em geral, até à segurança nacional em particular. Daí, encontra-se, nos Estados modernos, a polícia de costumes, a polícia sanitária, a policia das águas e da atmosfera, a polícia florestal, a polícia rodoviária, a policia de trânsito, a polícia das construções, a polícia dos meios de comunicação e divulgação, a polícia política e social, a polícia da economia popular, e outras que atuam sobre as atividades individuais que afetam ou sejam capazes de afetar os superiores interesses da coletividade, a que incumbe o Estado velar e proteger. Onde houver interesse acentuado da comunidade ou da Nação, deve haver, correlatamente, igual poder de policia para a proteção desse interesse público.

Os exatos limites do poder de polícia administrativa são demarcados pelo interesse social em conciliação com os direitos fundamentais dos indivíduos assegurados na Constituição da República [40]. Do absolutismo individual evoluímos para o relativismo social. Os Estados democráticos como o nosso inspiram-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana. Daí o equilíbrio a ser procurado entre a fruição dos direitos de cada um e os interesses da coletividade, em favor do bem comum. Aliás, a idéia de reparação é uma das mais velhas idéias morais da humanidade, como já dizia RIPERT, citado por CAIO MÁRIO [41].

Referida sujeição do direito individual aos interesses coletivos ficou bem marcada na vigente Constituição da República, ao estabelecer-se que a ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base dentre outros fatores, na «função social da propriedade» [42]

Por meio de restrições infligidas às atividades do indivíduo que afetem a coletividade, cada cidadão cede parcelas mínimas de seus direitos à comunidade e o Estado lhe retribui em segurança ordem, higiene, sossego, moralidade e outros benefícios públicos, propiciadores do conforto individual e do bem-estar geral. Para concretizar essas restrições individuais em favor da coletividade, o Estado se utiliza desse poder discricionário, que é o poder de polícia administrativa. Tratando-se de um poder discricionário, a norma legal que o confere, não minudencia o modo e as condições da prática do ato de polícia. Esses aspectos são adjudicados ao prudente critério do administrador público. Mas se a autoridade ultrapassar o admitido em lei, incidirá em abuso de poder, corrigível por via judicial. O ato de polícia, como ato administrativo que é, fica sempre sujeito à invalidação pelo Poder Judiciário, quando praticado com excesso ou desvio de poder.

 

Como citar o texto:

BRUTTI, Roger Spode..O princípio da insignificância e sua aplicabilidade pela Polícia Judiciária. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 154. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/920/o-principio-insignificancia-aplicabilidade-pela-policia-judiciaria. Acesso em 28 nov. 2005.

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