É comum nos defrontarmos com situações onde alguns obtêm vantagens indevidas em detrimento de outros, merecendo esses casos reparo jurídico.

Embora este assunto sempre venha a ser tratado de acordo com a visão do mais fraco, seguindo os conceitos do Código de Defesa do Consumidor, verifica-se que atualmente são os titulados “mais fracos” que estão a se enriquecer ilicitamente, como Robin Hood.

Foi no Direito Romano que surgiram os conceitos fundamentais da teoria do enriquecimento sem causa sob o alicerce das condictiones, através das quais as pessoas podiam reaver o prejuízo por pagamento errôneo, combatendo assim situações injustas que não eram amparadas por lei. Desta forma, aquele que locupletasse com a coisa alheia seria obrigado a restitui-la a seu dono.

No Brasil, o Código Civil de 1916 fez alusão apenas ao pagamento indevido, que vem disposto nos artigos 964 a 971. Já o novo Código Civil (Lei 10.406, de 2002) trata do pagamento indevido nos artigos 876 a 883 e do enriquecimento sem causa nos artigos 884 a 886.

Segundo o Dicionário Jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, enriquecimento ilícito é "o acréscimo de bens que, em detrimento de outrem, se verificou no patrimônio de alguém, sem que para isso tenha havido fundamento jurídico", sendo sinônimos enriquecimento ilícito, enriquecimento indébito, enriquecimento injusto e enriquecimento sem causa.

O princípio do enriquecimento sem causa ou enriquecimento ilícito consiste no locupletamento à custa alheia, justificando a ação de in rem verso, pois todo o enriquecimento há de se restituir, não se perquirindo que exista dano, real ou patrimonial, do credor, ou qualquer empobrecimento deste.

A doutrina identifica como requisitos para que se configure o enriquecimento sem causa a ausência de justa causa, o locupletamento e o nexo causal entre o enriquecimento e o empobrecimento.

Enquanto o dano é protegido pelo instituto da responsabilidade civil, o enriquecimento sem causa busca a remoção do enriquecimento do patrimônio do beneficiado.

Aplica-se ao enriquecimento sem causa o principio "suum cuique tribuere", dar a cada um o que é seu: o beneficio obtido com o alheio deve ser restituído. Para o titular do direito deve ser removido o acréscimo patrimonial indevido.

Assim, o enriquecimento ilícito ocorre sempre que houver uma vantagem de cunho econômico em detrimento de outrem, sem justa causa. E este é o sentido do artigo 884 do novo código: "Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à causa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários."

Nestes termos, verifica-se que, nos dias de hoje, em empresas envoltas a contratos cujo pagamento é parcelado, como os de compromisso de compra e venda de imóvel, é freqüente ocorrer que uma parte se enriqueça, ou seja, tenha um aumento patrimonial, em detrimento de outra.

Não estamos tratando aqui de locupletamento da empresa, tida como mais forte, como produtora de contratos abusivos, mas do comprador, que se utiliza do bem objeto do negócio por muitos anos, paciente e ganancioso como Cleópatra, com inadimplência das prestações, e diante de uma provável rescisão do negócio, pleiteada por qualquer das partes, requer a devolução das quantias pagas, enriquecendo-se sem justo motivo.

Ora, a empresa vendedora é muito sacrificada com o este contrato, posto que, na grande maioria das vezes, o comprador não paga as prestações, não entra em contato e/ou não a avisa do seu atual endereço para a empresa tentar um acordo, também não consigna em pagamento as prestações, demonstrando não ter qualquer interesse em quitar sua dívida, mas estando a usufruir do bem sem nenhum ônus.

Não é possível acreditar que o Código do Consumidor tenha nascido para prestigiar sobremaneira o consumidor inadimplente em detrimento do fornecedor.

É justo que a empresa tenha direito ao ressarcimento pela utilização do bem em negócio, como no caso de um imóvel, sob pena de estimular-se a quem não tem moradia, o mau uso de um negócio legalmente constituído, a fim de morar, de graça, fugindo do aluguel, tendo, ainda, quando não mais lhe interessar o negócio, uma poupança constituída pelas prestações pagas (a serem ressarcidas).

Ensina Orlando Gomes que “a resolução por inexecução culposa não produz apenas o efeito de extinguir o contrato para o passado. Sujeita ainda o inadimplente ao pagamento de perdas e danos. A parte prejudicada pelo inadimplemento pode pleitear a indenização dos prejuízos sofridos, cumulativamente com a resolução.”. (Contratos, 12ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1993, p. 196).

Como é cediço, o contrato, uma vez celebrado, deve ser cumprido pelas partes; entretanto, o inadimplemento de uma das partes pode dar causa à sua rescisão e à indenização por perdas e danos, como previa o parágrafo único do artigo 1.092, do Código Civil de 1916 e prevê o artigo 475 do Código Civil vigente.

Maria Helena Diniz, a propósito, ensina que “A responsabilidade contratual funda-se na culpa, entendida em sentido amplo, de modo que a inexecução da obrigação se verifica quer pelo seu descumprimento intencional, havendo vontade consciente do devedor de não cumprir a prestação devida, com o intuito de prejudicar o credor (dolo), quer pelo inadimplemento do dever jurídico, sem a consciência de violação...”. (Tratado prático e teórico dos contratos. São Paulo: Saraiva, 1996, v. 1, p. 161).

E mais adiante conclui que “... o dever de indenizar surgirá apenas quando o inadimplemento for causado por ato imputável ao devedor; daí a necessidade de se apreciar o comportamento do obrigado...” (ob. cit. P. 162).

O Direito definitivamente não pode privilegiar um desequilíbrio patrimonial, um enriquecimento sem causa, um patrimônio aumentado em detrimento de outro, sem base jurídica.

E mesmo que a empresa venha a devolver as quantias pagas, deve-se observar que este direito não é absoluto, tendo direito à retenção de sua parte, já decidindo o Superior Tribunal de Justiça a respeito: “CIVIL – PROMESSA DE COMPRA E VENDA – CONTRATO FIRMADO ANTERIORMENTE À VIGÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – DEVOLUÇÃO DE PARCELAS PAGAS – ART. 924 DO CÓDIGO CIVIL – PRECEDENTES DA CORTE – I. Celebrado o contrato antes da vigência do Código de Defesa do Consumidor, válida é a cláusula que prevê a perda das prestações pagas de um contrato de promessa de compra e venda. II. Todavia, tal direito não é absoluto, havendo que conformar-se às particularidades de cada caso concreto e consideradas as custas administrativas, operacionais e de corretagem da empresa construtora, sob pena de injustificada redução patrimonial. Retenção fixada em 25% (vinte e cinco por cento) das parcelas pagas. III. Recurso Especial conhecido e parcialmente provido. (STJ – RESP 59626 – SP – 4ª T. – Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – DJU 02.12.2002)”;

“CIVIL – PROMESSA DE COMPRA E VENDA – CONTRATO FIRMADO POSTERIORMENTE À VIGÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – DEVOLUÇÃO DE PARCELAS PAGAS – PRECEDENTES DA CORTE – I. Celebrado o contrato posteriormente à vigência do Código de Defesa do Consumidor, inválida é a cláusula que prevê a perda das prestações pagas em contrato de promessa de compra e venda. II. Todavia, tal direito não é absoluto, havendo que conformar-se às particularidades de cada caso concreto e considerados os custos administrativos, operacionais e de corretagem da empresa construtora, dentre outros fatores, sob pena de injustificada redução patrimonial. Retenção fixada em 25% (vinte e cinco por cento) das parcelas pagas. III. Recurso Especial conhecido e parcialmente provido. (STJ – RESP 63656 – SP – 4ª T. – Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – DJU 16.12.2002)”;

CIVIL E PROCESSUAL – COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA – AÇÃO DE RESCISÃO PROPOSTA PELA VENDEDORA – RECONVENÇÃO – INADIMPLEMENTO CONTRATUAL DA COMPRADORA – RETENÇÃO SOBRE PARTE DAS PARCELAS PAGAS – ELEVAÇÃO DO PERCENTUAL PARA FAZER FACE A DESPESAS ADMINISTRATIVAS E AO DESGASTE DO IMÓVEL – I. A rescisão do contrato, ainda que reconhecida a inadimplência da compradora, dá a esta o direito à restituição das parcelas pagas, porém não em sua integralidade, em face do desgaste no imóvel devolvido e das despesas realizadas pela vendedora com corretagem, propaganda, administração e assemelhadas, sob pena de injustificada redução patrimonial em seu desfavor, sem que, no caso, tenha dado causa ao desfazimento do pacto. II. Retenção aumentada. III. Recurso Especial conhecido e parcialmente provido. (STJ – RESP 221566 – PR – 4ª T. – Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – DJU 08.09.2003 – p. 00331)”(grifos nossos).

Além disso, o ressarcimento das despesas, ocorridas em virtude do inadimplemento do comprador, deve ser completo, para que haja perfeito equilíbrio contratual, evitando o locupletamento indevido.

Por fim, o novo Código Civil estabeleceu o prazo prescricional três anos para a pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa (artigo 206, parágrafo 3º, IV). Trata-se de prazo exíguo, o que demonstra que o legislador teve a intenção de não alargar em demasia a dimensão desse instrumento. O novo diploma estabeleceu ainda a regra de atualização dos valores monetários na restituição (artigo 884), dispondo ainda que, em caso de restituição de coisa determinada, quem a recebeu indevidamente, na falta dela, deve restituir o valor atualizado na época em que foi exigido.

A doutrina louva a inserção do instituto do Enriquecimento Sem Causa no Novo Código Civil, uma vez que se consolida na lei civil a matéria, não ficando ela sujeita às interpretações da jurisprudência, como ocorria antes do advento do novo código.

Portanto, é reprovado o enriquecimento com ausência de causa. A ordem jurídica o condena com uma sanção civil, a qual impõe ao enriquecido a obrigação de restituir o que recebeu por injusto locupletamento. Mas a lei só a aplica quando o prejudicado reage, promovendo os meios de obter a restituição.

“Aquele que tentou e não conseguiu é superior àquele que nada tentou”. Bud Wilkinson

Referências Bibliográficas

1. Dicionário Jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

2. Novo Código Civil Brasileiro. Lei 10.406/2002, em vigor a partir de 11.01.2003.

3. Código Civil Brasileiro. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916 (Norma revogada).

4. Juris Síntese Millennium. Março/Abril de 2004

 

.

 

Como citar o texto:

GONÇALVES, Vanessa Stange..No Velho Estilo Robin Hood. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 111. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil-responsabilidade-civil/451/no-velho-estilo-robin-hood. Acesso em 22 jan. 2005.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.